Paulo Moura é um dos mais premiados jornalistas portugueses
Terão as visões de Lúcia influenciado decisivamente a História do século XX ou terá a vidente sido usada, durante uma vida inteira de clausura em conventos, pelos interesses de várias potências mundiais? Este é o ponto de partida do novo livro de Paulo Moura, um dos mais premiados jornalistas portugueses, que construiu a sua carreira como repórter no jornal Público, cobrindo os principais conflitos mundiais ao longo dos últimos 25 anos.

***

Excerto do livro “As guerras de Fátima”, de Paulo Moura

“As Guerras de Fátima”, de Paulo Moura, Edição Elsinore, 260 pág., 17,69€

Em 1954 os franceses já tinham perdido a primeira guerra da Indochina, não obstante toda a ajuda militar que os americanos lhe forneciam. Desde 1950, haviam chegado da América 150 mil armas de fogo, 340 aviões de guerra e 350 navios, num total de 400 mil toneladas de material bélico.

A derrota levou aos Acordos de Genebra, em que os EUA, a URSS, a China, a França e a Grã-Bretanha, além dos países envolvidos, tentaram regular a situação na Coreia e no Vietname. Segundo os documentos finais, o Vietname seria temporariamente dividido em dois: uma zona norte governada pelo Viet-Minh e uma zona sul, chefiada pelo Estado do Vietname, sob o imperador Bao Dai. Em Julho de 1956 haveria eleições em todo o país, que seria unificado sob o governo que fosse eleito pela população. As delegações dos EUA e do Estado do Vietname, porém, não assinaram este acordo. Não confiavam no resultado das eleições, que muito provavelmente dariam a vitória a Ho Chi Minh, o líder comunista do Norte, e tinham outros planos para a região. O espírito de cruzada tinha-se apoderado das instâncias do poder nos EUA, com o apoio do Vaticano. O Papa Pio XII, através do seu braço direito nos EUA, o Cardeal Spellman, em conjunto com o Secretário de Estado americano, John Foster Dulles, e o seu irmão, o director da CIA, Allen Dulles, formavam uma clique católica que estava empenhada em lutar contra o comunismo por todos os meios. Não viam qualquer interesse numa solução pacífica para o Vietname, que consideravam dominado pelos interesses soviéticos, que era preciso derrotar sem compromissos.
O Presidente Dwight Eisenhower expôs a sua célebre teoria do dominó: “Se colocarem uma série de peças de dominó em fila e empurrarem a primeira, ela vai cair e empurrar as outras, até à última. Se permitirmos que os comunistas conquistem o Vietname, corremos o risco de isso provocar uma reacção em cadeia, e todos os estados da Ásia Oriental se tornarão comunistas, um após o outro”.
A via militar afigurava-se, portanto, como a mais segura. Numa estreita colaboração com a Santa Sé, hoje amplamente documentada, Washington empenhou-se em evitar as eleições previstas pelos Acordos de Genebra. A estratégia incluía ainda encontrar um líder de confiança para o Vietname do Sul, e uma campanha de catolização das instituições.
A escolha de Ngo Dinh Diem para a liderança do país foi totalmente manipulada por Spellman e os irmãos Dulles, com a colaboração do Vaticano. O fanatismo católico de Diem só era ultrapassado pelo seu fanatismo anti-comunista. Considerava-se nobre, por provir de uma família convertida ao cristianismo pelos portugueses no século XVII, e tinha colaborado com as autoridades francesas, antes de entrar num convento e começar a conspirar contra elas. Depois auto-exilou-se, primeiro no Japão, depois nos EUA, com o irmão, que foi bispo em Roma e se encontrava regularmente com Pio XII.
Nos EUA, Diem conheceu o então senador John F. Kennedy, o cardeal Spellman e, através deles, John Foster Dulles. Foi este que informou os franceses no Vietname de que Diem seria o Presidente, a nomear pelo imperador, Bao Dai.

