Foto: mediotejo.net

Marcamos encontro com Michel e Dália no «Pica-Fino», pois é ali que aproveitam as duas estadias anuais em Mação. Uma espécie de segunda casa que lhes calhou por ser a única unidade hoteleira disponível no centro da vila quando, há mais de 20 anos, precisaram interromper uma viagem atribulada debaixo de forte trovoada, vindos de Espanha, e com destino ao Alentejo (uma vez que Michel é também um apaixonado por arqueologia romana e naquela região existem inúmeras vilas por conhecer com essa influência). Mal sabiam que iria começar a mais sentida e querida viagem das suas vidas.

Pode dizer-se que, nos três dias seguintes que ali acabaram por ficar para “conhecer melhor a terra e alguns pontos de interesse sugeridos pelo Pica”, foi amor à primeira vista. Michel apaixonou-se por Mação. Mas principalmente, pelas pessoas desta vila que, para si, era “a cidade de Macao” (mas a pronúncia, garantimos, já está afinada, e a língua portuguesa muito percetível).

“Uma chuva terrível. E digo à Dália que não podia conduzir assim até chegarmos a Vidigueira, tão longe daqui. E logo seguimos na estrada (na altura era gratuita) e a primeira placa que vimos foi Mação. Bom… vamos ver”, recordou, lembrando os detalhes daquela noite em que descobriram a existência da vila por “puro azar”.

Depois de “quatro quilómetros que mais pareciam 100”, ao longo de uma cerrada floresta de pinheiros, na época, numa estrada pequena e sem iluminação. “E logo achamos uma placa que indicava GNR e fomos perguntar se havia um hotel. E o militar disse que sim, que havia um e veio mostrar-nos onde ficava”.

Logo encontrou “o Pica”, responsável pela residencial no centro da vila, e que aquela hora, bem de noite, os hospedou. Inicialmente a ideia era ficar uma noite só. Mas na manhã seguinte, Michel disse para Dália que gostaria de conhecer melhor aquele sítio. “E gostei muito. Na altura não conhecia nem sabia que sítios eram. Foi uma descoberta para mim”, confidenciou, indicando que talvez tenha sido o Pego da Rainha um dos primeiros locais que visitou.

Dália e Michel, no pátio do Pica Fino, a sua segunda casa, que os acolhe em Mação. Foto: mediotejo.net

Na altura, e apesar da sua companheira ter nascido em Portugal e ter raízes portuguesas, Michel Henrotay “não sabia uma palavra em português”  e quando, na altura em que conheceu a amada Dália, esta telefonou à mãe, terá ficado a pensar onde se localizaria Portugal e até puxou do mapa. “Portugal? Parecia latino”, disse, entre risos. Foi então que as viagens até Portugal, ao sul, entre Alentejo e Algarve, começaram a ser regulares para passar férias.

Depois de descobrir Mação, passados quase 24 anos, as visitas começaram a integrar o roteiro de férias. “Uma boa residencial, comida boa e pessoas muito simpáticas” fizeram com que Michel renegociasse com Dália o tempo de estadia há uns anos atrás, algo de que ainda se regozija, como quem saiu vitorioso de uma negociação difícil.

E ainda que, ao longo dos últimos anos, soubesse que em solo maçaense não iria encontrar insetos fósseis, outros fósseis cruzaram o caminho de Michel Henrotay. Caso das trilobites. Mais tarde, acompanhou Sofia Pereira e Miguel Pires na descoberta e pesquisa de uma nova espécie de fóssil trilobite, com 455 milhões de anos, tendo encontrado em Carregueira uma nova espécie que consta da tese de doutoramento de Sofia Pereira (2017) a Actinopeltis? henrotayi.

Quem é e o que faz Michel Henrotay?

Antes de mais… quem é Michel? Podemos dizer que existem dois. O Michel de Mação e o Michel Henrotay que nasceu em Liège, Bélgica, e que se dedicou ao estudo e pesquisa de insetos fósseis, que descobriu milhares de espécies, que foi professor durante onze anos e adido no Museu Nacional de História Natural de Paris. Um currículo bem composto.

