Santarém teve um papel determinante na conquista da liberdade, colocando militares na rua para derrubar a ditadura que dominou o país durante quase meio século. Onde estava e qual foi a sua missão no dia 25 de Abril de 1974?
Respondo começando por 1973, porque a gestação do 25 de Abril começa nove meses antes, em julho do ano anterior. Recebi uma chamada de um camarada a perguntar por um determinado decreto. Nessa altura, era o capitão mais antigo que estava na Escola (havia poucos capitães, éramos cinco), e fui falar com o comandante a expor-lhe o problema. É a partir daí que me entrego de alma e coração – não ao 25 de Abril, porque nessa altura não se sonhava com a Revolução – mas ao Movimento do Capitães, do qual nasceu depois o 25 de Abril.
O então capitão Correia Bernardo foi o principal responsável pelo planeamento e dividiu com Salgueiro Maia a preparação da coluna militar que saiu de Santarém em direção a Lisboa?
A partir de setembro de 1973, o Movimento dos Capitães – que tinha uma base corporativa, profissional –, passou a orientar-se mais para a determinação de um golpe militar, ou seja, acabar com a guerra colonial e derrubar o governo. Em novembro daquele ano, numa reunião clandestina que fizemos em Aveiras de Baixo, próximo do Cartaxo, Vasco Lourenço disse-nos diretamente que a Cavalaria tinha de tomar a ação principal do Movimento que iríamos fazer, algures no tempo. Portanto, desde novembro de 1973 até à altura do 25 de Abril de 1974 aceitámos o desafio que foi feito à Escola Prática de Cavalaria, arregaçámos as mangas e cada um passou a ter as suas funções. Eu tinha a parte do planeamento operacional, o Salgueiro Maia e outros capitães tinham outras funções. Era preciso que cada um tivesse a sua tarefa para que tudo saísse o melhor possível. A mim competia a parte de preparação da unidade, da Escola Prática de Cavalaria, e a preparação da cidade no caso de haver um problema – por exemplo, poderia não resultar em Lisboa e termos de regressar a Santarém. A preparação da coluna propriamente dita era uma responsabilidade do Salgueiro Maia, visto que a ia comandar. Isto não quer dizer que Fernando Salgueiro Maia e outros capitães, tenentes e outros oficiais que, nas reuniões que faziam, não interferissem com as suas opiniões no planeamento que eu estava a fazer, ou que eu e outros capitães não influenciássemos também o planeamento que o Salgueiro Maia estava a fazer na preparação da coluna. Pretendia-se estruturar o melhor possível e todas as opiniões eram importantes. Isto foi feito de novembro de 1973 até à Revolução – não sabíamos quando iria ser –, fomos sempre preparando o pessoal, as viaturas, etc., para o dia em que viesse a acontecer o golpe.
“Desde novembro de 1973 até à altura do 25 de Abril de 1974, aceitámos o desafio que foi feito à Escola Prática de Cavalaria [de Santarém], arregaçámos as mangas e cada um passou a ter as suas funções. Eu tinha a parte da preparação da unidade e a preparação da cidade, no caso de haver problema e termos de regressar a Santarém. A preparação da coluna para Lisboa era uma responsabilidade do Salgueiro Maia.”

Joaquim Manuel Correia Bernardo nasceu em Lisboa há 83 anos mas sente-se escalabitano de alma e coração uma vez que chegou a Santarém com oito dias de vida. Depois de terminar seus estudos secundários no Liceu de Santarém, ingressou na Academia Militar, onde concluiu a licenciatura em Ciências Militares. Colocado como Oficial na Escola Prática de Cavalaria (EPC), em 1963, desempenhou funções ligadas à formação dos Cursos de Oficiais e Sargentos Milicianos, bem como à dos futuros Oficiais e Sargentos do Quadro Permanente da Arma de Cavalaria. Como coronel foi chefe do Distrito de Recrutamento e Mobilização de Santarém e, mais tarde, subdiretor da Direção de Recrutamento, em Lisboa. Em 1968, com o posto de capitão, foi mobilizado para a Guiné, onde foi ferido gravemente em combate, sendo evacuado em 1969 para o Hospital Militar de Lisboa e posteriormente para a Alemanha, onde fez a sua reabilitação. Regressou à Escola Prática de Cavalaria, para a chefia do Gabinete de Estudos da EPC, e é no exercício dessas funções que acompanha o desenrolar dos acontecimentos que culminam no 25 de Abril de 1974, organizando e coordenando toda a ação da EPC, no seio do Movimento dos Capitães.Tinha 34 anos. Pai de dois filhos, avô de quatro netos, casado com uma geógrafa, gosta muito de viajar e conhece quase o mundo inteiro. Depois da sua passagem à reforma, em 1996, foi membro da Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia de Santarém, durante quinze anos, ocupando-se das áreas da juventude e do património cultural. Escreveu dois livros sobre a Revolução dos Cravos e integra a Comissão do 25 de Abril de Santarém.
Como é que foi essa operação?
No planeamento tínhamos preparado uma coluna para sair para Lisboa, era o nosso compromisso. Faz hoje dia 18 de abril [data da entrevista] 49 anos que fui a Lisboa reunir com Otelo Saraiva de Carvalho. Uma reunião final sobre o estado das unidades e o que o Movimento tinha preparado para a Revolução, o ato operacional. Ou seja, na noite de 18 de abril de 1974, o então major Otelo Saraiva de Carvalho convocou as unidades da região militar de Lisboa e comparecemos uns 15 ou 20 capitães que tinham às suas costas a responsabilidade da organização operacional da unidade, e como responsável por Santarém, lá fui para Lisboa dizer com o que é que o Movimento podia contar da EPC, qual era a constituição da coluna e o que tínhamos de reserva em Santarém. Nessa altura, em abril, já estava praticamente tudo planeado, faltavam os preparativos de última hora, um pormenor ou outro. Estávamos preparados para sair a qualquer momento, quando houvesse luz verde.
Mas nessa data, 18 de abril, ainda não se sabia que o golpe ia ser no dia 25 de abril?