Este cumpriu a ordem, e Ngo Dinh Diem tomou posse, com poderes muito alargados, em Julho de 1954, absolutamente convencido, como explicou, de que tinha sido escolhido não pelos americanos, mas por Deus.
As primeiras medidas foram nomear católicos para todos os cargos importantes, nos poderes político e militar. Depois, tratou de reforçar a segurança e criar leis de excepção, para preparar as eventuais reacções à sua próxima grande decisão: recusar-se a organizar eleições na data prevista.
A comunidade internacional aceitou o facto consumado, e Diem começou a preparar a próxima jogada, industriado por Spellman e pela CIA. Como a maior parte dos católicos vietnamitas vivia no território do Norte, o novo líder do Sul organizou um grande êxodo, de quase um milhão de pessoas.
As populações católicas no Vietname do Norte, agora controlado pelos comunistas, gozavam de grandes privilégios, herdados do tempo do colonialismo francês. Quando começou a guerra entre os vietnamitas e os franceses, muitos desses católicos estiveram ao lado dos franceses. E quando esse conflito terminou, mantiveram-se organizados em milícias e grupos para-militares, numa espécie, pelo menos em certas regiões, de Estado dentro do Estado.
Apesar disso, as autoridades comunistas de Hanoi trataram os católicos com respeito. Ho Chi Minh chegou a convidar católicos para o Governo. Mas retiraram-lhe privilégios, colocando-os em pé de igualdade, face à lei, com os budistas e outros grupos religiosos, o que provocou reacções, por vezes violentas. Muitas vezes, manifestações e acções de sabotagem foram encorajadas ou organizadas por agentes infiltrados do Vietname do Sul, treinados pela CIA.
Outra forma de lançar os católicos contra as autoridades era espalhar rumores de que seriam perseguidos e presos, ou forçados à conversão. Também correu o boato (não totalmente descabido) de que o Vietname do Norte seria alvo de um ataque nuclear, por parte dos americanos. Em conclusão, gritavam permanentemente os propagandistas na rádio vietnamita de Saigão, a única salvação para os católicos do Norte seria a fuga para o território do Sul, onde seriam bem recebidos e protegidos.
O medo foi a grande táctica usada. Mas como a motivação negativa não seria suficiente para arrancar um milhão de pessoas das suas casas e das suas terras, houve recurso a uma dramatização extrema, de cariz religioso. Falava-se de um regime político de inspiração católica, de um país onde a ordem vigente era a pura aplicação da lei de Deus – o que Diem de facto tentaria criar, com o apoio dos EUA e do Papa.
E dizia-se que a imagem da Nossa Senhora de Fátima, que se encontrava em Hanói, fora resgatada aos comunistas e levada para o Vietname do Sul. Milhões de panfletos distribuídos por todo o território do Norte explicavam que a Mãe de Deus, a Virgem de Fátima, já fugira para o Sul, porque queria viver sob um governo católico, pelo que todos os verdadeiros católicos deveriam segui-la.
Foi criado um Comité Central de Evacuação, distribuídos folhetos com instruções para o êxodo. “Queridos irmãos e irmãs católicos. Centenas de aviões gigantes estão à vossa espera para vos transportarem gratuitamente para Saigão”, lia-se numa brochura concebida por padres católicos americanos. “Lá, ser-vos-ão oferecidos abrigos, empregos, férteis campos de arroz. Se ficarem no Norte, espera-vos a fome e a danação das vossas almas”.
E como que para tornar tudo mais real, mais tangível, recorreu-se à própria imagem da Virgem de Fátima, colocada num andor e levada a viajar por cidades e aldeias, em procissões encabeçadas por padres e pregadores. Não era uma estátua qualquer, explicavam estes, nos sermões e panfletos que acompanhavam a romaria. Era uma imagem oferecida pelo próprio Papa, Pio XII, aos católicos vietnamitas de Haiphong, na peregrinação que fizeram a Roma. O Papa tinha abençoado pessoalmente a estátua, e explicado que a Nossa Senhora era especialmente importante para a Ásia e o Vietname.
Juntamente com esta história, vinha a de que a Virgem estava em fuga dos comunistas, que tinha sido salva dos comunistas ateus, que eram o demónio. Ia partir para o Vietname do Sul, que tinha um presidente católico, e tinha uma mensagem para todos os católicos do Vietname, que deveriam imitá-la.
Em consequência, as populações debandaram em massa. Aldeias inteiras marcharam atrás do seu pároco, rumo ao Sul. Diem pediu ajuda aos EUA para organizar o êxodo, que seria concedida. Foi enviada a Sétima Esquadra da Marinha, com navios cheios de padres rezando missas permanentemente, num transe emocional que contagiava toda a população. Aviões americanos e franceses chegaram também para ajudar no transporte dos refugiados.
À entrada em Saigão, os navios e aviões eram recebidos pelo próprio Presidente ou o seu irmão bispo. No Natal desse ano, o Cardeal Spellman veio dos EUA, como representante especial do Papa e das Forças Armadas Americanas, trazendo presentes em dinheiro da parte dos católicos americanos. Seria apenas uma das muitas visitas que Spellman faria ao Vietname durante a guerra que ele dizia ser dos “soldados de Cristo” para “salvar a civilização cristã”. Nos EUA, chamariam à guerra do Vietname a “guerra de Spellman”.