Mas porquê a paleoentomologia? (Palavras difíceis para descobertas igualmente difíceis, como Michel gosta). Explicou-nos que o seu pai era arquiteto, mas também entomologista amador, o que levava a família a passar os fins-de-semana no campo, a apreciar a natureza.

“O meu pai era um grande colecionador de borboletas e escaravelhos”, contou, recordando que quando era pequeno tinha a estatura ideal para ajudar o pai na “caça às borboletas”. Por outro lado, também a mãe de Michel participava nestes dias, mas noutra vertente. Era botânica amadora. E Michel ajudava também a mãe a encontrar exemplares de plantas, seguindo as suas indicações e escutando as suas caraterísticas.

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A sua juventude passou assim, e recorda ainda hoje com a mesma emoção e frenesim, o momento em que encontrou “uma concha de pedra”. “E logo perguntei ao meu pai, não acreditando no que estava a ali a ver. Não compreendia porque estava uma concha ali, na montanha. E logo o meu pai me explicou a história da formação de um fóssil, recuando mais de 500 milhões de anos. Mas com 6 anos de idade, tu não compreendes o que isso é”.

E lembrou também o que o pai lhe dissera. “Mas francamente, Michel, se existe aqui um… há muitos outros!”. Não sabia nessa altura que, talvez tenha sido este o ‘clique’ que levaria o filho, anos mais tarde, a dedicar-se à pesquisa paleoentomológica. E, com isso, descobrir novas espécies, algumas das quais com o seu nome na nomenclatura científica. Mas isto não importa a Michel, que desvaloriza a “celebridade” e prima pela discrição e humildade.

Tesouros naturais de Mação: a solidariedade e a preservação do património natural

Os trágicos incêndios de 2017 que assolaram o concelho de Mação, devastando quase 80% da mancha florestal, começaram quando Michel e Dália se preparavam para regressar para a Bélgica.

Assistiram a tudo a “2000 km dos seus amigos” o que foi “muito duro para nós”, explicaram, indicando que a rotina passava por saber novidades à distância, mas sem poder fazer nada.

Deste modo, e dando uso aos mais de 30 mil registos fotográficos sobre o património natural do concelho de Mação, Michel acedeu à proposta dos amigos Saldanha Rocha e sua esposa Juca, bem como de Luiz Oosterbeek: fazer uma exposição na galeria do Centro Cultural.

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Michel, que já tinha negado por várias vezes esta sugestão, decidiu aceitar: seria um ato de solidariedade para “os amigos de Mação”, lembrando que o património natural maçaense, a fauna e a flora, são “excecionais”. E avançou com aquela que é a sua primeira exposição. Quem sabe, a única.

E, apesar dos incêndios serem vistos como “um massacre”, Michel Henrotay entende que “os incêndios passam, quase sempre, rapidamente. E no fundo, na terra, estão as veias (as raízes) das plantas que vão renascer”. Tal como todo o concelho, como as pessoas, os seus amigos, que ganham novo fôlego após um verão feito de lume, sofrimento e destruição.

Esta foi a forma de Michel e Dália agradecerem “a hospitalidade e a amizade”. E por isso, os “Tesouros Naturais de Mação” recolhidos por Michel podem ser apreciados até final de junho, por todos os que aceitem este presente, que nada mais é do que uma retribuição do carinho com que foi acolhido pela comunidade.

A paixão por esta terra deve-se aos “costumes, natureza e a autenticidade das pessoas, bem como as tradições e cultura”, justificou.

Seguindo o que lhe dita a sua profissão, sempre com a lei da descoberta no horizonte, Michel e Dália programam as visitas a Mação consoante as estações do ano. “Vimos na primavera, porque não há ninguém, é o deserto turístico e o momento propício para estudar as plantas e os insetos. E regressamos cá em outubro/novembro porque é outono, e é uma época muito boa para estudar os anfíbios”, esclareceu.

