Natural de Ortiga, concelho de Mação, João de Matos Filipe nasceu no dia de Natal, findava o ano de 1947. Considera que ali cresceu e formou a sua personalidade e caráter, e nas suas raízes ganhou alento ao longo da vida para construir uma carreira profissional com sucesso na área da então Previdência Social. Além disso, conseguiu cumprir licenciatura em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mil ofícios, distingue-se como investigador de História local, dedicado às gentes, usos e costumes da sua terra. Um septuagenário que quer sentir-se “útil”, que ama o som da passarada e que tem orgulho de Ortiga e do seu povo, que como ele, se sentem parte do rio Tejo.
Conversámos na sede da Liga de Ortiga com aquele que, outrora, foi um “provinciano desenraizado” em Lisboa, tendo para lá partido em 1965, tinha 18 anos, depois de concorrer a um anúncio de jornal e sem saber ao que ia.
“Nessa altura para concorrermos a lugares públicos ou coisas do género, com menos de 18 anos, ainda por cima começando a trabalhar… nem pensar”. João Filipe tinha feito o 5º ano (atual 9º ano) do liceu, em Mação, mas dois anos antes do previsto. Teve de esperar. E lá concorreu ao “número não sei quantos do jornal tal…”. Tratava-se de um cargo para a Previdência Social.
E João, que nunca tinha ido à capital, não fazia ideia de que se tratava o emprego. Dois irmãos estavam a trabalhar em Lisboa, e outro no Brasil. Foi o que lhe valeu inicialmente.
O serviço, recordou, era na Caixa da Indústria e Abono de Família do Distrito de Lisboa, no nº 45 da Alameda Dom Afonso Henriques. “E o meu irmão lá me foi levar de autocarro, e lá me ia dizendo «Epá! Tu vai-me vendo o caminho! Olha que eu posso vir-te trazer, mas não te posso vir buscar!”. E assim foi, “lançado a Lisboa” um ortiguense.
Ali, recorda as “sérias” amizades e laços criados, que ainda hoje mantém. Bem como o “castigo” da sua vida, que apanhou enquanto aspirante provisório, tendo ido parar ao famoso informativo por ter feito o simples gesto de ajeitar o cinto na frente do presidente da instituição. Ali ficou até 1976, ano em que integrou a Caixa de Previdência e Abono de Família do Distrito de Santarém por motivos familiares. Com dois filhos pequenos e sem o luxo de uma creche, morando fora da cidade, eis que a sua esposa [que trabalhava na área da contabilidade na CP] propõe que voltem “à província”.
Nesse ano, estabelecem residência em Entroncamento, onde fez o 12º ano. Os mais altos voos começaram quando, trabalhando em Santarém, começou a ter de apanhar o comboio para Lisboa, para frequentar a faculdade, chegando a casa sempre no último horário, às 2h00. “Foi duro, mas consegui. Hoje, não sei se, olhando para trás, o faria novamente sabendo o que custou”, refletiu.
Em 1977, com a criação do Serviço Nacional de Saúde, integrou os Serviços Médico-Sociais, mas 8 anos depois, já licenciado, conseguiu entrar por concurso no quadro da ARS de Santarém. Muitos outros cargos se seguiram, até que se aposentou em 2008, acumulando então o cargo de Adjunto da Diretora do Centro Distrital de Segurança Social de Santarém e de Diretor da Unidade de Proteção Social e Cidadania.

Entre as mil e uma facetas e desempenhos, João Filipe sempre foi arranjando tempo para dedicar à investigação sobre História local, ou então fazendo o gosto de traduzir documentos com recurso aos seus dotes para a paleografia. “Nós também temos que ir fazendo alguma coisa por nós. Parar? Parar é morrer!, afirmou, determinado. E a conversa continua. Não há tempo a perder.
“Trabalhei até muito tarde, mas sempre bem disposto. E no dia seguinte, depois de aposentado, se tivesse de voltar, não deixava de ter o mesmo sorriso com que tinha ido no primeiro dia”, porque acredita que “no fundo, as instituições não são as paredes: são as pessoas”, e por este motivo “valeu a pena”.
