Anacleto Batista, provedor da Santa Casa da Misericórdia de Sardoal desde 1989, pediu a renuncia do cargo . Foto: mediotejo.net

Anacleto Silva Batista, solicitador de profissão, nasceu a 17 de julho 1937 em Cabeça das Mós, Sardoal, mas vive em Abrantes desde 1961. Filho de agricultores, irmão de oito, viveu parte da sua vida em ditadura e outra em democracia. Diz nunca ter “passado fome” mas sabe o que são dificuldades. Escolhido para deputado na Assembleia da República, cargo que manteve entre 1981 e 1985 eleito pela Aliança Democrática (AD), pelo distrito de Santarém, esteve envolvido na primeira revisão constitucional em democracia. Atualmente é deputado municipal pelo PSD em Sardoal, cargo ao qual não quer voltar apesar da proximidade das eleições autárquicas de 2021. Afirma-se desiludido com a política. Homem de forte religiosidade, chegou a frequentar o Seminário de Gavião mas não foi ordenado padre. Desde 1989 que é provedor da Santa Casa da Misericórdia de Sardoal, instituição envolta em polémica devido a complexos problemas financeiros assumidos pela administração da Instituição. Recentemente, chegou mesmo a ver o presidente da Mesa da Assembleia Geral pedir a sua demissão.

Muitos anos passaram mas ainda recorda os tempos em que foi deputado no Parlamento, de 1981 a 1985. Como é que foi essa ‘aventura’?

O Parlamento naquela época era muito diferente do que é hoje. A começar pelas condições de acústica, assentos, filas, etc. O grupo parlamentar a que pertencia tinha um telefone para 60 deputados. Tínhamos de esperar na fila para poder utilizar o telefone. Se não fosse rápido ficava para depois de almoço. Como a minhas habilitações eram na área de Direito fui inserido na Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias, a comissão principal naquela altura. O primeiro Orçamento do Estado em que participei na votação, começamos às 14h00 de um dia e terminámos às 10h00 do dia seguinte, em contínuo, sem sair da Assembleia. Ninguém dormiu nada. Foi uma maratona. Mais tarde, em 1982, por força da primeira revisão da Constituição, quando saiu o MFA [Movimento das Forças Armadas], fui integrado na Comissão de Revisão Constitucional como membro redator, ou suplente sempre que havia justificação para isso. Houve alteração da composição da Mesa e fui eleito vice-secretário da Mesa da Assembleia, e portanto tinha dupla função. Naquele ano, devíamos ir de férias em julho, mas só tivemos férias a partir de 23 de agosto porque tínhamos de acabar a revisão constitucional. Logo em setembro tivemos de votar o programa do governo porque houve dissolução do Governo e formou-se outro, quando apareceu o bloco central. Tudo isto se passava sem ar condicionado, sem condições de trabalho e sem gabinete de trabalho privado.

Olhando hoje para o Parlamento qual a grande diferença que nota?

Essencialmente esta: na altura qualquer deputado, estivesse na quinta bancada ou na primeira, se quisesse pedir a palavra fazia sinal à Mesa e era-lhe dada a palavra. Hoje parece que só o grupo destinado para esse efeito é que pode usar da palavra, os outros são meros figurantes. Naquela época diziam que servíamos só para nos levantar e sentar, mas desminto! Fiz intervenções sempre que pedi a palavra e nunca me foi recusada. Não só intervenções diretas mas também interpelações a outros deputados.

Portanto, uma experiência positiva que retira da sua vida política.