Este “maluco da descoberta”, como se auto-intitula, reconhece que “se algo é conhecido, não tem interesse para mim. Descobrir uma coisa nova é uma participação cívica, um ato de cidadania”, indicou, continuando. “Mas agora é diferente, porque também são todos meus amigos. E se puder descobrir coisas novas, típicas, é a minha maneira de dar uma parte de mim para todos os maçaenses, e é uma grande felicidade”, e aqui recorda as duas espécies de aranhas que encontrou. Aliás, foi Dália quem as achou, e realmente teve bom olho, porque se trata de duas espécies endémicas daquela região.

Numa visita guiada, durante a inauguração, na sua exposição, que estará patente até 30 de junho na galeria do Centro Cultural Elvino Pereira, e que dedica a todos os maçaenses. Foto: mediotejo.net

Esta sua missão, e o facto de se relacionar com pessoas do concelho, também tem ajudado Michel a contrariar velhos hábitos e mitos associados à perigosidade e toxicidade de anfíbios, insetos e répteis, caso das osgas e salamandras.

Por este motivo, Michel mostra muitos exemplares “na mão” para que notem que “não é tóxico e é inofensivo”, o que gera alguns ataques de pânico nas pessoas, que logo gritam e esbracejam, indicando que é perigoso e que poderá fazer mal. Hoje, nota que o instinto “de antigamente”, que seria matar as espécies, já não se verifica tanto com as pessoas que conhece.

Este trabalho, de divulgação e conhecimento do património natural, acontece também pelos registos fotográficos e vídeo, que divulga no seu canal do Youtube, com mais de 440 subscritores, onde divulga muito da cultura e património de Mação e outros locais por onde passa. Mas Mação ganha, claramente.

Os registos são feitos para pesquisa científica, e Michel reconhece que não têm propriamente cuidado em termos estéticos ou artísticos. Usa máquinas compactas, e costumam estar sempre à mão, na bolsa que traz à cintura. Agora anda com uma Sony Cybershot com zoom até 20x, mas tem outras, uma delas com lente Zeiss que ajuda na macro-fotografia. O que interessa é que a máquina ande sempre consigo para permitir captar a espécie, sem perder o momento. O que por si só, é já uma grande aventura. “O inseto não espera…”, suspirou Michel.

O “compromisso entre o betão e a natureza”

Perguntamos se Michel, que tanto aprecia Mação, não se importaria de mudar-se para aquela vila pacata, onde tem o melhor de dois mundos: pessoas boas e vasto património natural.

Logo nos responde que vive numa espécie de “compromisso entre o betão e a natureza”, e explica porquê. Dália é uma mulher cosmopolita, gosta de grandes cidades, barulho e movimento. E Michel gosta precisamente do oposto. Deste modo, e para agradar aos dois, fazem férias em Mação, mas a residência continua onde está. Até porque na Bélgica estão filhos e netos, dos quais Dália não abdica. Por outro lado, comprar uma casa em Mação, com a sua idade, está fora de questão. Mas o amor fala mais alto, e assim se preservam as suas duas paixões: Dália e Mação. Mas se pudesse, confessou, Michel moraria todo o ano em Mação.

Dália, que também é sua companheira nesta aventura e participação na comunidade, ajuda Michel a continuar a descoberta, neste conceito de “ciência-cidadã”, e como acredita que “a vida é curta” eis que “se puder encontrar uma coisa nova” e deixar essa descoberta para servir a sociedade do futuro, sentir-se-á “útil” e a sua vida “fez sentido”.

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“O meu nome, para mim, não tem importância. No dia que morrer, se me disserem que a minha descoberta pode ajudar a fazer outras descobertas no futuro, eu morrerei tranquilo”, afirmou, como que a ditar um dos seus princípios. Apesar da sua carreira notável, Michel crê que ser cientista só faz sentido atualmente se se trabalhar coletivamente, numa “comunidade científica” e não se trabalha para “dar o nome” (às espécies ou descobertas) mas sim, para “fazer avançar a ciência”.

Enquanto nos contava toda a sua ligação à terra e esta sua prática em prol do bem comum, comentou que aquela noite seria uma boa noite para partir “à caça de insetos” e, “se tem humidade e calor, é ainda melhor para encontrar aranhas. Aqui há muitas”, contou, já de olhos postos no que iria fazer a seguir à entrevista, ansiando por fazer aquilo que o preenche: descobrir.

