Guangzhou, 14 de Janeiro de 2017. O autocarro aproxima-se de Cantão (Guangzhou) no final de uma viagem tranquila em auto-estrada, iniciada duas horas antes em Macau. A cidade, atravessada pelo Rio das Pérolas (Zhu-Jiang), estende-se pelas suas margens ao longo de quilómetros, em consequência da sua presente dimensão. Mais de 13 milhões de habitantes vivem nesta metrópole secular que impressiona pelo esplendor e vastidão do seu coração financeiro e cultural. A quantidade, a dimensão e o design dessas construções, indicia que as tecnologias de ponta e o desenvolvimento são hoje realidades incontestáveis nesta zona do Mundo. A Torre de Cantão, a Biblioteca, o Museu, a Ópera, o Palácio das Crianças estão sedeadas em edifícios que impressionam pela sua beleza e qualidade, pela sua capacidade de atração de multidões, pelo seu contributo cultural. A facilidade de deslocação na cidade, recheada de bons transportes urbanos e um moderno metropolitano, bem desenhado e fácil de utilizar, permite ao visitante usufruir dos monumentos ancestrais, dos novos centros comerciais, dos excelentes hotéis, dos renovados restaurantes. Na verdade, na sua vastidão, ainda é possível ver em Guangzhou velhos bairros e velhos costumes, mas a hora da mudança já chegou. A uma velocidade, a um ritmo inimagináveis para quem não tenha o privilégio de o constatar pessoalmente. De realçar as evidentes preocupações ambientais de que são exemplos os postos de carregamento de veículos elétricos, as bicicletas de uso comunitário espalhadas por toda a cidade, as enormes estações de tratamento de águas residuais. Elas anunciam uma nova China que se prepara aceleradamente para proporcionar a um número crescente dos seus cidadãos uma vida mais fácil, mais digna, mais feliz, necessariamente mais saudável.

Pessoas “cinzentas”, em vias de extinção

Quando em 1996 visitei Guangzhou pela primeira vez encontrei a China do meu imaginário. Uma enorme cidade com milhares e milhares de pessoas deambulando por ruas esburacadas, poluídas, insalubres, cheias, muito cheias de pessoas “cinzentas”, obviamente pobres, evidenciando carências alimentares, com vestuário a condizer, sempre prontas a vender e a comprar, após a inevitável discussão de aproximação de preços, para que os intervenientes se sentissem “confortáveis”. Convém recordar que este porto foi, durante séculos, a única porta de entrada e de saída de mercadorias de toda a China, a imensa China. Por isso, debaixo de toldos que atravessavam as ruas estreitas, em vãos e garagens ocupadas por lojas improvisadas, no rés-do-chão de casas velhas e descuidadas, lá estavam as célebres baratas, os escorpiões, as tartarugas, as ratazanas “encanadas” e secas, os cágados, os texugos, os cães (pendurados em talhos de rua, esfolados, distinguindo-se dos cabritos apenas pela morfologia das patas) em ruas que se cruzavam com outras onde predominavam as farmácias chinesas, os chás de todas as qualidades, as ervas aromáticas e as não aromáticas, expostas em sacos de serapilheira, exalando um odor forte e enjoativo muito característico e ainda outras ruas, qual montra interminável, com móveis chineses (alguns magníficos), minerais, colares, tecidos e vestidos, tudo, tudo o que a nossa imaginação possa conceber. Em todas elas, era uma constante a presença de muitas casas de confeção de comidas exóticas (que não nos atrevíamos a experimentar) e de tudo o mais que pudesse proporcionar aos locais os renminbis (a moeda chinesa) necessários à sua vida de evidente desconforto e indisfarçáveis privações.

Sim, é possível…

A descrição da cidade de Cantão em 1996 e em 2016 é factual. Resulta de uma observação pessoal, necessariamente sujeita a algumas imperfeições e erros de perspetiva, mas destituída de quaisquer intenções políticas. As motivações da descrição prendem-se com a visão de um profissional seguro de que o desenvolvimento é um fator determinante, comprovadamente associado aos níveis de saúde das populações. Por isso, nesta matéria é perfeitamente aceitável a ousadia de se fazerem afirmações não fundamentadas em valores de indicadores de saúde, que apenas confirmariam o que já se comprovou. É por isso que pode ser assumido que nestes últimos 20 anos os níveis de saúde da população chinesa tiveram um significativo progresso. A erradicação da pobreza numa percentagem muito significativa da sua população proporcionou a melhoria da vida de muitos milhões de seres humanos. Sim, milhões de pessoas que lutaram, que lutam sempre, apenas porque querem viver melhor, porque querem ter acesso aos bens e às tecnologias, geradores de satisfação e conforto. Muitos, mesmo muitos, já conseguiram a justa recompensa face à sua inexcedível ambição. Para si e para os seus. Conquista geradora de orgulho, que se manifesta com exuberância na forma como interagem com filhos cuidados, dignamente vestidos, aparentemente saudáveis, durante os frequentes passeios familiares observáveis nos “bem tratados”  jardins da cidade de Guangzhou.

Celebra-se hoje o 1º dia do Novo Ano Lunar, o Galo. Nesta data os chineses deitam fora objetos e roupas velhas e compram algo novo. Gesto que simboliza renovação, orientada para a satisfação dos seus desejos e necessidades. Sendo um procedimento que anualmente se repete, ele é assumido como a meta individual de cada cidadão na procura de um novo incremento dos seus níveis de bem-estar, de felicidade, a alcançar durante o ano que agora começa.

Kung Hei Fat Choi 

Macau, 27.01.2017

O centro da cidade

Rui Calado é médico epidemiologista e especialista em Saúde Pública. Foi coordenador da USP (Unidade de Saúde Pública) do ACES Zêzere e do Médio Tejo.

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