Foi enriquecedor. Independentemente das amizades que se faz, nos vários quadrantes políticos, nos quatro cantos do País e até nas Ilhas. Algumas ainda perduram. Em São Miguel tenho três amigos com os quais contacto periodicamente, nunca perdemos essa relação de amizade. Partilhávamos os bons e os maus momentos, almoçávamos ou jantávamos, tínhamos um grupo muito unânime e muito firme. Tive a honra de trabalhar ainda com o falecido dr. Francisco Sousa Tavares que chegou a ser líder do grupo Parlamentar, trabalhei diretamente com o ministro da Justiça e com o ministro das Finanças da altura, com dr. António Capucho que também foi líder do grupo parlamentar e com quem tive um contacto muito estreito, independentemente de todos os outros. Quando tomamos contactos com muita gente, com muitas cabeças, muitas opiniões ficamos sempre enriquecidos porque alguma coisa fica cá. Precisamente por isso ainda conservo na memória aquele tempo, principalmente da revisão constitucional onde tinha de contar constantemente. A ordem do presidente da Mesa era isto: vá sempre contando, quando tivermos maioria pomos à votação, quando não tivermos não pomos.

Foi também uma jornada difícil?

O MFA não queria que houvesse revisão da Constituição e sair de lá. Foi uma experiência que nunca tinha tido na vida mas havia dias que uma hora ou duas depois de estar sentado na mesa quase que nem sabia o que estava a fazer. Sabia! Mas tinha dificuldade em memorizar o número de deputados que saía e entrava, numa contagem constante. Um trabalho que deu muito que pensar. Nessa Comissão de Revisão Constitucional fazia parte o prof. Vital Moreira e o dr. Lino Lima do Partido Comunista, com quem tive as maiores pegas mas com quem me dei melhor. Discutíamos ideias mas as relações de amizade nunca tiveram a ver nem com partidos, nem com religiões, nem com nada.

Naquela época discutiam-se mais ideias do que hoje?

Sim. Porque havia uma coisa que hoje não há: Qualquer deputado fazia intervenções. Um deputado de Trás-os-Montes, que não estivesse na fila da frente, poderia levantar questões de Trás-os-Montes como eu levantava de Abrantes. Quando foi encerrado o hospital da Misericórdia tive uma pega com o dr. Lino Lima. Certa vez, era o dr. Francisco Sousa Tavares, líder do grupo parlamentar, numa das suas intervenções, pedi a palavra e corrigi-o e ele próprio reconheceu que tinha errado. As relações de amizade resultaram de uma forma e de um estilo de trabalhar na Assembleia completamente diferente de hoje. Tive discussões mais acesas porque pela primeira vez foi apresentada a lei do aborto, embora disfarçada em três; educação sexual, formação para a gravidez e parto. Tomei parte na discussão e cheguei a dizer: “se forem por esse caminho Portugal vai muito bem para o fundo”. Lembro-me destas palavras, na intervenção do deputado do PS dr. Luís Nunes que perguntou: “qual era o futuro que estava a preconizar?”. E eu disse: “o futuro é que qualquer dia somos todos velhos e não temos juventude”. Infelizmente a coisa aconteceu.

Anacleto Silva Batista. Créditos: DR

Quem eram os seus companheiros de bancada?

Ao meu lado direito tinha o dr. Santana Lopes e ao meu lado esquerdo a arquiteta Helena Roseta. A minha companhia.

E nas lista pelo distrito de Santarém?

O cabeça de lista era dr. Leonardo Ribeiro de Almeida, o segundo um candidato de Ourém já não me recordo do nome, o terceiro o dr. Oliveira Batista, de Tomar, o quarto era eu. No meio estavam dois elementos do CDS porque a lista era da AD.

Saiu aquando da primeira eleição de Cavaco Silva. Porquê?

Saí a meu pedido. Escrevi uma carta dirigida ao presidente do partido, o prof. Cavaco Silva, a explicar-lhe as razões de não entrar na lista nem em primeiro nem em último suplente. Porque na altura o presidente da Comissão Política Distrital e Governador Civil do distrito de Santarém, dr. Pereira da Silva, não podia comigo. Não nos entendíamos de maneira nenhuma. Ele gostava de usar muito o ‘lambe botas’ e como nunca na minha vida usei esse método… aprendi com o meu pai: acima de tudo temos de preservar a nossa própria honra. Sempre tive esse princípio e nunca pedi nada a ninguém, entrei para a lista porque me propuseram. Naquele tempo, todos os cargos que exerci no PSD, alguns a nível distrital outros a nível concelhio, foram sempre por eleição direta.

Quer detalhar?