Mas desengane-se quem pense que a aposentação o impede de continuar a prestar auxílio e a ajudar na sua área as IPSS do distrito, que bem conhece. Continua ativo, em regime pro bono.
A infância, os valores e a família
Hoje, João Filipe assume que as distâncias se encurtaram com a sua terra natal. “Por princípio, se alguém me quiser encontrar ao fim-de-semana, é em Ortiga”, indicou, dando a certeza de que, existindo ausência física do lugar, a presença está garantida na recolha de informação e investigação sobre a história e cultura da terra e das gentes.
As recordações ali, são imensas, mas há sítios que são referência e que marcaram a sua infância. As Lagoas. Onde ajudou a guardar o rebanho da família e onde recebeu as prendas ao terminar o 5º ano, tinha 15 anos.
“Foi uma alegria de todo o tamanho. E o meu pai, que era um caçador tremendo, aquilo que sabia fazer, ensinou-me a mim e aos meus irmãos”, contou, falando na arte da caça e na pontaria certeira, bem como matar e esfolar um borrego.
“Nesse ano”, prosseguiu, “o meu pai tirou-me a licença de caça, e a espingarda [que ainda hoje tem] era quase da minha altura”, referiu bastante saudoso, a lembrar essa descida até lá abaixo, às Lagoas.
A outra prenda foi que “nesse ano, eu não fui guardar as ovelhas e cabras”, mencionou. Contrataram para isso um pastor, que assegurou a tarefa durante as férias grandes de João Filipe. Mas as boas memórias que guarda, essas, surgem dos anos em que brincava, vigilante, a cuidar do rebanho e a banhar-se no Tejo com o companheiro António, num local onde “a natureza existem em estado puro”, no meio da fauna e flora, onde, mesmo que espreitasse, nunca destruiu um ninho. Uma sensibilidade que diz ter sido passada pela educação dada pelos seus pais e pela vivência com outros ortiguenses.
E é essa vivência que lhe aponta a Liga de Melhoramentos de Ortiga como “uma referência coletiva”, um local onde sempre se desenvolveu “o espírito de missão e união”.
O septuagenário, que ainda não encontrou o livro da sua vida e que chega a ter “6 ou 7 na cabeceira” que lê conforme a “predisposição” com que se deita, lembra com carinho e um grande sorriso o primeiro filme que viu, ainda em Lisboa.
«Os Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras», com realização de Ken Annakin e com Stuart Whitman e Sarah Miles no elenco principal. “Nunca mais me esqueci! Fartei-me de rir que nem um perdido”, e aqui deixa transparecer um pouco dessa alegria, como que voltando atrás no tempo, e mostrando-nos a sensação de assistir àquela alucinante comédia que retratava uma versão da corrida aérea entre Londres e Paris, em 1910.
E no meio de tanta boa disposição, assume que apesar de ter a paciência como uma das suas virtudes, não suporta discussões e aborrece-lhe assistir a intervenções “sem humildade” e de alguém que “não reconhece que não conhece” sobre o que fala.
Nos dias maus, e diz-nos que acontecia quando ainda estava no ativo, corria a “dedilhar a viola” (algo que também herdou do seu pai), no escritório de casa, e minutos depois, mais calmo, encontrava nos filhos um tranquilizante após um duro dia de trabalho.

A certa altura da sua vida, envolveu-se na vida política, corria o ano 2003. Integrou a Assembleia Municipal de Mação pela bancada do Partido Socialista, que ocupa até aos dias hoje. Diz que o fez “a convite do Engenheiro Jorge Silva”. Mas recorda o ano em que não quis ingressar em nenhuma lista do PS por respeito ao irmão, José, que se candidatou pelo PSD à Junta de freguesia de Ortiga. Fê-lo para “não influenciar ninguém contra o irmão”.