Não, de maneira nenhuma! Em fevereiro de 1974 o general Spínola publicou um livro que causou um grande alarido nas hostes governamentais, em que falava do planeamento português relativamente ao Ultramar que estava em guerra. Esse livro causa polémica, dava a sensação que o governo ia proibi-lo mas não proibiu, e o livro esgotou a primeira edição praticamente no primeiro dia, havendo uma segunda edição. Um grande estrondo! A partir daí as forças governamentais passaram a estar atentas a todos os movimentos. Sucede que o general Spínola, que era vice-Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, portanto o número dois das Forças Armadas, foi destituído, tal como foi destituído o número um, o general Costa Gomes, que por sua vez tinha autorizado a publicação do livro. Há quatro capitães importantes no Movimento das Forças Armadas que são também transferidos compulsivamente, dois deles para os Açores, um para a Madeira e outro para o Norte do País, entre eles Vasco Lourenço, que era o principal elemento que tínhamos na ligação entre unidades. E no principio do mês de março há uma tentativa por parte do Movimento de fazer um golpe militar, antes do 16 de março. No dia 13 de março Otelo Saraiva de Carvalho foi à Escola Prática, reuniu-se em minha casa com meia dúzia de oficiais da EPC – o Salgueiro Maia não estava presente porque andava em exercícios com carros de combate, no campo – e foi propor-nos, que no dia imediato, aderíssemos a um golpe militar. Eu disse que era impossível de um dia para o outro preparar as viaturas, além disso nem grande parte delas estava em Santarém, mas no campo a 20 ou 30 km, em exercícios com o Salgueiro Maia e outros oficiais. Não era fácil mandar vir as viaturas sem ninguém dar por isso para preparar um golpe. Por outro lado, em 1971 tinha rebentado o paiol da EPC e as nossas munições estavam em Santa Margarida, a 60 km de Santarém, portanto não era fácil, de um dia para o outro, ir buscar munições a Santa Margarida, trazer os carros, municiar e preparar para sair tudo às escondidas da PIDE e do comando da unidade, que desconhecia os nossos movimentos… não se podia fazer. E Otelo concordou com o nosso ponto de vista e levou essa posição para Lisboa. No livro que publicou em 1975 escreveu isso: “Os rapazes de Santarém tinham razão, mostraram bom senso.” Portanto, no dia 13 de abril, nós, e outras unidades, estávamos fora. Porque o o contacto feito com a EPC foi também feito com a Escola Prática de Infantaria em Mafra, que teve a mesma resposta, e com a Escola Prática de Artilharia em Vendas Novas – eram as principais unidades – tendo a mesma resposta. Houve um coro geral a dizer que não estávamos preparados, para avisarem com três ou quatro dias de antecedência.

Mas tentou-se o 16 de Março, um golpe falhado. Como é que passado cerca de um mês se avança para uma revolução?
No dia 15 de março de 1974 somos confrontados com um desafio, porque as Caldas da Rainha iam sair. Contactámos os nossos camaradas das Caldas, dissemos que era uma burrice, com toda a generosidade que o ato pudesse envolver. Dia 15 de março calhou a uma sexta-feira, e não era às 20h00 que se ia preparar uma ação, antes de um fim-de-semana em que o pessoal já desmobilizou. Não havia nenhum compromisso da nossa parte nem de outras unidades. Mas os nossos camaradas das Caldas já tinham prendido o comandante, não podiam voltar atrás. Saíram e foi um fracasso. Foram barrados à entrada de Lisboa e voltaram para trás. O caso das Caldas trouxe-nos duas perspectivas. Uma perspectiva que nos condoeu bastante foi a prisão dos nossos camaradas e a perspectiva de também sermos presos, porque entretanto fomos ouvidos. Foi a Santarém um general ouvir-nos, a mim, ao Garcia Correia, ao Costa Ferreira e ao Salgueiro Maia. Felizmente não sucedeu nada. Ficámos um bocado desmoralizados, como é natural, mas também colhemos alguns ensinamentos. A velocidade para Lisboa era fundamental. A perspectiva inicial de sairmos com carros de combate de lagartas foi abandonada, para sairmos com viaturas blindadas em rodas. A mesma coluna que saísse de Santarém com os blindados de lagarta levaria seis horas, e de rodas levaria duas. Sendo o fator tempo fundamental, a partir do 16 de março abdicámos de levar viaturas de lagarta, se bem que seria mais eficaz no poder de fogo. Todas as viaturas que Salgueiro Maia levou para Lisboa eram de rodas. Há 49 anos não havia telemóveis e os telefones estavam controlados pela policia política, a PIDE, por conseguinte não podíamos contactar abertamente com as outras unidades, teve de ser tudo feito através de terceiras pessoas. Em Santarém o telefone que tivemos foi através de um tenente que estava hospedado com a esposa em casa de uma senhora que por acaso tinha telefone, que estava em nome dela, portanto passava mais despercebido do que o meu, que estava em meu nome, ou o do Salgueiro Maia ou do capitão Costa Ferreira. Portanto, o contacto tinha de ser feito muito subtilmente para se chegar a Lisboa com efeito surpresa. Foi o ensinamento que nos deu o 16 de março de 1974. Com esse fracasso houve uma personalidade que teve uma importância muito grande nessa altura, que foi Otelo Saraiva de Carvalho. Não foi preso, conseguiu passar incólume, e conseguiu por volta do dia 23 de março reunir com o todo o pessoal e dizer que era preciso fazer a Revolução, curar as feridas que ficaram e libertar os camaradas presos. Todos os oficiais e sargentos que estavam nas Caldas da Rainha foram presos.
Em termos militares, foi um planeamento bem feito. Às 03h00 saímos de Santarém e duas horas e meia depois Salgueiro Maia já estava no Terreiro do Paço com a sua coluna montada, a tal ponto que o próprio ministro do Exército se convenceu que a tropa que estava a chegar ao Terreiro do Paço era a tropa para o ir defender.
Apresentou diferente planeamento?
Esse planeamento para o 25 de Abril não teve nada a ver com o planeamento que o Otelo Saraiva de Carvalho trouxe a minha casa no dia 13 de março, uma coisa feita em cima do joelho; íamos para Lisboa e seja o que Deus quiser. Este não foi assim, tínhamos objetivos concretos: ocupar o Terreiro do Paço, ocupar a Rádio Marconi, ocupar o Banco de Portugal, a Escola Prática de Engenharia que saía de Tancos ia ocupar determinado local, a Escola Prática de Engenharia em Vendas Novas ia ocupar o Cristo Rei e controlar a entrada do porto de Lisboa, a Escola Prática de Infantaria ia ocupar o Aeroporto de Lisboa… portanto, todas as unidades tinham um objetivo bem definido. Um trabalho feito por uma equipa liderada por Otelo Saraiva de Carvalho com outra componente: como é que vamos avisar as unidades? Aí saiu o tal contacto com as estações radiofónicas para que as senhas fossem transmitidas em canal aberto pelas emissoras. Às 22h55, o Paulo de Carvalho cantava uma canção insuspeita, tinha ganho o Festival da Canção, o “E Depois do Adeus”, e o locutor tinha de dizer precisamente aquelas palavras: “Faltam cinco minutos para as onze horas”. Era uma senha. Depois uma confirmação às 00h20, que era a canção do Zeca Afonso, a “Grândola Vila Morena”, que por acaso não estava proibida, e a primeira estrofe era lida pelo locutor. Tudo isto fez com que as unidades se preparassem convenientemente entre as 22h55 de 24 de abril e as 00h20 de 25 de abril, com saída às 03h00. Em termos militares, foi um planeamento bem feito e que surtiu efeito. Às 03h00 saímos de Santarém e duas horas e meia depois Salgueiro Maia já estava no Terreiro do Paço com a sua coluna montada, a tal ponto que o próprio ministro do Exército se convenceu que a tropa que estava a chegar ao Terreiro do Paço era a tropa para o ir defender.