Em 1985, depois do Congresso da Figueira da Foz, estava como delegado ao Congresso quando foi eleição do prof. Cavaco Silva como presidente do partido, entenderam que devia entrar na lista dos candidatos a deputados pelo distrito de Santarém e quando foi na formação da lista no concelho nacional apareci colocado pelo presidente do grupo parlamentar em terceiro lugar, e numa manobra pelas costas dele puseram-me em décimo primeiro. Então decidi escrever uma carta ao presidente do partido. Sei que a leu, disse-me ele próprio. Eu concedi entrar, e até poderia ir para o lugar de suplente, mas o senhor Pereira da Silva saía de presidente da distrital e de governador civil. Como nada disso ocorreu, saí.

Anacleto Batista com Aníbal Cavaco Silva. Créditos: DR

Voltou a integrar uma lista de candidatos a deputado da República?

Anos mais tarde ainda fui abordado para fazer parte da lista de candidatos a deputados. Houve um ano, era presidente da Comissão Política de Abrantes, como não havia mais ninguém que quisesse e para marcar a posição de Abrantes, candidatei-me, fui inserido sabendo que nunca seria eleito. Infelizmente hoje Abrantes praticamente não tem PSD, não faz oposição à própria Câmara, deixou perder uma oportunidade de marcar posição quando o dr. Humberto Lopes foi presidente da Câmara.

A política desiludiu-o?

Politicamente estou desiludido e mais desiludido estou há uns tempos para cá. Estou desiludido com a minha própria secção que é Abrantes. Sou o militante do PSD número 142, a minha mulher, Delmira Batista, é o 143. A primeira mulher a filiar-se como militante do partido em Abrantes. Nunca deixei de tentar participar. Nas ultimas eleições para a Comissão Política vieram ter comigo para apoiar e tiveram a minha assinatura. Apesar de ter sido desafiado por outras forças políticas para integrar as suas listas, mas só se tivessem dinheiro para me pagarem bem, tipo jogador de futebol, transferia-me de clube, mas assim prefiro ficar no meu, mesmo que fique mal.

Portanto, assume-se como um social democrata convicto…

Sou um social democrata desde o dia em que li o programa do PPD. Quando houve a primeira reunião em Abrantes para a formalização do Núcleo a partir desse momento filiei-me. Tive episódios mais tarde com o dr. Consciência que era socialista, eu trabalhava no escritório dele, e apresentou-me um papel para me filiar no PS mas mostrei-lhe o cartão de militante do PPD. A partir daí politicamente ficámos de relações cortadas.

Além de recordar, foi criada uma Associação para não perder aqueles tempos da vida do Parlamento?

Criamos há sete anos a Associação dos Ex-deputados da Assembleia da República, por iniciativa do deputado de saudosa memória, que foi presidente da Mesa da Assembleia, dr. Leonardo Ribeiro de Almeida. Reunimos anualmente, com um tema e nós – cerca de 40 ou 50, embora sejamos mais de 100 – damos o nosso contributo. Ainda há pouco recebi a convocatória para nos reunirmos antes do final do ano. Um momento de convívio, de partilha, de relembrar alguns episódios, uns grotescos outros com graça, para não se perder aqueles primeiros tempos da vida da Assembleia da República, tirando a Constituinte em que estive na lista como suplente mas não cheguei a entrar e ainda bem porque aquilo não foi nada meigo.

Anacleto Batista na Comissão Política do PSD de Abrantes. Créditos: DR

Atualmente afirma-se desiludido com a política concelhia, como já referiu, mas também nacional?

Acho que politicamente o País está a ser mal conduzido. Falo porque faço parte dos órgãos sociais da Santa Casa da Misericórdia de Sardoal, como provedor desde janeiro de 1989. Antes disso fui presidente da Mesa da Assembleia, presidente do Conselho Fiscal e vice-provedor. Nunca virei as costas à minha responsabilidade e ao que me foi pedido na medida da minha disponibilidade. Tudo isto sem nunca envolver carácter político. Mas permite-me dizer que nenhuma das forças políticas está a olhar para a realidade do País. Na altura que fui deputado tínhamos de discutir o Orçamento do Estado tostão a tostão. Era discutido por toda a gente com toda a sinceridade, e todos davam opiniões. Aquelas tidas como exequíveis eram levadas em linha de conta.

