Ao fundo, já se ouve o comboio que lá vem a apitar. As rodas deslizam cada vez mais devagar sobre os carris à medida que se aproximam da paragem. Proveniente de 1856 e com destino ao futuro, está na hora de embarcar nesta viagem pela história da ferrovia em Portugal, através do Museu Nacional Ferroviário, na cidade do Entroncamento.
Desde o espólio referente ao material circulante, equipamentos de via e comunicação, até à sinalização, às cornetas e sinetas, passando pelos armários de bilheteira e até pelo exemplar da mala do revisor, sem esquecer as locomotivas e as carruagens, no Museu Ferroviário Nacional está guardado um legado com mais de 160 anos de história, num acervo museológico com cerca de 36 mil peças e incontáveis memórias.
Começando nas primeiras locomotivas a vapor e terminando com aquilo que o futuro perspetiva, a viagem é longa e repleta de memórias que desafiam a imaginação dos curiosos. Inaugurado oficialmente em maio de 2015, o Museu Nacional Ferroviário está inserido no Complexo Ferroviário do Entroncamento e tem porta de entrada pela Rua Engenheiro Ferreira de Mesquita.
É lá, à entrada, que nos espera João Paulo, funcionário do museu há 15 anos e atualmente um dos responsáveis pelas visitas guiadas. “Sou o mais velhinho que aqui estou”, diz-nos entre risos. Natural de Lisboa, escolheu o Entroncamento como casa e o Museu Nacional Ferroviário como ocupação dos tempos livres, enquanto voluntário.
Mais tarde, a paixão pela ferrovia valeu-lhe um lugar na equipa de conservação e restauro. “O primeiro trabalho que fiz na minha vida ferroviária foi no restauro do comboio real português”, revela-nos. Em 2015, com a abertura oficial do museu ao público, passou a fazer as visitas guiadas.

Feitas as apresentações, durante as próximas duas horas é pela sua voz entusiasmada que ficamos a conhecer as peculiaridades e curiosidades de cada pedaço do museu, ao longo dos seus 2,5 hectares abertos ao público (num total de 4,5 hectares que se espera no futuro estar totalmente disponível à comunidade).
Mas comecemos pelo princípio, quando em 1926, na cerimónia que marcava a eletrificação da linha de Cascais, se “ouviu dizer que tinha de se construir um museu que honrasse todos os que trabalhavam no nosso caminho-de-ferro”.
A ideia de um museu ferroviário ganhou ênfase em 1956, com um desfile de material circulante resultado de um inventário feito pela Companhia Portuguesa dos Caminhos de Ferro (CP). Foi nos anos 60 que a vontade de se tornar real a ideia de um museu ganha força, com a intenção de “um museu de empresa” por parte da CP, em Lisboa.
Na mesma altura, movem-se esforços no Entroncamento para ser aí se erguer a casa da história da ferrovia portuguesa. Já na década de 70, destaca-se uma corrente que defende que o material circulante deveria ser exposto por diversos depósitos, junto de diferentes estações ferroviárias do país, o que levou a que, no início da década de 90, fossem abertas as “Secções Museológicas da CP”. Mais tarde, viria a ser desenvolvido um projeto-lei que previa a instalação do museu nacional no Entroncamento (existindo, no entanto, núcleos museológicos do Museu Nacional Ferroviário espalhados pelo país até aos dias de hoje).
O passo em frente foi dado em 1991 com a Assembleia da República a instituir o Museu Nacional Ferroviário Engenheiro Armando Ginestal Machado. Estabelecido na cidade do Entroncamento, em 2005, o “fenómeno” ganhou força, tendo aberto pela primeira vez ao público a 18 de maio de 2007 com a exposição “Olhares Sobre os Caminhos de Ferro”. Gerido pela Fundação Museu Nacional Ferroviário Armando Ginestal Machado, a passo e passo o museu foi desenrolando a sua história, com a abertura do espaço que hoje se apresenta no dia 18 de maio de 2015.