Participou na célebre reunião de Óbidos de dezembro de 1973, quando foram escolhidos os chefes do Movimento: Costa Gomes e António Spínola, e passam a fazer parte da comissão coordenadora figuras como Salgueiro Maia, Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Lourenço?
Não estive presente. A EPC era representada em todas as reuniões mas por rotatividade. Foi o Salgueiro Maia. Mas soube o que lá se passou porque no dia seguinte reuníamos com os restantes oficiais, normalmente na casa de um de nós.
Então foi em Óbidos que foram colocadas as três hipóteses: se queriam ter uma comissão reivindicativa, se queriam contestar junto do Governo ou se iriam avançar para um golpe de Estado?
Pois. Ainda estávamos em 1973, mas já na parte operacional. Nessa altura havia ainda muitos camaradas com uma certa relutância em fazer um golpe militar. Existia ainda uma grande dicotomia entre fazer um golpe militar ou ficar apenas nas reivindicações profissionais. Para nós, EPC, a parte das reivindicações profissionais estavam ultrapassadas porque quando os decretos saíram em julho de 1973, que originaram o nascimento do Movimento, houve toda uma reação por parte dos capitães, dos oficiais, e da parte das chefias militares houve uma ponderação que, de facto, aqueles decretos eram uma asneira pegada. Tanto assim que em agosto, no mês seguinte à publicação dos decretos, saiu um decreto que vinha atenuar o universo que ia implicar as promoções, as ultrapassagens de oficiais. Os efeitos do decreto foram suspensos em setembro. Em outubro, por altura das eleições legislativas, caiu o ministro da Defesa e o subsecretário do Exército, ou seja, os autores do decreto foram demitidos. Isto veio-nos dar uma certa garantia que os decretos morreram, ou seja a retificação profissional já não tinha razão de ser. Mas ainda havia um grupo de camaradas nossos que estavam agarrados a isso.
Relutantes, divididos…
É preciso situarmo-nos nesse período, ano de 1973/74, para perceber que a vida do militar, neste caso dos capitães, não era fácil, porque iam para a guerra, por exemplo para Moçambique, estavam lá dois anos separados da família, regressavam para uma unidade, com a família em Santarém eram colocados em Estremoz, vinham inicialmente com problemas para resolver… era o carro parado na garagem, porque dificilmente as mulheres tinham carta de condução, a casa, os filhos que não conheciam, era o querer estar com a família… quando conseguiam ter as coisas organizadas, estavam novamente a ser mobilizados para Angola. Portanto, era a sequência de uma vida que não lhes dava tranquilidade. Se a tudo isto juntarmos a problemática de fazer um golpe de Estado, mexe com a cabeça das pessoas. Havia reações de indecisão em camaradas nossos que depois entraram no 25 de Abril de peito feito. Levou-nos algum tempo a criar uma coesão muito grande no Movimento, porque pretendíamos que não houvesse pontos fracos, falhas. Óbidos foi importante porque a vida militar é muito hierarquizada e era preciso decidir quem seriam os chefes do Movimento, um capitão com 23 ou 26 anos? Um major? Era curto. Até porque num golpe militar, perante a nação, tem de contactar com civis com um nível intelectual, cultural e social bastante elevado, e o mesmo em relação ao estrangeiro, portanto havia uma necessidade da parte dos capitães em arranjar uma figura carismática que pudesse encabeçar aquilo e apareceram vários nomes. Selecionámos três: Spínola, Kaúlza de Arriaga e Costa Gomes. E foi em Óbidos que, de facto, fomos debater sobre estas três figuras, aquelas que nos davam mais garantia para chefiar o Movimento.
“Na primeira organização militar que se pensou fazer, em Aveiras, a perspectiva era sair a Escola Prática de Cavalaria e os Paraquedistas de Tancos. Por serem muito organizados, os paraquedistas não gostaram da forma, em cima do joelho, como decorreu o 16 de março e abandonaram o Movimento, mas não estavam contra nós e garantiram que, se lhes fosse pedido para contrariarem a nossa ação, recusariam.”
E foram escolhidos Costa Gomes e António Spínola…
Exato. Ficou Costa Gomes como número um à frente de António Spínola, e daí o afastamento dos paraquedistas que apoiavam maduramente Kaúlza de Arriaga. Sendo o criador dos paraquedistas justificava-se a sua preferência. Na primeira organização militar que se pensou fazer, em Aveiras, como referi, a perspectiva era sair a Escola Prática de Cavalaria e os Paraquedistas de Tancos. Os militares saíam de Tancos passavam por Santarém e íamos todos para Lisboa. Essa ideia morreu porque os paraquedistas se afastaram. A segunda hipótese era sairmos a acompanhar os carros de combate e Caldas da Rainha, porque era a unidade de Infantaria apeada mais próxima, mas com o 16 de março desapareceu essa hipótese também. No 25 de Abril tivemos de sair nós com a prata da casa, com a tropa nos carros de combate, e tivemos de ir buscar aos nossos instruendos que estavam na EPC em cursos de oficiais milicianos e residentes milicianos, a tropa para apoiar, no terreno, a saída. Resolvemos o problema com o esquadrão mecanizado, blindado, e levámos o esquadrão de atiradores. Por serem muito organizados, os paraquedistas não gostaram da forma, em cima do joelho, como decorreu o 16 de março e abandonaram o Movimento, mas não estavam contra nós e garantiram que se lhes fosse pedido para contrariarem a nossa ação recusariam. Mal sabiam que a organização feita por Otelo Saraiva de Carvalho e pela sua equipa, a seguir ao 16 de março, foi uma organização muito bem feita em termos de organização militar.

Ou seja, é assumido que a contestação surgiu na forma de reivindicação profissional.