Linhas de ajuda financeira aos refugiados foram criadas nos EUA, sob a direcção do vice-presidente Richard Nixon, para ajudar “os católicos em fuga da perseguição, semelhante à que sofreram os primeiros cristãos sob o jugo de Nero”. Uma transferência de 40 milhões de dólares do Governo americano foi feita imediatamente, para financiar a instalação dos católicos em Saigão e arredores. Num país onde o rendimento médio da população budista não chegava a 85 dólares por ano. Depois foram enviadas milhões de toneladas de comida, instrumentos agrícolas, veículos, etc. Toda a distribuição era controlada pelos padres, pelo que só chegava aos católicos.
Com a evacuação do Vietname do Norte da totalidade da sua população católica, nada impedia agora o Governo de Diem e os EUA de lançar a guerra contra os comunistas do Norte e os grupos de guerrilheiros comunistas do Sul. Por outro lado, Diem podia entregar-se à construção de um estado católico, autoritário e totalitário, através do qual o Vaticano podia exercer, usando a rede hierárquica da Igreja, a sua influência na Ásia.
Mas a existência de um tal estado-modelo totalmente católico no coração do Sudeste asiático tinha os seus problemas, o menor dos quais não era decerto o facto de a maioria da população ser budista.
Os mentores do plano, em Roma e em Washington, sabiam que seria necessário oprimir ou neutralizar todos os potenciais opositores ao regime.
Além das forças policiais e militares, esta opressão foi perpetrada por milícias informais de católicos, denominadas Unidades Móveis Católicas para a Defesa da Cristandade, financiadas pelo Governo e treinadas e ajudadas pelos militares americanos.
Muitos dos recém-chegados imigrantes do Norte entraram directamente no Governo, na Polícia e no Exército ou nos melhores cargos da Função Pública, o que implicava o despedimento de milhares de budistas. As queixas destes eram canalizadas, em vão, para o Gabinete de Investigação Vietnamita, constituído por funcionários da missão americana e apoiado por uma milícia de 40 mil católicos.
Os líderes das comunidades rurais deixaram de ser eleitos pela população, para passarem a ser católicos nomeados pelo Governo. Aos párocos locais foram atribuídas funções administrativas e políticas. Os bispos tinham honras de estado em todas as cerimónias públicas.