“As pessoas não sabem o que é que aqui está!”, exclama João Paulo. Isto porque – desengane-se quem pensa que neste museu apenas é feita referência à história e ligação da ferrovia com o concelho do Entroncamento – como o nome diz, este é o Museu Nacional Ferroviário, estando nele presentes objetos alusivos à história da ferrovia de norte a sul do país.
Do armazém de víveres até à sala dedicada aos ferroviários que laboravam nas linhas férreas, passando pela icónica rotunda das locomotivas e pelas oficinas do vapor, batizada por João Paulo como “a catedral” do museu, a cada esquina as peças do puzzle vão-se juntando, reconstruindo a história que remonta a 28 de outubro de 1856, com a viagem inaugural que marcou o caminho-de-ferro português, com um primeiro troço entre Lisboa e Carregado, na designada Linha do Leste.
“Pelas 11h00 do dia 28 de outubro, e estavam à porta da Estação dos Cais dos Soldados, hoje conhecida como Estação de Santa Apolónia, em Lisboa”, o rei D. Pedro V e a família real, outras figuras, o corpo diplomático e a população que acorreu em massa para presenciar tão importante momento”, conta-nos João Paulo, explicando todos os pormenores, como os foguetes lançados do Castelo de São Jorge que assinalavam a partida de uma viagem de 40 minutos até ao Carregado.
“O regresso a Lisboa foi um bocadinho atribulado”, revela-nos, sublinhando que o êxito deste novo meio de transporte foi tal que “após seis meses da inauguração do primeiro troço, o movimento já era de cerca de 650 passageiros por semana”.
Nesta viagem pelo tempo, seguimos em direção ao espaço onde nos inteiramos das etapas áureas de construção da rede ferroviária nacional, com destaque para os anos compreendidos entre 1860 e 1865 e entre 1877 e 1891. Descobrimos detalhes, aguçamos a curiosidade e seguimos em frente, chegando a um das salas mais nobres, onde descobrimos a vida dos ferroviários e daqueles que se tornaram aprendizes da arte da ferrovia.
Em cada recanto, despertam-nos a atenção os objetos. Dos mais pequenos, como um alicate de revisor, ao maior, como uma caldeira vertical. Passamos pelo armário de bilheteira, por painéis de azulejos com a gravura “Caminhos de Ferro do Estado”, por miniaturas de locomotivas e até por tachos e panelas usados pelos ferroviários para confecionar as suas refeições.
Seguimos caminho e passamos por uma parede repleta de placas de fabricante que, com as suas cores garridas, identificavam o número e os autores das locomotivas.

A páginas tantas, saímos para a rua. Guiados por entre carruagens e portões, deparamo-nos com um dos ex-libris do Museu: a rotunda das locomotivas. Daí, o olhar consegue alcançar a estação de comboios do Entroncamento. Perguntamo-nos como é que nunca reparámos que além da estação estava aquela imagem magnificente. Dispostas alinhadamente, constituem uma homenagem à era do vapor.
Entre elas, está a Locomotiva 135, que durante quase duas décadas fez parte da paisagem urbana do Entroncamento – era uma das primeiras imagens que viam todos aqueles que saíam da estação. Construída em 1881 na Alemanha pela empresa Sächsische Machinenfabrik de Chemnitz, para a companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, foi uma das locomotivas intervenientes na inauguração da linha da Beira Baixa.
Também nesta rotunda encontra-se a locomotiva Andorinha, “a mais antiga de Portugal”, conta-nos João Paulo. Aqui, todas têm um nome e uma história. Todas desempenharam um papel de relevo e, por isso, merecem o seu lugar de destaque nesta rotunda.
Mas ainda falta conhecermos a “catedral”, por isso, avançamos para a próxima paragem: as oficinas do vapor. Aqui, encontramos todo o tipo de locomotivas e comboios. Salta-nos à vista o Comboio Presidencial. Pintado de azul com linhas vermelhas, o Comboio Presidencial é composto por quatro carruagens de passageiros, uma carruagem-restaurante e um furgão.