A minha posição de contestação aos decretos é inicialmente uma contestação profissional, tal como a dos camaradas que estavam na EPC. Os decretos delapidaram o nosso curso de formação, que era uma licenciatura em Ciências Militares ministrada em quatro anos letivos, e o decreto vinha permitir fazer o curso em dois semestres. Isto em termos académicos é passar de cavalo para burro, como se costuma dizer, não fazia sentido! Nós na Academia Militar levávamos cinco anos até atingirmos o posto de alferes e éramos prejudicados por um jovem que fazia o serviço militar obrigatório, ao fim de um ano tinha essa patente e que depois ia para a Academia Militar e conseguia essa patente mais cedo. Isto era a nossa contestação. Mas a partir de setembro de 1973 houve um reunião importante em Évora, foi o primeiro grande ajuntamento do Movimento dos Capitães em que se aborda o golpe militar, contudo informalmente antes da Ordem do Dia. Depois houve um fator que acelerou todo o processo: a Guerra.
“Houve unidades que aderiram à última da hora. Como Torres Novas, que potencialmente eram nossos inimigos, mas durante a madrugada recebi um telefonema de um camarada a informar que não tinham deixado entrar o comandante, fecharam as portas e estavam connosco”.
Militares cansados de guerra. Foi esse cansaço que motivou a Revolução?
Estávamos cansados da Guerra, mas cansada da Guerra estava a nação toda. Por exemplo, o caso do capitão Costa Ferreira, promovido a major já em cima do 25 de Abril, esteve em 1961 em Angola, foi para Moçambique em 1965, voltou para Angola, etc. Faziam quatro ou cinco comissões de dois anos, e já estava com 15 anos de casado dos quais 12 tinha passado na Guerra, tal como grande parte dos capitães. Há em 1961 uma primeira saída para a Guerra perante os massacres em Angola, tenta-se resolver o problema mas o poder político não resolve, ou não tem mãos para resolver ou não quer. Em 1965/66 o problema deveria ter sido resolvido, nessa altura através de conversações, e podia-se acordar uma independência a 10 anos ou algo do género, em condições muito vantajosas para as colónias, porque podíamos fazer a formação de pessoas que eram necessárias para fazer o enquadramento de uma nação tão grande como Angola ou Moçambique e mesmo a Guiné, embora mais pequena, portanto havia tempo para tudo. E não houve essa habilidade, foi continuar a Guerra. Até quando? Não se sabe. Terminou em 1974, mas se não fosse a Revolução poderia ter durado mais 10 ou 15 anos. Sempre a contabilizar mortos, deficientes e cicatrizes, e o erário público a ser destituído de valor, porque a guerra é cara. Na viragem de 1973 para 1974, as últimas dúvidas de alguns oficiais ficaram esbatidas, quando em dezembro os decretos foram completamente revogados. E os militares questionaram se tínhamos ou não obrigação de mudar o regime… Tínhamos! Porque éramos os únicos que o podiam fazer. Porque tínhamos as armas, coesão, camaradagem e estávamos distribuídos desde Viana do Castelo até Tavira. Isto representou uma consciência coletiva muito forte e muito grande. Houve poucas unidades que fracassaram mas também unidades que inicialmente não contávamos com elas, estavam neutras, mas contámos com a sua adesão à última da hora. Como Torres Novas, que potencialmente eram nossos inimigos, mas durante a madrugada recebi um telefonema de um camarada a informar que não tinham deixado entrar o comandante, fecharam as portas e estavam connosco.




Portanto, em 1974 importava acabar com a Guerra Colonial. Hoje o 25 de Abril é celebrado como o Dia da Liberdade. Mas os militares queriam a liberdade ou a democracia?
A Guerra Colonial pesou bastante, sobretudo nos militares que foram connosco. Houve muita convicção, eram rapazes com 21 ou 22 anos, pessoas com uma certa consciência política. Alguns sabiam o que era a democracia e a liberdade. Tivemos o cuidado na nossa coluna militar de, em cada uma das viaturas, em cada grupo de 20 militares, colocar sempre cinco do curso de oficiais milicianos, cinco do curso de sargentos milicianos e cinco soldados, por uma questão de contacto. Os rapazes do curso de oficiais milicianos tinham um conhecimento político e da sociedade e dos seus problemas mais abrangente que outros. Por outro lado, considero que havia mais generosidade, mais espontaneidade, mais espírito de sacrifício da parte dos soldados. Portanto, esta mistura dava à componente daquela viatura militar uma multiplicidade, heterogeneidade de capacidade intelectual, para poderem falar com a população que acorresse, e poderem responder a alguma argumentação política e social que pudesse permitir ter a população do nosso lado, se houvesse necessidade disso. Felizmente não houve, porque a população espontaneamente ficou do nosso lado.
“Salgueiro Maia um homem carismático, uma figura muito distinta, muito frontal, e era um líder porque sabia exercer liderança espontaneamente sobre as pessoas, tinha capacidade para o fazer.”
E como estavam esses rapazes na noite de 24 e madrugada de 25 de Abril?
Há uma liderança fundamental: Fernando Salgueiro Maia. Era o comandante natural deles, já o era. Não foi nessa noite, embora comandasse a coluna, mas era o comandante de instrução e tinha sido o comandante dos carros de combate, portanto era o operacional por excelência. Era um homem carismático, uma figura muito distinta, muito frontal, e era um líder porque sabia exercer liderança espontaneamente sobre as pessoas, tinha capacidade para o fazer e, sobretudo, era reconhecido como um líder. E às tantas diz: “Há diversas modalidades de Estado: os estados socialistas, os estados corporativos e o estado a que isto chegou! Esta noite vamos acabar com o estado a que chegámos. Vamos para Lisboa. Quem quiser, vem comigo”.
Além do formalismo que utilizava, tinha sempre um tom irónico nas palavras, era uma das suas características pessoais, uma certa ironia e uma certa piada. Também gostava de cantar, mas cantava muito mal.

Depreendo das suas palavras que, além de camarada de armas, era amigo de Salgueiro Maia.
Fomos grandes amigos. Havia poucos oficiais na EPC durante o período da guerra. Em 1973, quando saiu o decreto, éramos [capitães em Santarém]. Eu era o mais antigo na altura, também o Tavares de Almeida, o Taxa Araújo, o Furtado Dias e o capitão de administração militar. Éramos cinco capitães. Em 1974 apareceram mais uns quantos, mas éramos poucos e o convívio dá-se muito entre nós e as famílias, havia um contacto muito grande. Mas também estávamos em convívio em tempos intermitentes, porque Maia era mobilizado para um lado e eu para outro. No entanto, convivemos bastante, tenho recordações muito boas, ainda ele solteiro, até em relação aos meus filhos. Ia a minha casa com o carro, um carocha cor-de-laranja, para passear com os miúdos – ele gostava imenso de crianças –, apitava, tinha uma buzina que parecia uma vaca, e os miúdos adoravam aquilo. Acompanhei bastante Salgueiro Maia na fase final da sua vida. Morreu em abril de 1992.