A valorização do património natural, histórico e cultural
Por Ortiga todos os tratam por “João”. E alguma coisa que precisem no campo académico ou inteletual, na vertente da solidariedade social ou simplesmente uma palavra de estímulo que ajude a prosseguir com a tradição, lá está “o João”. Disposto a ajudar na dinamização e agitação social da sua terra. E logo vem à memória as tradições que, de ano para ano, vai lembrando nas conversas de café pela importância de serem cumpridas. Caso da Serração das Velhas e o enfeitar das fontes.
Fala de Ortiga com um orgulho de pertença visível no brilho dos olhos e na determinação com que dá voz ao seu povo. Não tem dúvidas que, falar de Ortiga, é falar da Liga Regional de Melhoramentos (antiga Liga de Melhoramente e Defeza da Freguesia de Ortiga), da Junta de freguesia e do Centro de Solidariedade Social Nossa Senhora das Dores.
Mas a base de todas é o “sentido de entreajuda, de vizinhança” que sempre marcou a vivência da terra. “Esse sentimento não se perdeu, e foi ganhando um âmbito maior” em que a vizinhança não é só o vizinho imediatamente ao lado, mas também o que vive na rua transversal e “às tantas, é a freguesia inteira” que está pronta a ajudar. E exemplo mais claro não pode haver: o apoio incondicional dado ao conterrâneo “Guardião do Tejo”, Arlindo Consolado Marques.

No seu entendimento, houve um aproximar à coletividade principal, a Liga, “que transforma o espírito solidário de vizinhança num espírito de solidariedade coletiva”, onde todos se entreajuda. E surge o Tejo, aos pés da freguesia, que lhe abriu portas para o mundo, e lhe deu abertura para vingar nas lides da pesca ou mesmo na construção de barcos-picaretos.
Terra do último mestre calafate, Ortiga vive com vista privilegiada para o rio, e este teve forte papel no seu desenvolvimento económico. E por isso defende a criação do núcleo museológico na antiga Escola primária e foi autor do livro “Cultura e Artes da Pesca Tradicional no Rio Tejo”, que ajude a revisitar esse passado e a preservar a memória para as gerações futuras.
“Havia famílias que repartiam atividades, eram pescadores durante a noite e durante o dia eram serradores, caso dos Vermelhos. Mas havia muitas famílias que viviam exclusivamente do Tejo”, disse João Filipe, enumerando de seguidas as várias ‘companhas’ que desciam ao rio para pescar e depois vender, normalmente tarefa atribuída às mulheres, que punham a canastra à cabeça e vendiam o peixe fresco nas localidades vizinhas e na vila. Caso da ti’ Ana Mouca, que punha a rodilha na cabeça para suportar o peso sem magoar e se fazia ao caminho. Diz João Filipe que a senhora “ouvia com os olhos”.
E com toda esta ligação ao rio, o ortiguense lamenta, de semblante carregado, que se tenha chegado a este ponto, numa luta inglória e desigual entre o rio e o eminente fenómeno de poluição.
“Nós sentimo-nos como se estivéssemos doentes… sentimo-nos parte do rio…”, e apesar disso, o investigador mostra optar pelo conhecimento de causa como arma contra os problemas, chegando assim à sua solução. Aqui, reconhece que o Tejo é “um corpo que padece de três grandes doenças: a poluição, a falta de conetividade do rio e os desadequados caudais ecológicos”, afirmou.

João preocupa-se com o legado que a sua terra deixará, e ambiciona sobretudo um rio “não conspurcado”, referindo que esse sinal seria o suficiente para alavancar a economia de todas as zonas marginais/ribeirinhas. Especialmente a da sua Ortiga.
“Gosto muito da Ortiga, gosto muito das gentes de Ortiga, porque também elas, tal como eu, estão tocadas pelo Tejo como um elemento natural ao qual nós pertencemos. Não é o rio que nos pertence. Nós é que sentimos que pertencemos ao rio. Fomos ensinados desde miúdos a isso”, terminou. Com a voz macia, tocada pela sensibilidade. Aquela com que os ortiguenses falam e sentem o rio. As gentes. O coletivo.