Era utilizado para as deslocações do Chefe de Estado, entre 1930 e 1970, tendo servido Óscar Carmona, Craveiro Lopes e Américo Tomás. Foi entretanto restaurado em 2013 e nos últimos anos realizou viagens ao Douro, entre a Estação de São Bento, no Porto, e a estação de Pinhão, com “um chefe Michelin a bordo”, conta-nos João Paulo.
Mas esta não é a única joia da coroa. Num espaço próprio dentro da “catedral”, está o Comboio Real, “a primeira locomotiva elétrica no mundo a ter uma caixa em aço inoxidável”. É de tal forma especial que só se pode apreciar o seu interior uma vez por ano. Em 2020, a visita anual aconteceu no dia 28 de outubro, data em que se assinalaram os 164 anos do caminho-de-ferro português, e o mediotejo.net realizou uma visita guiada por Judite Roque, responsável pelo Núcleo de Conservação e Restauro do Museu.
Conta-nos que o Comboio Real é “o mais antigo” presente no museu. O seu interior permanece intacto. Restaurá-lo “demoraria anos”, sendo que a única parte que foi alvo de intervenção foram os cabedais.
Entramos, a passos suaves e com o cuidado de não tocar em nada. “Este comboio fazia viagens da família real a Vila Viçosa”, relembra-nos Judite. O comboio é constituído pela locomotiva D. Luís, reinado durante o qual foi adquirida, com respetivo tender, ao qual se juntam o Salão D. Maria Pia e o Salão do Príncipe.
Locomotiva a vapor, o Comboio Real podia chegar aos 80km/h. “Durante a implementação da república, as carruagens foram resguardadas para não serem completamente destruídas, porque eram um símbolo de monarquia, e a locomotiva foi utilizando indiscriminadamente como se fosse outra qualquer para tracionar comboios de mercadorias, até que chegou a um ponto de quase total destruição”, diz-nos Judite Roque.
Mais tarde, em 1952, o comboio foi restaurado e “colocado novamente em estado de marcha no Barreiro”. Depois, em 1979, foi levado para Santarém, onde esteve até 2010. Apesar de o Entroncamento ser a sua casa, o Comboio Real continua a “viajar”, marcando presença em exposições internacionais, em verdadeiras operações logísticas de transporte dignas de filme. Para já, só em 2021 é que vai ser possível mergulhar no requinte do Comboio Real, onde, entre os salões, ainda pairam no ar as memórias da realeza de outrora.
Aberto durante todo o ano ao público está o restante espólio do Museu Nacional Ferroviário, um museu que “tem tudo para dar a esta região”, garante-nos João Paulo, o nosso guia durante esta viagem. Um museu que representa o passado mas também o futuro, pois “hoje os museus têm de ser dinâmicos e atrair todas as idades”.
Exemplo da dinâmica que o Museu procura ter é o “Festival Vapor: A Steampunk Circus”, um evento promovido pelo Município do Entroncamento em parceria com o Museu Nacional Ferroviário que já esteve nomeado nos Iberian Festival Awards (2019) e no Top 10 do Prémio Nacional de Turismo 2020. Desde 2018 este festival traz uma nova vida a este espaço museológico onde a estética Steampunk tem lugar de destaque. Este ano, o evento foi adiado devido ao contexto atual de pandemia, mas em 2019 levou mais de 7800 pessoas até ao Entroncamento. Durante três dias, o MNF foi palco de música, carrosséis, passeios de minicomboio e modelismo ferroviário, contando ainda com street food.
É com os olhos postos no futuro, movidos pelo feedback dos visitantes (que já valeu uma distinção pela plataforma de viagens Tripadvisor relativamente à qualidade do atendimento ao público, em virtude dos comentários deixados por visitantes) e com a vontade de continuar a escrever a história da ferrovia que o Museu Nacional Ferroviário vai continuar a abrir portas ao público numa cidade que “nasceu com o caminho-de-ferro e cujo futuro dela é também o caminho-de-ferro”.
composiçoes como por ex, Alco 1500 +2BUDD. Poderiam dar uma melhor perspectiva