Na Guiné, o coronel foi ferido gravemente. Quando e em que cenário?
Em 1968 fui mobilizado para a Guiné e em 1969 pisei uma mina e fiquei sem uma perna. Fui comandar uma companhia que estava sedeada em Nova Sintra, que era um buraco horrível, dormíamos todos em camaratas debaixo do chão, não havia ninguém que dormisse à superfície, e numa das operações que fiz pisei uma mina, estávamos perto de um acampamento dos guerrilheiros. Houve um grande tiroteio, ainda fui ferido na outra perna, já lá vão 54 anos. Depois fui para Lisboa, para o Hospital Militar, onde tive de fazer um transplante na perna ferida, e depois fui para a Alemanha, porque Portugal tinha um acordo com o governo alemão por causa do contrato relativo à base aérea de Beja utilizada pelos alemães e uma das contrapartidas era o apoio que nos davam de recuperação de feridos em combate/amputados. Normalmente, na Alemanha, em recuperação, estavam entre 8 a 12 militares amputados, alguns invisuais. Fui para lá em outubro e regressei pelo Natal, estive lá dois meses e voltei com uma prótese, com a qual me dei bastante mal. Os técnicos portugueses são bastante melhores, mais sensíveis no tratamento com o doente. Em janeiro de 1970 regressei a minha casa a Santarém e da EPC convidaram-me para regressar, onde me mantive até final dos anos 1980.
A Revolução tinha um “Plano B”, pelo qual o coronel Correia Bernardo era responsável. Quer explicar?
Como referi, fiquei com a parte operacional, do planeamento da cidade, e antes das Caldas, em fevereiro, numa conversa que tive com Salgueiro Maia, ele estava muito preocupado por causa das viaturas, não tinha sobresselentes, faltavam peças, e estava um bocado desmoralizado. O receio dele era do material não chegar a Lisboa. Porque para manobras de fogo real íamos para a Serra dos Candeeiros, a cerca de 30 km, e volta e meia uma viatura ficava pelo caminho. Ora, quem vai fazer uma revolução, se as viaturas ficarem pelo caminho, é um desastre. E apesar de não me recordar das palavras, devo ter dito em tom mais ou menos jocoso: “Não há problema nenhum, fazemos a revolução em Santarém.” Ele riu-se e numa segunda vez que aborda o problema das viaturas eu volto a dizer que se calhar não temos capacidade de ir até Lisboa mas temos capacidade de montar em Santarém uma coisa como deve ser. E ele respondeu: “Está bem, pensa nisso!” E como não deixo ficar as coisas na algibeira, para o caso de necessidade, planeei a defesa do planalto de Santarém. Em termos militares tem características defensivas bastante boas, controla-se todas as entradas que se possam fazer vindo do lado do Tejo ou do lado de terra, além disso está inserida no meio de populações, algumas muito contestatárias ao antigo regime, o caso de Alpiarça, Coruche, Rio Maior. À partida, se houvesse necessidade de apoio logístico, tínhamos povoações amigas que nos traziam por exemplo alimentação, no caso de ficarmos cercados. Mas isto agudizou-se com o caso das Caldas. Ao serem barrados à entrada de Lisboa, deram-nos a perspetiva de que, quando chegássemos a Sacavém, se estivesse lá a Guarda Republicana, bastava pôr um camião a barrar a estrada – na altura não havia autoestradas –, e sem atingir o objetivo teríamos de regressar a Santarém. E para fazer como os militares das Caldas, ou seja fechar-nos no quartel, nem pensar! Uma das coisas que me custou ver, aquando do 16 de março, foi a população das Caldas manter a vida normal. Sei que era sábado de manhã, havia o mercado e isto e aquilo, e o problema era apenas militar. Em Santarém, o problema não podia ser só militar. Por isso, uma das minhas preocupações na manhã do 25 de Abril, às 07h00, foi fazer circular pela cidade de Santarém um panfleto verde, a cor da esperança, com a programação que foi lida à noite pelo general Spínola. Portanto, a população de Santarém oito ou dez horas antes tomou conhecimento do propósito que tínhamos. Por volta do meio dia, quando as coisas ocorrem em Lisboa, a população de Santarém estava profundamente informada. Outra coisa que fizemos de imediato foi ocupar a Rádio Ribatejo, a emissora de Santarém. A cidade, não tendo necessidade de se implementar o ‘plano B’, foi desde manhã preparada. Ainda fizemos sair uma coluna militar que se instalou no campo da feira mas vimos que não havia necessidade.

Na altura qual foi o seu pensamento? Estava apreensivo ou convicto?
Já marcou algum penálti no Estádio da Luz? Então vista a camisola 14 com as equipas empatadas a zero e no último minuto vá marcar um penálti, sendo que o guarda-redes tem quatro metros de altura e é tão gordo que ocupa a baliza toda, e está toda a gente a olhar. A baliza até encolheu naquela altura. Claro que estava preocupado! Preocupadíssimo. Uma revolução não se faz todos os dias, nunca treinámos uma revolução. Não sabíamos se ia haver tiroteio, mortes. Felizmente tudo correu bem. Não digo que tenha corrido melhor do que esperávamos, porque preparámos tudo para que corresse assim. É feito o primeiro comunicado às 04h00 a alertar a população, é feito outro comunicado a pedir a comparência de pessoal de saúde, médicos e enfermeiros nos hospitais, e apareceu muita gente a apoiar. Se houvesse azar, estava tudo preparado. Felizmente não houve. O azar foi a PIDE, que infelizmente disparou sobre a população e matou quatro pessoas e feriu mais umas quantas, mas isso não foi connosco.
Defende que o espírito da Revolução dos Cravos deve ser lembrado todos os dias, sobretudo aos jovens que não sabem o que é viver em ditadura. Como é que se explica a importância de uma ação libertadora a quem só conhece a democracia e não sabe o que é repressão, medo ou fome?