A rádio oficial transmitia propaganda católica permanentemente, as lideranças de todas as instituições foram entregues a católicos, os melhores empregos eram preenchidos por católicos, foram criadas milhares de escolas católicas, e encerradas quase todas as outras. Muitos funcionários da administração pública convertiam-se, para não arriscar o despedimento. Até ao fim do ano de 1954, cerca de 33 mil não católicos passaram a sê-lo. Parte dos fundos de auxílio vindos dos EUA foram aplicados, veio a saber-se, em propaganda específica para a conversão de budistas ao catolicismo.
Uma das formas de encorajar estas conversões era a recusa de distribuir as ajudas que vinham dos EUA a populações não-católicas. A discriminação tornou-se cada vez mais assumida e aberta, com o objectivo confesso de, a médio prazo, eliminar o budismo e outras religiões do país. A rivalidade entre as várias seitas foi criteriosamente fomentada, dando lugar a verdadeiras batalhas intestinas nas ruas de Saigão. As facções cristãs não católicas foram também perseguidas.
No plano político, Diem decidiu, através do expediente de um referendo falsificado, demitir o imperador Bao Dai, proclamando a República e concentrando todo o poder, como Presidente auto-proclamado. No ano seguinte, promulgou uma nova Constituição, que, numa alínea,  conferia ao Presidente poderes excepcionais. Um decreto de Janeiro 1956 dizia: “Indivíduos considerados perigosos para a defesa nacional e a segurança comum podem ser confinados, por ordem executiva, a um campo de concentração”. Tudo isto com o apoio absoluto e incondicional de Washington.
Seguiu-se uma campanha anti-comunista, copiada da lançada por McCarthy nos EUA, mas de características ainda mais exageradas e absurdas. Crianças eram encorajadas a denunciar os pais, os alunos a denunciar os professores. Monges budistas eram presos sem julgamento, rusgas e purgas eram dirigidas conta pessoas suspeitas de não serem suficientemente anti-comunistas.

Denúncias, prisões em massa, desaparecimentos, assassinatos, deportações, interrogatórios sob tortura tornaram-se práticas comuns. Entre 1955 e 1960, calcula-se que tenham sido assassinadas, por motivos politico-religiosos, 80 mil pessoas. Foram presas 275 mil, e 500 mil enviadas para campos de concentração.
O totalitarismo estava instalado, e nem faltava o culto de personalidade, com imagens de Diem expostas em tamanho gigante por todo o país, sempre em ligação com símbolos católicos, principalmente a Nossa Senhora de Fátima. Era o Estado fundamentalista católico, a fazer lembrar o estado católico independente da Croácia de 1941, de Anton Pavelic, patrocinado por Hitler e Pio XII.
Por fim, Ngo Dinh Diem decidiu atacar directa e abertamente a maior religião do país, o budismo. A reacção era inevitável. Surgiram manifestações violentas e motins, confrontos entre milícias, greves de fome. O regime tinha aberto duas frentes de guerra, contra os comunistas e contra os budistas.
Nacionalistas e comunistas uniram-se numa frente comum, a Frente Nacional para a Libertação do Vietname (FNL), para combater o Governo, cometendo atentados e sequestros. Os americanos passaram a chamar-lhes, de forma depreciativa, os vietcong.
Todas as hipóteses de um acordo de paz, possíveis após a derrota francesa e as conversações de Genebra, se tinham desvanecido. A facção fundamentalista americana, em conjunto com o Papado, tinha forçado os acontecimentos em direcção à guerra total.

A Virgem fica até ao fim

Em 1959, o Comité Central do regime do Vietname do Norte aprovou e apoiou uma sublevação armada dos comunistas/nacionalistas do Sul. E começou a enviar tropas para os apoiar.
Nos EUA, Kennedy tomava posse como Presidente, em 1960. A sua primeira abordagem política foi a renitência a enviar tropas para o Vietname, confiante de que o regime de Diem resistiria sozinho. O sector radical católico, em coro com o vaticano, discordava. Eram favoráveis à guerra, se necessário recorrendo às armas nucleares.
Como o regime de Diem se mostrasse cada vez mais enfraquecido, minado pelo fanatismo e pela corrupção, os americanos começaram a pensar em substituir o líder. A CIA contactou com os generais descontentes e fez saber que apoiaria um golpe de estado. A 1 de Novembro de 1963, Diem foi demitido, e executado no dia seguinte, com o irmão, chefe da polícia secreta, dentro de um carro numa rua de Saigão. Três semanas depois, Kennedy seria também assassinado.
Os americanos, que tinham apoiado imediatamente os golpistas, anunciando que seria agora possível desencadear uma “guerra curta” no Vietname, enviaram militares, embora disfarçados de “conselheiros”.