Defende uma revisão do setor social?

O Governo tem de rever o setor social em profundidade. A continuar assim, a maioria das IPSS fecha a porta, a curto prazo. Estamos a sofrer e iremos sofrer mais ainda porque os governantes preocupam-se mais com o seu próprio umbigo do que com a realidade da vida do País. Enquanto provedor da Santa Casa da Misericórdia digo que dentro de dois anos: ou as pessoas com mais de 75 anos morrem todas, ou deixam de ter onde ser asiladas. As famílias não as podem receber, não têm capacidade, e as instituições não conseguem viver com uma comparticipação do Estado que é uma miséria.

E os utentes têm capacidade financeira para pagar?

Os utentes e as famílias, como têm rendimentos baixos também não podem acompanhar. Mas chega ao fim do mês temos de pagar os vencimentos aos funcionários, pagar aos fornecedores e a Misericórdia se não tiver as comparticipações das pessoas para quem está aberta, dos utentes, e dos parcos rendimentos que tem de prédios que vão tapando muitos buracos do Estado, entre aquilo que devia pagar e aquilo que não paga… No passado houve muita coisa errada no País, mas agora indo por este caminho não sei se a situação não se torna irreversível, ou seja, a incapacidade de muita gente sobreviver com os rendimentos que têm.

E voluntários nos corpos sociais das IPSS, permanece esse interesse solidário?

As instituições, a muito curto prazo, vão deixar de ter voluntários para os corpos sociais. O dia chegará em que só virão pessoas para os órgãos sociais devidamente remuneradas e eu pergunto onde vão as instituições buscar o dinheiro? Temos médicos, psicólogo, duas enfermeiras, fisioterapeuta mas o Estado não dá um tostão para isso. A comparticipação que vem é tão simplesmente pelo número de utentes que temos em acordo. E se porventura tiver cá uma pessoa a mais, pagava mil euros de multa.

Quantos utentes tem atualmente a Santa Casa da Misericórdia de Sardoal?

Neste momento temos protocolo para 44 e já conseguimos reduzir para esse número. Infelizmente as pessoas foram morrendo e não admitimos mais ninguém. Enquanto não tivermos esta situação devidamente regularizada com a Segurança Social não vamos alterar nada. A única coisa que teremos de fazer perante os utentes e familiares é isto: Se o rendimento for inferior aos custo médio os utentes terão de ir buscar o restante aos filhos ou a quem de direito.

E se o utente não tiver família o que fará?

Temos cá 10 pessoas nessas condições. Não têm nada nem ninguém e nunca as deixámos cair na valeta. A Misericórdia, dos parcos rendimentos que têm, vai mantendo essas pessoas até que tenha capacidade económica para o fazer. Mas se não houver por parte do Estado um assumir de responsabilidades diretas pelo custo, então estamos muito mal! Para mim é incompreensível que se a Segurança Social entender ir buscar um utente a Tomar – temos quatro camas reservadas para a Segurança Social – pagam à Misericórdia 950 euros, se tiver um utente de Sardoal que não esteja naquele quarto mas no quarto ao lado, a mensalidade é em harmonia com os seus rendimentos mas o Estado paga cerca de 400 euros. Porquê esta disparidade? A Misericórdia é considerada uma empresa do sector social e não deve ter lucros mas também não deve ter prejuízos e temos de pagar à Segurança Social a Taxa Social Única como se fossemos uma entidade de lucro. Se não pagarmos a TSU no dia 20 de cada mês começamos logo a pagar juros de mora.

Que solução aponta?

Bastava que a Misericórdia deixasse de pagar a Taxa Social Única – da entidade patronal – para termos um equilíbrio de contas.

Mantém a sua posição, e da Mesa Administrativa, de não apresentar demissão?