É difícil! Tem tudo a ver com uma forma de cultura que se vai perdendo com o tempo. A minha provecta idade dá-me o aconchego de fazer uma crítica sobre muitos anos, mas não me dá o à vontade para falar do tempo de agora. Julgo que a era digital fez com que as pessoas se alheassem da conversa, de olhar nos olhos. Este não contacto fez com que perdêssemos memória e o adquirido é sem saber como é que foi até aqui. Às vezes vou a umas escolas falar sobre o 25 de Abril. Os professores pedem-me, faz parte do currículo escolar, e os alunos fazem perguntas sem grande profundidade. Mas certa vez uma menina de uns 13 anos fez-me uma pergunta que me embaraçou e que me comoveu. Perguntou: “Como é que o senhor se despediu da sua esposa quando saiu de casa para ir para o quartel?” E eu fiquei calado, porque voltei atrás e coloquei-me no local, à porta da minha casa, a despedir-me da minha mulher, tínhamos acabado de deitar os filhos para eu ir fazer uma revolução. A minha mulher era professora no liceu de Santarém. Se corresse mal, eu ficava preso e ela ia para a rua e ficava com duas crianças. A pergunta da miúda foi excecional e embaraçou-me. Quantos miúdos têm a noção, leem o problema? Com esta pergunta, a miúda conseguiu ver que esta pessoa teve de fazer um corte, sair do aconchego. Hoje em dia é difícil. Quando vou às escolas vejo que os miúdos estão ali para cumprir aquela hora e se a professora não os ajuda aquilo é um fracasso. Não estão interessados. Tem muito a ver com a vida familiar, com o contacto que temos, com o falar. E hoje digitalizamos uma coisa e enviamos para um número e não sabemos quem é, falamos com um amigo e não estamos a ver a reação dele, é diferente. Falta aqui uma parte genuína, com a qual cresci, e tenho alguma dificuldade em me transportar para esta época e despegar-me da minha. O intimismo que nos ligava à pessoa que está à nossa frente vai desaparecendo, e este calorzinho humano obrigava-nos a crescer e a ter outras noções. Quem é aquele senhor? Obrigava-me a pensar nele, a entrar na história e a perceber o 25 de Abril, o que os outros sofreram, os que foram para o Tarrafal, que foram para o Aljube, foram presos, porque é que lutaram.
O país sonhado pelo coronel, naquele momento, está próximo do Portugal de hoje?
Está! Tem falhas mas está. Acabou a Guerra e isso foi excecional. Caiu um regime, um governo opressivo, malévolo, mal intencionado, explorador. Isto é fundamental. E depois Abril abriu uma série de portas que estavam fechadas, outras entreabertas. Nunca imaginei, coronel de Cavalaria na fase final da minha vida, ter a trabalhar comigo três mulheres (sargentos) nas Forças Armadas. Era impensável haver mulheres juízas. Ontem estive a ver futebol feminino… impensável! São pormenores de uma importância extraordinária, de uma porta que Abril abriu.
Um dos meus heróis do 25 de Abril foi um capitão que ficou com o braçal na noite de 24 e que frontalmente se opôs ao comandante. Como disse, tinha a missão de preparar a EPC e uma das coisas que fiz foi colocar como oficial de dia um capitão já experiente para ficar responsável pela unidade, e ele ficou. O tenente que lá estava fazia parte da coluna de Salgueiro Maia. O comandante quando chegou viu, e como não o tinha recebido na cerimónia de colocação dos braçais disse-lhe que não era o oficial de dia, e ele respondeu: “Não sou mas passei a ser porque o capitão Bernardo pôs-me o braçal.” O comandante mandou-lhe tirar o braçal e ele respondeu: “Não tiro, quem me pôs o braçal foi o capitão Bernardo e só ele pode mandar tirar.” Isto é o primeiro ato revolucionário, dizer não a um comandante. Passados uns dias este oficial foi expulso das Forças Armadas porque era homossexual. Hoje era impensável, mas naquela altura não era possível estar nas Forças Armadas sendo homossexual. Essa porta só foi aberta muito tempo depois. Abril também abriu a porta do estudo universal. A minha geração tirou a quarta classe, da minha escola só menos de um terço frequentou o liceu, os restantes foram trabalhar. Felizmente no meu tempo a escola já era obrigatória. Ainda apanhei na tropa, nos primeiros anos de serviço militar, escolas regimentais porque os soldados só podiam passar à disponibilidade, só saiam do quartel, depois de terem o primeiro grau do ensino básico, ou seja a terceira classe, saber ler e escrever. Alguns estavam dois ou três anos na tropa até que conseguissem alinhavar umas letras, recordo-me de um soldado que esteve uma série de tempo a aprender a segurar num lápis porque não conseguia, a mão dele estava moldada para a enxada, para a vida rural do campo. Quando vejo hoje a percentagem de licenciados da nação portuguesa fico satisfeito. A saúde, hoje queixamo-nos muito e os problemas existem e vão continuar a existir, mas não vamos comparar, o Serviço Nacional de Saúde foi um passo de gigante. O reconhecimento estrangeiro, Portugal passou a ser reconhecido como um dos seus e não ostracizado como o último país que tinha colónias. Estou completamente satisfeito com a viragem que se fez com o 25 de Abril. Agora reconheço que existem coisas que poderiam estar melhor, como é evidente.
Nunca imaginei, coronel de Cavalaria na fase final da minha vida, ter a trabalhar comigo três mulheres (sargentos) nas Forças Armadas. Era também impensável haver mulheres juízas. Ontem estive a ver futebol feminino… impensável! São pormenores de uma importância extraordinária, de uma porta que Abril abriu.
Havendo ideais de Abril ainda por concretizar, alguma vez se questionou se o MFA tomou a melhor decisão ao dar cumprimento a um dos pontos do programa dos militares, ou seja, terminada a Revolução, entregar o poder à sociedade civil?
Não. Sempre subscrevi essa decisão. Essa foi a nossa meta. O MFA se tivesse acabado a revolução e tivesse continuado com o regime militar acabava com erros idênticos ao do regime anterior. Não quer dizer que fosse tão mau, que não era com certeza, mas era um erro muito grande não permitir que a sociedade civil se gerisse a si mesma, com os seus erros e vícios. Esta é a sociedade que temos! Manteve-se o Conselho da Revolução talvez tempo demais… não faço a mínima ideia, é uma questão de perceção, de prisma, mas julgo que foi suficiente. Tivemos eleições logo a seguir, as primeiras eleições para a Assembleia Constituinte. Foi excecional, cerca de 95% de adesão às eleições, um número que hoje quase que pensamos ser irreal, mas foi verdade, todas as pessoas quiseram votar, era a sua participação no 25 de Abril. E depois somos a sociedade que somos, mais à esquerda, mais à direita, com os seus vícios, com os seus gritos, os seus defeitos muito grandes de corrupção, de compadrio, de falta de respeito, etc., mas não nos podemos esconder, somos assim. Infelizmente vai levar muito tempo para nos modificarmos.

É o grande impulsionador do Museu de Abril e dos Valores Universais na Escola Prática de Cavalaria de Santarém, aliás integrou a comissão executiva para instalação do Museu. Em que fase está?
Bem… o grande impulsionador, neste momento, será o presidente da Câmara de Santarém, que tem essa responsabilidade. Sempre me interessei para que ficasse em Santarém a memória do Movimento, não como Capitão de Abril mas como cidadão e como escalabitano. Julgo que uma cidade – e falo agora como membro da cidade de Santarém – deve-se orgulhar das coisas boas que fez, das coisas que a honram e julgo que o facto de a unidade sedeada em Santarém ter contribuído de uma maneira bastante forte, contundente, no 25 de Abril, não só pela imagem que deu, pelo espaço que deu, por ter vergado o governo, pelo comportamento que teve, merecia que a cidade registasse esse passo. Por conseguinte, desde os primeiros tempos que tenho apoiado as perspectivas de se criar aqui um movimento de memória da cidade. Ainda Salgueiro Maia era vivo, ainda na EPC, fizemos um museu ligado à Cavalaria em que uma das componentes era precisamente o 25 de Abril. Mas isso morreu, não houve interesse da parte do poder político. Para se fazer um museu destes tem de ser o poder político a dar o passo em frente. A cidade a querer, tem de ser a cidade e encabeçar e não a tropa ou os militares do 25 de Abril a imporem isso. Nada disto é imposto! Se não é aceite, percebido e ambicionado, então não vale a pena.
Portanto, o Museu nasceu de conversas logo a seguir ao 25 de Abril ainda com Salgueiro Maia.
Sim. A primeira vez que se falou nisso foi logo a seguir ao 25 de Abril, mas não foi avante, falou-se depois por altura dos 20 anos do 25 de Abril numas cerimónias em Santarém que tiveram carácter nacional, em 1994, já Salgueiro Maia tinha falecido. Na altura não foi avante porque não havia um espaço condigno para fazer o museu, foi uma das respostas que obtive. Em 2015, nós (Comissão do 25 de Abril) falámos numa reunião com o presidente da Câmara na deslocalização da estátua de Salgueiro Maia, a meu ver – mostrei este ponto de vista à Comissão com o qual concordou – a estátua está mal colocada na periferia da cidade, na saída de Santarém em direção ao Cartaxo. Na minha opinião deveria ficar no coração da cidade. Hipocritamente está naquele local porque foi ali que a população esteve à espera da coluna de Salgueiro Maia. É falso! A população esteve ali como esteve na cidade toda, naquele local estavam algumas pessoas e Salgueiro Maia nem sequer veio nesse dia, mas no dia seguinte. Deu para justificar a colocação da estátua naquele local, um sítio onde mal se vê, complicado até para qualquer cerimónia que é feita. Por isso, propusemos que a Câmara estudasse um lugar mais condigno, a Praça da Liberdade, onde não ficaria mal, poderia ficar junto à EPC, poderia ficar noutro lugar qualquer com outra projeção e no aconchego da cidade para que pudesse ser visitada, porque ninguém vê a estátua de Salgueiro Maia. Nesta conversa em que se falou no museu, o presidente da Câmara ficou muito sugestionado com a hipótese e em 2015 telefonou-me para marcamos uma reunião, esse foi o primeiro alvitre para falarmos do Museu de Abril. O presidente pediu-me para constituir uma comissão executiva e convidei uma série de personalidades, da história à arquitetura, e abordámos o trabalho pedido pelo presidente da Câmara, que nos marcou uma data para apresentar a proposta, finais de 2018, relacionada com fundos comunitários. E respeitámos isso, por volta do dia 20 de dezembro de 2018 entregámos os nossos trabalhos. Sujeitámos à apreciação, do conteúdo do que era o museu, a filosofia do Museu do 25 de Abril, da Assembleia Municipal e da Câmara, foi aprovado por unanimidade e consolados com essa aprovação constituímos aquilo que pensamos ser o correto. Não se vocacionava só ao 25 de Abril mas simplesmente a perspetivar as razões de nascimento do 25 de Abril, as bases históricas do Movimento, e até à fase da abertura das portas que Abril abriu. Portanto, nasceria na Revolução Francesa que é a grande revolução que nos toca, ao mundo ocidental, com os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, na base de construção das constituições dos países ocidentais. O final da monarquia e os primeiros anos da República, o que se passou concretamente na cidade de Santarém – a componente local –, passando pelo período negativo dos mais de 40 anos de ditadura, que perspectivamos que fosse feito em cave para se perceber precisamente que era um tempo escuro, um tempo opressivo, e depois uma subida para a liberdade e para as portas que Abril abriu. Esse projeto foi feito, a Comissão Executiva terminou em 2018, houve várias candidaturas que se apresentaram, uma venceu, já a conheço e não desgosto dela, está bem apresentada. A nossa perspectiva era que o museu fosse inaugurado nos 50 anos do 25 de Abril. Já não é possível! Aguardar-se que a Câmara dê os passos necessários.
“A estátua de Salgueiro Maia está mal colocada na periferia da cidade, na saída de Santarém em direção ao Cartaxo. Na minha opinião deveria ficar no coração da cidade num lugar mais condigno, como a Praça da Liberdade ou junto à Escola Prática de Cavalaria, para que pudesse ser visitada – porque ali ninguém vê a estátua de Salgueiro Maia.“
Caiu por terra a ambição de, aquando dos 50 anos do 25 de Abril, as celebrações oficiais serem em Santarém, e dar-se também a abertura do museu.
Não sei. O Museu ser inaugurado nem pensar! Talvez o lançamento da primeira pedra. As celebrações serem feitas em Santarém é difícil, mas serem feitas comummente em Lisboa e em Santarém é possível e desejável, porque fazer a redundância do 25 de Abril em Lisboa é um erro. Tive oportunidade de ter uma reunião com a senhora comissária, Maria Inácia Rezola, falei primeiro com o comissário inicial, o atual ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, e de facto a comissária concordou e ficou bastante sensibilizada, que o projeto dos 50 anos abrangesse as comemorações feitas em Lisboa, visto que o esforço principal do 25 de Abril é em Lisboa, as imagens marcantes são em Lisboa, no Quartel do Carmo, na Praça do Comércio, a rendição do governo é em Lisboa, mas que não se olvide o esforço feito no Porto, em Estremoz, etc. Que sejam respeitados os vários locais, nomeadamente Santarém. Ficaria bem começar as comemorações no dia 24 em Santarém, porque é aqui que se dá a génese da saída da coluna e depois serem colmatadas em Lisboa, no dia 25. Mas não sei, estou completamente fora do programa, esta foi apenas a ideia que lhe transmitimos.

Em 2021 foi condecorado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, com a Ordem da Liberdade, Grau de Grande Oficial. Como recebeu esse reconhecimento?
Recebi a Ordem da Liberdade logo na manhã do dia 25 de Abril de 1974, quando abrimos as portas do quartel e estava uma multidão à porta. Recebi imensos abraços e vi muitas lágrimas. Essa foi a melhor Ordem da Liberdade que recebi: a dos meus conterrâneos, amigos, camaradas. Foi o melhor aconchego que me poderiam ter dado. Como oficial da EPC recebi a Ordem da Liberdade coletiva, à unidade Escola Prática de Cavalaria, envolvendo todos os seus componentes; oficiais, sargentos, praças e pessoal civil. E ainda, como cidadão da cidade de Santarém, voltei a receber quando a cidade recebeu a Ordem de Liberdade pelo facto de ter contribuído para o 25 de Abril e ser uma alternativa à falha de Lisboa. Nessas três vezes estava lá, ou seja, estava na manhã do 25 de Abril a receber um abraço da população, estava no quartel de Santarém quando o Presidente da República da altura entregou a Ordem da Liberdade à EPC, e estava na cidade de Santarém quando outro Presidente da República entrou à cidade a Ordem da Liberdade. Quando quis entregar pessoalmente o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, foi um ato que agradeci sinceramente, mas já servido frio, porque o calor foi o inicial. Mas agradeço imenso a imagem que deu, era uma preocupação do capitão Vasco Lourenço, que todos os participantes do 25 de Abril, tarde ou cedo, recebessem a Ordem da Liberdade. Houve um Presidente que durante 10 anos não atribuiu a Ordem da Liberdade, o que fez com que todo este processo se atrasasse bastante. Agora o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, honra lhe seja feita e tem o meu aplauso, tenta, de tempos a tempos, fazer entrega maciça de condecorações com a Ordem da Liberdade. Poderia ter sido diluído ao longo do tempo mas infelizmente não foi.
Depois do fim da vida militar ainda esteve à frente da Santa Casa da Misericórdia de Santarém. O que faz atualmente?
Sim. Depois fui convidado, já como coronel, para trabalhar em Lisboa na direção de Recrutamento. No fim da vida militar não quis fazer lugares de reserva, estava interessado em fazer voluntariado numa organização da cidade e na altura falei com o então provedor da Santa Casa da Misericórdia de Santarém, um amigo, colega de liceu, que ia encabeçar uma lista para a Misericórdia de Santarém, e integrei essa lista. Ainda estive quase 6 meses no ativo fazendo parte da Mesa Administrativa, mas sem a minha presença porque estava em Lisboa. Fui para a Misericórdia onde estive 15 anos, quase sempre na Mesa Administrativa e três anos na Assembleia Geral. Foi uma experiência muito engraçada na qual espero ter dado algum contributo para aquela instituição. Recebi muito da vivência daquela instituição, em termos de solidariedade, espírito de sacrifício e apoio aos mais desvalidos.
Entretanto escrevi um primeiro livro sobre o 25 de Abril e depois escrevi uma segunda publicação sobre a cidade de Santarém e o 25 de Abril. Agora escrevo uma coisa ou outra, tenho umas coisas escritas que não serão para publicar. Trabalho numa investigação há muito tempo sobre a localização da célebre Batalha de Ourique. Sempre fiquei perplexo como é que se falava na Batalha de Ourique, no Alentejo, como é que se deram passos tão grandes não se situando no tempo? A corte estava em Coimbra, como o rei vai para o Alentejo, assim sem mais nem menos, com pessoal apeado no mês de julho, com calor, a passar rios, no meio dos inimigos, se nem sequer tinha conquistado Leiria, passar por Alcácer do Sal onde estavam os mouros, ir a Ourique fazer o quê?… mas isso fica para outra conversa. Tenho bastante interesse na História.

O que é que gostaria de ter feito e não fez ou gostaria ainda de fazer?
Tenho 83 anos e conheço quase o mundo inteiro. Casei com uma geógrafa curiosa do mundo, da geologia, da geografia, das pessoas, das personalidades, que se adaptou também aquilo que é a minha vida e aquilo que eu gosto. Planear uma viagem é um gozo muito grande e no final confrontar aquilo que se viu com o planeado. Quando fazemos uma viagem na verdade fazemos três viagens: planeamento, a viagem em si, e depois recordar através das fotografias e das histórias que contamos aos amigos. Privilegiámos todos os nossos pertences para viajar e conheço as Américas, a Ásia, a Europa, portanto dei a minha volta, escrevi sobre isso. Realizei-me aí e também através dos filhos e dos netos. Agora já não vou a lado nenhum, não posso esquecer que há 54 anos perdi uma perna na Guerra, estou muito dependente, há cerca de dois meses passei a usar uma bengala. E com a prótese fazia a minha vida normal, incluindo jogar voleibol, mas com a idade tudo isso se torna limitativo e agressivo, portanto passei a andar muito menos, a ler mais e a estar em casa. É uma fase mais contemplativa. Espero manter vivo o espírito atualizado, mas é diferente.
Sendo um homem com mundo e militar qual é a sua leitura do atual cenário internacional?
É muito complicado. A economia, as finanças, os tostões mandam no mundo. Os interesses das pessoas vão até certo ponto mas depois começa a carteira a pesar. As tensões que existem em África são dificílimas de resolver, veja-se o que se está a passar agora no Sudão. Há vontades individuais e chefes que não estão na nossa mentalidade ocidental, matam de qualquer maneira a seu belo prazer, só exercem o poder. O que se está a passar na América do Sul também é complicado, porque tem muito a ver com o poder ligado à droga, estes gangues constituem depois movimentos que se politizam e tornam-se partidos políticos ou forças políticas e ganham poder e depois só estranhamos quando determinado indivíduo chega ao poder e é chefe de um gangue da cocaína ou algo do género. Na Europa mantivemos algumas democracias, uma certa pureza. Esta situação agora na Ucrânia é muito complicada porque nos bateu à porta e toca a amigos, a Ucrânia é amiga, e tivemos algumas relações com a Rússia depois da Guerra Fria. Houve inicialmente um grande apoio à Ucrânia mas as pessoas estão a cansar-se e o cansaço pode retirar apoio. Agora vamos ter um problema com o Brasil por causa da tomada de posição do presidente Lula, ao qual somos alheios mas somos obrigados a servir de árbitros numa coisa que não queríamos, numa crítica aberta aos Estados Unidos e à Europa. Dá a sensação que não percebeu o problema ou será que somos nós que não percebemos? É realmente complicado.
O regresso à madrugada do dia 25 de Abril de 1974 é rejuvenescedor. E sermos guiados nessa visita por quem lá esteve, virando a página da História, iniciando este novo ciclo em que vivemos, é um privilégio.
Não importa quão longo seja um inverno, pois a seguir virá sempre uma primavera.
Obrigado pela entrevista.