A instabilidade aumentou vertiginosamente no país dividido, e Washington enviou helicópteros de guerra e militares das forças especiais, os Boinas Verdes. Em 1964, sob o pretexto de um alegado ataque de torpedeiros norte-vietnamitas a um destroyer americano em missão de espionagem no Golfo de Tonkin, os americanos retaliaram com um ataque aéreo, aprovando a seguir no Congresso uma resolução permitindo a invasão, sem declaração de guerra formal.
As operações começaram a 2 de Março de 1965, já sob o comando do novo Presidente americano, Lyndon Johnson. Em três anos de bombardeamentos, foi lançado um milhão de toneladas de mísseis e bombas. As forças terrestres entraram no território pela mesma altura. Em Março, chegaram 3500 soldados, que em Dezembro já eram 200 mil.
Quanto ao incidente de Tonkin, veio a provar-se em 2005 que foi forjado. Nenhum torpedeiro vietnamita se aproximara do navio-espião americano.

Foi nesse ano de 1965, já em plena guerra aberta, que o Exército Azul promoveu a grande peregrinação da imagem da Virgem pelo território vietnamita. Percorreu mil quilómetros por estradas de terra minadas pelas milícias da FNL, desceu o rio Mekong, com o intuito de elevar o moral, promover o fervor católico e a propaganda anti-comunista.
O clero e as lideranças militares, vietnamitas e americanas, perceberam que a presença da estátua vinda de Fátima funcionava como um poderoso instrumento psicológico, numa guerra que se pressentia perdida à partida. Pediram ao Exército Azul que mantivesse a imagem no território, enquanto durasse o conflito.
Mas a missão definida para a Virgem Peregrina era viajar pelo mundo, pelo que John Haffert pensou logo numa solução: seria esculpida e devidamente benzida uma nova estátua, expressamente para o Vietname. Mas uma vez inventada a ideia de uma Virgem Peregrina Nacional, não havia razão para não estender a prerrogativa a outros países.
Como, em 1967, o Papa visitou Fátima, aproveitou para benzer de uma vez 25 Virgens Nacionais. Uma delegação do Exército Azul do Vietname, de 60 pessoas, viajou para Fátima para receber a sua. Perante mais de um milhão de pessoas, dirigiram-se, com a estátua, ao altar onde Paulo VI os recebeu, abençoando a imagem.
De regresso ao Vietname, fizeram escala em Roma, para uma audiência mais prolongada com o Papa.
A partir de Outubro do mesmo ano, John Haffert e o Bispo de Leiria partiram, no Boeing do Exército Azul, numa viagem pelo mundo, para entregar Virgens Nacionais em 24 países.
Mas não era a primeira vez que Fátima recebia membros do clero e do Exército Azul do Vietname. No seu país, a imagem não teria descanso em todos os anos da guerra. O Exército Azul trataria de a levar por todo o território, mantendo-a em permanente contacto com as unidades militares. A ligação entre o Exército Azul e os Exércitos americano e sul-vietnamita era estreita e orgânica. O chefe supremo do Exército Azul no Vietname era um coronel, Du Sinh Tu, que teve instrução militar em Fort Bragg, nos EUA. Foi lá que conheceu o Exército Azul, que o recrutou.
Durante o conflito, e segundo o testemunho do primeiro secretário-geral da organização, Khong Trung Luu, citado por John Haffert, todos os católicos que combatiam pelo lado do regime do Sul se alistaram no Exército Azul. Era, mais de 300 mil.
Em 1964, Sihn Tu e o Arcebispo de Saigão dirigiram uma missa na capital do Vietname do Sul, assistida por vários milhares de pessoas. De Roma, o Papa enviou na ocasião a sua benção para o Exército Azul, através do Arcebispo. No ano seguinte, este e toda a hierarquia católica vietnamita viajaram para Roma, para uma reunião com o papa, e daí para Fátima.

A conexão com o santuário da Cova de Iria manteve-se, e foi-se intensificando à medida que o conflito militar se tornava mais crítico.  À falta de uma causa inteligível e convincente, a Virgem de Fátima foi usada como pólo simbólico aglutinador contra o inimigo comunista e demoníaco.