A Mesa Administrativa decidiu por unanimidade não apresentar demissão. Se os irmãos entendem que estamos a gerir mal, têm os mecanismos legais para se socorrer. Podem apresentar listas, pedir uma Assembleia Extraordinária, podem fazer o que quiserem. Jamais pedi a demissão do que quer que fosse… vamos ter uma Assembleia dia 17 [de outubro] para resolver alguns problemas.

Anacleto Batista. Créditos: mediotejo.net

Uma vez que se afirma desiludido com a política, para o ano há eleições autárquicas, pensa voltar a integrar as listas do PSD para a Assembleia Municipal de Sardoal?

Neste momento, aquilo que sinto, em relação à vida autárquica e à vida da política nacional leva-me a dizer que não voltarei a ser candidato a nada. Vou-me dedicar à família, que é somente a minha mulher – as minhas duas filhas faleceram. Já o deveria ter feito há muito tempo. Há oito anos que não tenho férias.

Para assumir a vida de político deixou de lado a sua profissão de solicitador?

Fui solicitador durante 40 anos. Aliás, continuo solicitador porque pago as quotas mensalmente para continuar inscrito na Câmara dos Solicitadores. Tenho escritório em Abrantes. Vivo da minha profissão. Nunca a deixei. Cheguei a ir todos os dias para Lisboa e vir para despachar 3 horas no escritório para entregar trabalho no dia seguinte. Foi a minha salvação. Um colega meu de Peniche deixou de ser solicitador para se dedicar exclusivamente à política. Mais tarde levou um pontapé da política e depois já não teve capacidade de refazer a vida profissional. Acabou a vender produtos lubrificantes de oficina em oficina para governar a vida. Como solicitador tenho emblema de prata e estou à beira do diploma de ouro.

Falando dos primeiros tempos da democracia portuguesa e copiando um conhecido jornalista, pergunto-lhe onde estava no 25 de Abril?

A trabalhar no escritório do dr. Consciência em Abrantes. Houve uma revolução pacifica e a transição do poder. A grande ditadura veio a seguir, porque pessoas como eu que andavam em campanha eleitoral foram corridas à pedrada e ameaçadas de morte. O anterior regime era ditadura de facto. Fui “convidado” para fazer parte dos bufos do Estado Novo e na altura só disse à pessoa que me falou nisso: “só por respeito ao meu pai que está aqui ao pé é que o senhor não voa pela janela fora”. Isto dito a uma pessoa importante do regime. No 25 de Abril estava com sete listas a vermelho; era comunista, bolchevista, etc. Após o 25 de Abril e até ao 25 de Novembro estava em sete listas, da UDP, do PCP, da LUAR, do MRPP para ser abatido. Tive a honra de ser indicado pelo sr. dr. Arnaldo de Matos como tipo a abater. Nunca escondi que era filiado no PPD. Fomos atacados numa sede, a tropa em vez de nos defender contra a LUAR, foi defender a LUAR contra nós. Foram momentos que desejo que mais ninguém viva na vida. No Estado Novo eram os cabecilhas das PIDE e depois passaram a ser os cabecilhas da Revolução. Fui considerado fascista por esta democracia.

Como é que soube das listas?

Soube através do comandante do Regimento de Infantaria, o tenente coronel Casanova Ferreira, que teve acesso e me mostrou a folha do Estado Novo e a folha da democracia. Tenho as listas guardadas num cofre. Quando foi o 25 de Novembro o dr. Simas, o dr. Graça Vieira e o dr. Consciência e eu soubemos que Abrantes estava para ser cercada pelos fuzileiros, para obrigarem a base de Tancos e os paraquedistas a não aderirem à revolução. Felizmente a coisa foi por um lado complemente diferente. Sabíamos e estávamos completamente proibidos de dizer fosse a quem fosse. Recordo 24 horas de angústia até ser decretado o Estado de Sítio. Foram anos terríveis principalmente dos SUV – Soldados Unidos Vencerão, que invadiam tudo em Abrantes e davam murros a toda a gente.

Anacleto Batista. Créditos: mediotejo.net

Já pensou escrever um livro de memórias?