Uma nova família para um novo maçaense

Apesar de ainda ter algum receio em falar português, a verdade é que, após 20 anos de convívio com as pessoas e amigos, especialmente em Mação, Michel quer muito crer que já “não é um turista” na vila.

“Gosto de participar na vida daqui”, diz, dando conta dos inúmeros convites que lhe dirigem para matanças do porco na casa de um, ou para comer chanfana na casa de outro, ou até para ir a um casamento. Até Dália já é madrinha de uma pequena menina, filha de um casal amigo dali.

“Tenho contactos todo o ano, por Internet ou por telefone, com pessoas daqui. Quando estamos quase a vir para Portugal ou alguns meses antes, perguntam sempre quando chegamos”, falou, orgulhoso e sensibilizado pela família que ali o espera, ano após ano.

E vem à memória, de repente, um episódio em que, chegados à vila depois da longa viagem de carro, foram recebidos numa receção muito efusiva. Costuma ser sempre assim. “Um dia, quando chegámos, já estava a Cristina, o Luís, a Rosário, todos se juntam aqui”, disse, visivelmente empolgado.

Ponto assente é que, tanto Michel como Dália, participem nos usos, costumes e tradições da terra. “Se há uma procissão, nós vamos com as pessoas daqui. Para mim é muito importante viver como as pessoas daqui. Para mim, eu não sou turista. Gosto de participar”, reiterou.

E ainda que, para Michel, a Igreja tenha “um significado diferente”, participam nas festividades religiosas, sabendo e reconhecendo o valor que têm para as pessoas de Mação.

Um dos ícones selvagens de Mação, o cavalo de Vale do Grou, que Michel também já fotografou e filmou, com ajuda do amigo Luís, que o levou ao local. Diz Michel que os caçadores estão a começar a gostar de atirar no animal, algo que o deixa furioso. Foto: mediotejo.net

O amor de Michel a Mação resume-se às pessoas. Quando vem a Mação… ahh! As pessoas são o verdadeiro motivo para o regresso. “Quando venho até aqui é mais pelas pessoas do que pela natureza…”, referiu, meio a gaguejar, como quem tenta exprimir uma paixão que não se consegue explicar, apenas se sente. Hoje, a língua portuguesa já não é uma barreira, porque há outra língua que vem do coração. E esta faz com que todos se entendam perfeitamente. Mas verdade seja dita, Michel já percebe muito bem português, e conseguiu falar, fluentemente, durante duas horas seguidas na apresentação da sua exposição e na entrevista, salvo uma ou outra exceção mais científica ou técnica que teve de recorrer ao francês, mas pedindo sempre a Dália a ajuda para que, no vocabulário, existe a versão portuguesa do conceito.

Mação ganhou um novo maçaense no jogo do acaso. Alguém que valoriza o património, as gentes e a natureza. E que, mesmo a 2000 km ou noutro canto do país ou do mundo, leva consigo a vila que lhe roubou o coração numa noite de tempestade.

Entretanto já passava da meia noite. Despedimo-nos, porque Michel tem ainda uma caçada para fazer, pois há “insetos de 3 mm que se só se conseguem ver ampliando, são fantásticos”. E nós, não queremos atravessar-nos no caminho, nesta história que mais parece saída de um filme. Quis o destino que um belga se apaixonasse por Mação. E que Mação o acolhesse como um dos seus.

 

Joana Rita Santos

Formada em Jornalismo, faz da vida uma compilação de pequenos prazeres, onde não falta a escrita, a leitura, a fotografia, a música. Viciada no verbo Ir, nada supera o gozo de partir à descoberta das terras, das gentes, dos trilhos e da natureza... também por isto continua a crer no jornalismo de proximidade. Já esteve mais longe de forrar as paredes de casa com estantes de livros. Não troca a paz da consciência tranquila e a gargalhada dos seus por nada deste mundo.

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2 Comentários

  1. Parabéns á Joana Rita pelo seu belo trabalho aqui exposto, parabéns mais uma vez ao Michel pelas suas descobertas e pelo se trabalho, nao o conhecia fiquei a conhecer este Sr. descobridor. Bem haja a todos.

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