Tina Jofre fez do fado vida e da vida fado. As histórias foram ganhando voz própria e a companhia dos instrumentos ao longo dos anos, transformando a música da saudade em pequenas revelações de si mesma e da terra que considera “o seu chão”. Quisemos conhecer mais do que partilha quando canta e falámos com a fadista de Constância sobre os 55 anos de carreira e a estreia no palco das Festas de Nossa Senhora da Boa Viagem a 2 de abril.
O encontro ficou marcado na Praça Alexandre Herculano e é junto da esplanada do Café Vanda, onde Marcelo Rebelo de Sousa já tentou a sorte nas raspadinhas, que encontramos Tina Jofre, a fadista “nascida, criada e casada em Constância” que partilha vida na primeira pessoa nos fados que interpretou ao longo dos últimos 55 anos. Temas de nomes de relevo também foram cantados, mas as letras com mais significado são as que traduzem o que sentiu na alma ao longo da vida.
Um fado que arriscamos chamar de “biográfico” e que traz no peito. Não falamos (apenas) em sentido figurado. O fado está-lhe no coração, como canta em “O meu amor é o fado” e nos confirmaria mais tarde, mas no dia da entrevista também surge na guitarra portuguesa que lhe pende no fio e espalha-se pelo resto do corpo até às claves de sol dos brincos.
Seguimos caminho para o miradouro perto do Anfiteatro dos Rios, com vista privilegiada para o local onde os rios mantêm uma dança intemporal. Da “Pugna Tage”, que evoca o ímpeto provocado no rio Tejo pela confluência dos caudais e da qual deriva “Punhete” – topónimo substituído por “Notável Vila de Constância” no decreto assinado por D. Maria II a 7 de dezembro de 1836 – pouco resta.

Nesta manhã de sol, Tejo e Zêzere encontram-se de forma serena num silêncio apenas quebrado pelo chilrear pontual dos pássaros e o som constante que denuncia a proximidade da fábrica ligada à produção de celulose de eucalipto. Enquanto caminha para o gradeamento, Tina Jofre vai recordando as ruínas da Torre de Punhete que marcou a paisagem durante séculos. “Aqui ainda está uma parte da muralha”, acrescenta quando chegamos mais perto da margem.
No entanto, não são as memórias de espreitar nas grades através da quais via a “sala abobada” que marcam a fadista. O local da Torre de Punhete viria a transformar-se no quintal da casa de família, depois de deixar a da praça onde nos encontrámos. Onde vemos um lago artificial pintado de azul, ela recorda as cores da antiga cozinha e perto da relva em que dá vontade de esticar esteve em tempos a cama em que se deitava.
Algures na habitação estaria a sua cédula pessoal com o registo do nascimento de Maria Cesaltina Ferreira, nomes próprios como os da mãe, em 1947 na “freguesia de São Julião”. Foi ali que deu os primeiros passos, naquele que diz ser o seu “chão”, firmados com o avançar da idade que lhe trouxe a certeza de que queria fazer do fado vida e da vida fado. Foi também dali que partiu vezes sem conta para navegar na “Joaninha”, barco construído pelo pai marítimo na altura em que o rio “era uma estrada” e no qual a mãe lavava a roupa.
Momentos imortalizados em “Velas ao vento” e “Lavava no rio lavava”, dois temas interpretados entre “as cantigas que começaram muito cedo”, na altura dos teatros amadores e dos artistas que integravam o círculo privado dos padrinhos e a “lideraram nestas artes de teatro e música”. Os primeiros contactos “artísticos” foram feitos nos serões e nas desfolhadas, mas o momento que a memória rotulou de estreia é na feira que se realizava a 3 de agosto.

O primeiro microfone, novidade na altura, chegou-lhe às mãos quando tinha seis anos e o mundo conheceu a fadista através da “Lenda das Algas”, que faz parte do primeiro assinado como Cesal. A construção da fábrica da CAIMA no concelho, durante a década de 60, trouxe os convívios culturais dos trabalhadores e o primeiro contacto com o seu “instrumento de eleição, o acordeão, que tocava nas festas acompanhada pelo irmão na bateria e agenciada pelo pai.
As aulas particulares em casa com um acordeonista deram lugar às de música e canto no Conservatório. Seguiram-se 20 anos no Orfeão de Abrantes, alguns já com a “carteira profissional” que ficaria arrumada durante os tempos em que a faceta musical deu lugar à de esposa e a margem ribeirinha foi substituída pelas savanas africanas nas viagens em que acompanhou “o melhor marido do mundo”, Rui Jofre, antigo piloto da Base Aérea de Tancos.
O concelho de Vila Nova da Barquinha também faz parte das suas memórias e dos seus fados. Morou na base militar localizada na freguesia da Praia do Ribatejo, depois de casar em 1968, e a relação com a vila ribeirinha é transmitida na música “Cantando Barquinha”. O grupo de cantares “Barquinha Saudosa” comemora 20 anos em 2019 e Tina Jofre esteve presente desde o primeiro minuto sendo, atualmente, vice-presidente desta associação cultural.

Escolheu a família, decisão que voltaria a tomar, e não parou por desejo do esposo. “Antes pelo contrário”, ressalva, a primeira vez que ele a viu foi em cima do palco e “adorava”, chegando a escrever algumas letras. Os temas “Noite de Farra” ou “Espelhos Malditos” são disso exemplo e era o “aviador, paraquedista amador, e um grande brincalhão” que refere no tema “Estórias do Jofre” quem muitas vezes a incentivava a acordar o fado adormecido. Lá longe sentiu verdadeiramente a saudade e o fado ganhou o seu verdadeiro sentido.
Sentada no pequeno muro, não muito longe do carrossel preparado para as Festas do Concelho e de Nossa Senhora da Boa Viagem que este ano decorrem entre 31 de março e 2 de abril, revela que o “o fado sente-se, esteve dentro de mim a partir dessa altura e nunca mais deixei de cantar fado”. A sua vida foi isso mesmo, um carrossel, com voltas e mais voltas, viagens atrás de viagens e os altos e baixos que marcam os temas dos álbuns “Sons de Mim” e “Constância”.
Entre os altos encontram-se o nascimento das netas, os anjos que “caíram do céu” na música “Netas”. Entre os baixos está o falecimento do marido em 1999, o “anjo de asas brancas” do tema “Coração Magoado”. Mesmo assim, para Tina Jofre, a saudade traz à memória, sobretudo, “os bons momentos e é por isso que eu estou sempre a recordar este chão e esta terra que eu adoro” e da qual recorda os sabores da fataça cozinhada pelo pai na telha debaixo da areia e do “Bacalhau à moda de Punhete”.
O 25 de Abril de 1974 trouxe a ansiada liberdade política e social, mas acabou por confinar quem cantava a música que integrava os três “F” associados ao regime salazarista, juntamente com “Futebol” e “Fátima”. Tempos diferentes dos de agora em que o reconhecimento como Património Imaterial da Humanidade, em 2011, foi um marco importante para o surgimento de uma nova geração de fadistas e uma vertente mais comercial.

“Acabou-se o fado em Portugal durante 20 anos”, diz, mas que apenas geraram silêncio no público que a ouvia cantar embalada pela música de Carlos Velez, cuja viola de fado também fez companhia a artistas reconhecidos como Amália Rodrigues e Camané. Do antigo controlador aéreo da antiga Base Aérea n.º 3, amigo do marido, recorda que lhe ensinou tudo “o que se faz no fado”, assim como das tertúlias em que a música da saudade se cantava, muitas vezes, à desgarrada.
O fado voltou “para sempre” aos 40 anos e desde aí não parou. Continuou a partilhar o íntimo e a terra sem “procurar ser fadista”. À semelhança do pai Isidro, soltou as amarras e podia ter tentado pescar o fado com varina, rede de arrasto que este a ensinou a manusear, mas foi seguindo a maré, consciente de “é o fado que me encontra e eu vou-me encontrando com ele”. Independentemente dos encontros e desencontros, Tina Jofre foi mantendo o registo intimista e é uma artista mimada pelos seus conterrâneos.
Prova disso é a forma carinhosa como é tratada por aqueles com quem nos fomos cruzando. Desde o amigo que a chama de “peniqueirinha”, em referência aos antigos peniqueiros da freguesia de Constância – que despejavam os penicos no rio -, à vereadora Filipa Montalvo, responsável pelo pelouro da autarquia, que esclarece a fadista sobre alguns pormenores das festas que se avizinham nas quais Tina Jofre atua pela primeira vez.
Uma estreia encarada com emoção em que o seu “chão” se transforma em palco abençoado pela padroeira da terra onde diz que quer morrer. Espera que a santa que tantas a vezes acompanhou a bordo dos barcos engalanados esteja junto dela, em terra, durante o concerto marcado para as 21h00 de segunda-feira (feriado municipal), dia 2. Cantará o seu fado no Palco Pelourinho a uns metros acima do chão que percorreu a vida inteira e de distância da casa onde deu os primeiros passos.
A artista partilha que não sabe se a forma como canta é “ser fadista”, mas afiança que a alma está em cada música que compõe e interpreta. “Faço o que gosto de fazer, realmente. O resto não me interessa”, acrescenta. O público, esse, verá a transformação de um sonho antigo em realidade na data em que a fadista junta as suas histórias à da história da Festa de Nossa Senhora da Boa Viagem, durante as quais chora quando vê a chegada das embarcações fluviais ao cais.
A guitarra de José Bacalhau, a viola de fado de Alexandre Silva e a viola baixo de Nani acompanham a “filha da terra” que considera todos os temas especiais e não deixa de esboçar um sorriso quando fala do “Constância”. Não afasta a possibilidade de se comover enquanto canta à sua “linda princesa” com a voz que diz ser “contida” e ajuda a “estar, apreciar, olhar, contemplar,…”.
A contenção na voz contrasta com a guerreira que diz ser e, afinal, o fado não tem apenas a fragilidade da alga transformada em menina do tema “Lenda das Algas” que, segundo a letra de Laiert dos Santos Brito Neves, vai à praia cantar para matar saudades e acalmar o mar. Neste chão, o de Tina Jofre, também se canta como se agarra o amor e a saudade em “Fado” e que tudo “Valeu a pena” por mais altos e baixos que o carrossel tenha.