Tentava-se trasladar para o sudeste asiático a dicotomia criada nos EUA entre o povo de Deus e os ateus possuídos pelo demónio – os comunistas. O que, obviamente, não foi eficaz. A própria designação que os americanos inventaram para o inimigo comunista no Vietname – vietcong, que significa vietnamita comunista – não produziu o resultado esperado. Os especialistas da CIA presumiam, erradamente, que o termo ‘comunista’ tinha na Ásia a mesma conotação negativa e assustadora que o McCarthismo lhe conferira nos EUA.
Para criar uma noção de unidade e de inimigo comum, precisavam de uma referência autoritária, que fosse ao mesmo tempo pólo de sedução e fonte de legitimidade. A Virgem prestou-se a esse papel, embora um pouco à revelia de todos. Não passou de um expediente, artificial, deslocado, apesar de, principalmente nos últimos e mais difíceis anos do conflito, não ter mãos a medir na distribuição de milagres e aparições celestiais.
Esperava-se que a sua ordem de conversão da Rússia e dos comunistas fosse tomada por um dogma, na ilusão de que todos, mesmo a maioria budista do país, fossem de súbito tocados pela evidência de que havia um único e verdadeiro Deus, representado pelo Papa e pela Nossa Senhora de Fátima, e que era preciso estar do lado Dele.
John Haffert recorda nas suas Memórias, emocionado: “Homens como o coronel Tu e muitos milhares de pessoas de todas as crenças estavam reunidos para rezar a Deus de uma maneira unida pela primeira vez, nos seus 4000 anos de História, finalmente reconhecendo, como poucas nações na Terra alguma vez fizeram, que eram todos irmãos no Criador, e que esta luta que gradualmente engolia o Mundo era basicamente entre o Bem e o Mal, entre Deus e o anti-Deus”.

O martírio asiático do Exército Azul

Quando os próprios americanos deixaram de acreditar na possibilidade de levar a melhor no “atoleiro” do Vietname, e retiraram as suas tropas, deixaram para trás os milhares de “soldados” vietnamitas do Exército Azul.
Logo a seguir, as forças do Norte invadiram o Sul, eliminaram rapidamente todos os focos de resistência, e começou a retaliação. Campos de trabalhos forçados foram criados para os membros so Exército Azul. Cerca de 100 mil foram condenados à morte, segundo Khong Trung Luu, antigo secretário-geral, que conseguiu fugir para os EUA.
Na versão oficial do Exército Azul, tratou-se de um período de martírio e glória. Nenhum eco, nas suas fileiras, da onda de reflexão catártica que atravessou a sociedade americana após o desastre do Vietname

A história da nova época passou a ser contada através de milagres e prodígios que mostravam, segundo a abundante literatura do Apostolado, como a Virgem de Fátima não tinha deixado de ser rainha no Vietname.
O Arcebispo de Saigão, Máximo Angelo Palmas, conta o caso de um soldado, Stephen Ho-Ngoc-Anh, que se curou milagrosamente no Santuário de Nossa Senhora de Fátima que existia nos subúrbios de Saigão. A construção do pequeno altar, que se tornaria local de peregrinação, deveu-se a uma promessa.

Numa das primeiras viagens da estátua peregrina, o carro onde seguia avariou (na versão dos relatos do Exército Azul, “imobilizou-se inexplicavelmente”). Os mecânicos não conseguiram resolver o problema, mas um dos padres da comitiva teve e ideia de prometer a Nossa Senhora que, se ela permitisse a continuação da viagem, construiria ali mesmo um monumento em sua honra. O motor lá pegou, e o padre construiu pouco depois o pequeno santuário na berma do troço oeste da estrada nacional 13 que viria a ser o principal centro mariano de todo o Vietname. Em agradecimento, a Virgem, segundo relatos fidedignos, começou a aparecer no local, com grande frequência.