Tenho uns cinquenta A4 escritos. Comecei três livros e não vou acabar nenhum porque já não tenho paciência. Aliás há coisas que se perdem na memória dos tempos. Um rapaz meu amigo arranjou-me um aparelho para ler cassetes antigas e rolos de fita onde tenho muitas gravações. Se conseguir através do aparelho ainda sou capaz de tentar acabar pelo menos um livro. Um livro sobre religião. Publiquei vários trabalhos, tive ensinamentos de muitos mestres da liturgia e entendi que deveria escrever. Tenho muitas páginas escritas mas falta completar o essencial. Contudo, até a própria Igreja está a mudar. A unidade está a perder-se. Já nem os sindicalistas têm unidade quanto mais o resto.

Então defende a unidade?

Defendo uma unidade que se possível seja condutora para a unanimidade. Mas nunca impor ideias. A Igreja ainda não conseguiu lá chegar. Não podemos interpretar a Bíblia stricto sensu, até porque foi escrita num tempo completamente diferente. Oxalá apareçam mestres da liturgia que, inclusive, aperfeiçoem a linguagem que está na Bíblia. No Antigo Testamento diz que Deus é amor e hoje a Igreja, no século XXI, continua a dizer que temos de viver de mãos dadas como irmãos, aceitando os defeitos e virtudes.

Foi sempre um homem religioso?

Bebi no leite materno o viver em religião. Ainda frequentei o Seminário de Gavião. Mas não me considero nenhum santo. Gostaria muito de dizer que não tenho uma carrada de defeitos. Mas tenho, enquanto ser humano.

Tinha vocação para padre? Por que não fez os votos?

Nem eu sei! Nunca me foi explicado. Aceitei. Hoje há sacerdotes que admiro tremendamente, pessoas com quem tenho lidado em vários trabalhos, designadamente de formação litúrgica e às vezes penso que poderia estar naquele lugar. Mas se gostava de ter sido padre? Sim e não. Se tivesse ido para padre digo que teria sido tão fiel ao sacerdócio como sou como casado há 56 anos. Sempre reconheci os direitos iguais para a mulher e para o homem, mesmo solteiros. Um principio basilar na minha vida. Depois de 56 anos de casado tenho muita dificuldade em pensar se tinha sido um bom sacerdote ou se fui um bom marido. Um casamento com muitas tristezas, muitas dores mas também muita alegria. Foi muito bonito este tempo.

Anacleto Batista é o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Sardoal e deputado municipal eleito pelo PSD. Créditos: mediotejo.net

E que opinião tem do Papa Francisco que disse ser a política uma das formas mais altas da caridade?

É um Papa que está no século XXI com pensamentos do século XXII em alguns momentos, e tem outros momentos que está a viver no século XXI e tem pensamentos do século XX. No primeiro caso: há tempos o Papa falou em resolver o problema da Amazónia, houve logo quem dissesse que o Papa mandou ordenar homens casados porque não há padres, mas o Papa não disse nada disso. Falou em procurar gente que, se reunir as condições, por que não um homem casado ser ordenado padre? Se tem dignidade de vida, se tem condições de vida, se tem um comportamento que permite isso e até tem influência no meio. No segundo caso: em algumas reformas. Ainda não conseguiu fazer a ‘limpeza’ no Vaticano que deveria ter feito. Não pode haver intocáveis. Por exemplo as notícias de um cardeal [Giovanni Angelo Becciu] que renunciou ao cargo porque fez um investimento de 180 milhões de euros. É uma vergonha na Igreja de hoje.

A propósito dessas mudanças na Igreja Católica, é favorável à ordenação de homens casados?

Sou. Desde o tempo de João Paulo II. Ele disse numa entrevista: prefiro ordenar homens casados que tenham influências e que tenham uma aceitação grande no meio, do que voltar novamente a dar o ministério a quem a ele renunciou.

E defende os sacramentos aos divorciados?

Sim. Os divorciados deviam ter acesso a todos os sacramentos. Desde que a causa do divórcio seja uma causa considerada justa.

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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