Velas. São vendidas com diferentes preços, tamanhos e formas, das mais simples às mais complexas. O Tocheiro do Santuário de Fátima queima toneladas de cera todos os 13 de maio, mas hoje a afluência mantém-se ao longo do ano. As velas eletrónicas, já instaladas nas proximidades, estão longe de lhe fazer concorrência. Como começou este negócio? O mediotejo.net foi investigar, descobrindo que as primeiras velas, feitas artesanalmente nos anos 30, chegavam numa carroça de burros, a partir de Monsanto, no concelho de Alcanena, e de Cardigos, no concelho de Mação.
Desconhece-se com precisão as origens das velas no culto cristão. De uma forma geral, atribui-se os seus primórdios aos tempos da perseguição do cristianismo, em que os crentes se encontravam às escondidas, em locais sombrios, para praticar a sua fé, utilizando as velas para iluminação. Quando o culto foi assumido pelo Império Romano, as velas integraram-no, assumindo uma dimensão simbólica e espiritual.
Após os acontecimentos de 1917, construiu-se na Cova da Iria, sob o local da azinheira desaparecida, uma ermida, semelhante a muitas que se encontram construídas pela serra. Apesar do laicismo do regime republicano, a população continuou a acorrer a Fátima, criando-se ali um local de culto. A 13 de outubro de 1917 já ali se vendiam pagelas de Nossa Senhora. Era o início da exploração comercial de Fátima.

Já o comércio a grosso de velas, vendidas aos ambulantes que se instalavam na Cova da Iria, terá começado por volta dos anos 30 com um fabricante de velas de Monsanto, António Filipe. “Dentro do setor das velas não se sabe bem quem começou primeiro a vender velas em Fátima, se Monsanto se Cardigos”, explica Orlando Filipe, neto e representante da terceira geração de fabricantes. É certo, porém, que o avô de Orlando, António Filipe, terá sido um dos primeiros – se não o primeiro – a avançar com o negócio.
Orlando Filipe desconhece como terá surgido a ideia. Monsanto situa-se a 27 quilómetros de Fátima e Cardigos a 86 quilómetros. O atual presidente da Junta de Monsanto comenta que a produção de cera a partir das abelhas já existia por volta de 1900, havendo pela localidade lagares de mel. Após as Aparições de Fátima, ergueram-se na freguesia quatro a cinco fábricas de velas artesanais. Era “a vela da camadinha”, produzida de forma rudimentar, que sustentava pequenos negócios familiares.

António Filipe era pastor antes de se tornar fabricante de velas. “Fazia-as de forma muito rudimentar, terá sido para sobreviver”, argumenta. “O meu avô levava as velas numa carroça, passava pelas serras, demorando mais de um dia a chegar a Fátima. Aí dormia na Giesteira e voltava para trás”, recorda.
Vela e respetivo copo, de papel, custavam 10 tostões. “Naquela altura, nos anos 30, praticamente não havia loja nenhuma em Fátima. O meu avô vendia as velas aos vendedores ambulantes, que depois as iam vender junto ao Santuário de Fátima”, explica. “O comércio foi evoluindo, por vezes era chegar e voltar novamente”, para ir buscar mais quantidade.
Orlando tem poucas memórias do avô. “Era um homem trabalhador, dedicou-se sempre à apanha de azeite, aos rebanhos. Sei que ajudava muito as pessoas”, reflete. “Em 1950 comprou o seu primeiro automóvel”, constata.
A vela por camadas era inicialmente feita com cera de abelha. Posteriormente começou a usar-se o método da reciclagem da cera e, mais tarde, surgiu um novo material, a parafina. Por Monsanto apenas resistem as fábricas artesanais, de cariz familiar, num sector com imensa concorrência. “A concorrência é a nível internacional”, constata Orlando Filipe. “Vendemos para igrejas, floristas, agências funerárias. O meu pai dedicou-se à fábrica desde 1958, não teve outro emprego. Chegou a ter seis empregados”, recorda. Hoje só ali trabalham Orlando e a família.
Dos tempos do seu avô ainda se lembra da parceria que este criou com um empreendedor de Atouguia, no concelho de Ourém, que criou os primeiros “copos” de papel, usados para suster a vela enquanto derretia. Chamavam-se “fachos” e constituíram durante décadas o negócio da família de Emília Santos.
Ainda residente em Atouguia, Emília Santos recorda que a ideia de criar o copo de papel, com imagens de Fátima e alguns “dizeres” nas folhas, foi do pai, mas que, apesar de muitas vezes se ter perguntado como lhe surgira essa ideia, nunca lhe perguntou. “O avô do Orlando vinha de carroça vender velas em Fátima e o meu pai juntou-se a ele, era então um rapaz, teria cerca de 20 anos, vendendo os ‘fachos'”; recorda.

Completamente substituídos pelos atuais copos de plástico, o facho de papel sobreviveu até há cerca de uma década, quando Emília Santos acabou com a sua comercialização. Ainda faz por encomenda, se lhe pedirem, mas são raríssimas. “O papel queimava-se com facilidade”, o que motivava algumas queixas, além de que a matéria prima também foi encarecendo. Face à evolução e às exigências do mercado, foi a própria Emília a avançar com a ideia dos “fachos” de plástico, garante ao mediotejo.net. Reconhece, porém, que a ideia teve um reverso menos bom para o seu negócio: foi completamente suplantada pela enorme, e competitiva, concorrência.
Dos seus tempos de criança recorda o trabalho, feito exclusivamente entre pais e filhos, a colar os fachos de papel. Um trabalho feito por etapas, que conhecia de cor e para o qual era necessário ganhar algum calo, de colagem e dobragem. “Era caro por ser tudo manual. Os últimos já custavam oito escudos”, recorda.
Emília Santos é a memória viva das transformações de Fátima dos últimos 50 anos. “Numa vinda do Papa talvez se vendessem uns 50 mil fachos”, estima. Hoje os número são outros e num único 13 de maio vende-se tanto como antigamente em um ano. “Entretanto começou a chegar a concorrência”, constata, que foi implacável para este comércio familiar e rudimentar que se criara em torno das Aparições.
“Concorrência” é o termo comum a Orlando Filipe e Emília Santos. Há 70/80 anos, os seus pais e avós, cuja vida era a agricultura ou o pastoreio, viram oportunidades e arriscaram. Estes pequenos negócios subsistiram, alterando-se. Orlando Filipe procura agora novos investimentos, Emília Santos dedica-se à venda e revenda de artigos religiosos.
Hoje, reconhecem ambos, os tempos mudaram e Fátima entrou no mundo do comércio de massas, com outras regras e outros valores (morais e monetários), com os quais não conseguem competir.