Stephen Ho-Ngoc-Anh era pára-quedista do exército do Sul. Num dos saltos que fez sobre o território do Norte, foi capturado pelo Vietcong, interrogado e brutalmente torturado. Quando regressou, na sequência de uma troca de prisioneiros entre os dois exércitos, tinha as pernas paralisadas.
Após a queda de Saigão, em 1975, foi condenado a um programa de trabalhos forçados. Ao escavar uma vala com a força dos braços, apesar de se deslocar numa cadeira de rodas, caiu num buraco, onde ficou toda a noite. Mais morto do que vivo, dirigiu-se no dia seguinte ao santuário de Fátima da estrada nacional 13, onde viu, contou ele, a estátua a chorar, com lágrimas verdadeiras. De repente, ficou curado. Nossa Senhora apareceu-lhe então, para lhe recomendar a oração do Terço e prometer a conversão dois comunistas.

Acrescentou ainda que voltaria no dia 14 de cada mês, às 10 da manhã, o que realmente aconteceu.
Os carcereiros ficaram espantados Stephen Ho-Ngoc-Anh voltou ao campo de trabalhos forçados e contou o sucedido.
“Como é que te curaste?”, perguntaram.
“Nossa Senhora curou-me”, respondeu.

Como quem não gosta de ver o seu trabalho desrespeitado, os guardas bateram-lhe de novo. Desta vez desfiguraram-lhe o rosto, a murro. Stephan voltou ao santuário e a seguir comunicou aos guardas que em dez dias estaria curado, garantia da Nossa Senhora. Troçaram dele. E acharam que era uma boa oportunidade para o desmascarar. Ao décimo dia, como ele apresentasse ainda a cara deformada e ensanguentada, colocaram-no numa plataforma elevada, para que todos os prisioneiros pudessem testemunhar a fraude que eram os milagres da virgem.
Stephan subiu ao estrado e, de repente, toda as feridas sararam, perante admiração geral. Segundo um relato citado por Khong Trung Luu, surgiram no momento umas palavras, escritas por mão invisível num grande quadro: “A Mãe virá Salvar o Vietname”.
A propósito, Luu escreveu, no panfleto Celestian Wonders in Red Vietnam: “Não é significativo que o Vietname do Sul, depois de ter sido abandonado pelo Mundo em 1975, tenha sido abençoado com repetidas visitas da Rainha do Mundo, oferecendo mensagens de nacional e internacional importância?”

O secretário-geral, que escrevia já fora do Vietname, onde o seu único irmão fora condenado à morte, tinha consciência de que não havia misericórdia para os que o novo regime considerava colaboracionistas. “Os sofrimentos que nós hoje ouvimos contar no Vietname são inumeráveis e inacreditáveis. As pessoas são literalmente (física e espiritualmente) torturadas. Eu sinto que nós fomos escolhidos por Nossa Senhora para a servirmos de uma maneira especial, como vítimas”.

***

Paulo Moura é escritor e repórter freelancer português, nascido no Porto em 1959. Estudou História e Jornalismo e, durante 23 anos, foi jornalista do Público. Exerceu funções de correspondente em Nova Iorque e de editor da revista Pública, e tem feito reportagens em zonas de crise por todo o mundo. Fez a cobertura jornalística de conflitos no Kosovo, Afeganistão, Iraque, Chechénia, Argélia, Angola, Caxemira, Mauritânia, Israel, Haiti, Turquia, China, Sudão, Egipto, Líbia e muitas outras regiões. Ganhou vários prémios (Gazeta, AMI – Assistência Médica Internacional, ACIDI – Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural, Clube Português de Imprensa, FLAD – Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, Comissão Europeia, UNESCO, Lettre Ulisses, Lorenzo Natali, etc.). É professor de Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa, e autor de oito livros, entre os quais Depois do Fim (ed. Elsinore, 2016) — crónica dos principais conflitos armados dos últimos 25 anos, escrita a partir dos diários de guerra que guardou —, Extremo Ocidental (ed. Elsinore, 2016) — relato documental da sua viagem de mota pela costa portuguesa — e a biografia de Otelo Saraiva de Carvalho. Mantém um blogue de reportagens e crónicas intitulado Repórter à Solta, bem como o sítio paulomoura.net.

Entre na conversa

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *