Luzia Moniz é ainda cofundadora da PADEMA, uma organização da Diáspora Africana em Portugal, centrada na mulher africana, nos seus valores culturais e identitários com vista à sua afirmação na sociedade tendo em conta a igualdade de género e de oportunidades.
Jornalista, socióloga, ativista interseccional e pan-africanista é definida como uma mulher de garra e de causas. Que causas são essas? Expor os problemas do seu povo?
São os direitos humanos – os direitos das mulheres são direitos humanos – e toda a panóplia de direitos humanos são as minhas causas. Por exemplo, o direito das crianças à escola. Sou uma cidadã africana, de um continente em que o analfabetismo incide sobretudo sobre as mulheres. Uma cidadão angolana, de um país que tem quatro milhões de crianças fora do sistema de ensino. Então todas essas causas que têm a ver com os direitos humanos, a dignidade humana são as minhas causas.
Define-se como pan-africanista…
O sentido de pan-africanista tem uma história, uma raiz que vem do início dos processos libertários no continente africano. Quer dizer que não acredito num desenvolvimento de uma parte de África sem ser no sentido da integração, do seu conjunto. Ou seja, os problemas africanos em vez de serem resolvidos pelos angolanos sozinhos, os mauritanos sozinhos ou os sudaneses sozinhos é preciso que essa ação seja em conjunto, no sentido da integração africana.
Como é que foi a sua vida de jornalista num país como Angola?
Como é a minha vida de jornalista. É a minha profissão, eu sou jornalista, o resto eu estou. Não se deixa de ser jornalista! Não se deixa de ter aquele olhar critico perante os problemas e é isso que eu sou. A minha vida de jornalista não foi difícil nem fácil, em função das circunstâncias, não foi monótona, não foi sempre igual. Entrei para o jornalismo muito jovem, tinha 18 anos e tenho quase 61, portanto tenho uma longa carreira. Entrei depois da independência de Angola, em 1981, por uma simples casualidade. Porque tenho este espírito contestatário desde muito nova e tinha uma colega de liceu que trabalhava na Agência de Notícias ANGOP e havia um concurso para jovens que quisessem ser jornalistas. Ela perguntou-me porque não concorria uma vez que gostava muito de política e estava sempre em debates e discussões. Fui para satisfazer a minha amiga e fiquei e sou jornalista até hoje.

Nessa época militava em algum partido?
Sim. Entrei para a organização dos pioneiros do MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola] que se chamava OPA – Organização dos Pioneiros Angolanos, digamos que era o braço infantil do MPLA em 1974, logo a seguir ao 25 de Abril. Dá-se a Revolução em Portugal e tem consequências imediatas nos processos de pré independência dos países africanos, das então colónias portuguesas e os Movimentos de Libertação passaram a ter legalidade, os partidos deixaram de ser clandestinos e criaram as suas estruturas a nível nacional começando sobretudo pela capital, Luanda, onde eu vivia e como tinha 12 anos entrei para a OPA.
O que é surpreendente, sendo tão jovem mas com interesse na política, num país em processo de descolonização…
Sim. Mas esse meu interesse já vinha de trás. Sou da Igreja Metodista desde a barriga da minha mãe, a minha família é de pastores Metodistas e a Igreja Metodista era exatamente o contraponto à Igreja Católica. Uma Igreja onde havia mais revolta, mais contestação ao regime colonial fascista, de tal forma que os líderes dos Movimentos de Libertação, dos três principais, eram todos das igrejas protestantes, nenhum era católico porque era ali onde, provavelmente, havia uma maior tomada de consciência. E a própria existência dessa igreja era em contraponto à igreja do regime que era a Igreja Católica e nessa condição – já era corista, integrava o coro central de adultos, entrei para o coro aos 9 anos… não que cantasse muito bem, mas talvez por ter muito interesse, até hoje canto mal – tinha esta pré preparação, a consciência que vivíamos numa injustiça, numa subjugação desnecessária. De tal forma que, um pouco antes do 25 de Abril, eu e uma colega, a Natividade Silva, estávamos a estudar no 6º ano – e as escolas eram divididas entre ala feminina e ala masculina -, organizámos uma greve na ala feminina. Conseguimos inventar umas notas de imprensa da escola e distribuímos e fomos pelas salas de aula comunicar que não havia aulas. Só não fomos expulsas porque veio o 25 de Abril senão hoje não estaria cá, não teria continuado a estudar. Portanto, já tinha essa veia política há muito tempo.
Em 1989 veio para Portugal, mas até essa data foi sempre jornalista em Angola?
Sim. Entrei em 1981, em 1982 fui para Moçambique onde estive até final de 1984, fiquei três anos em Moçambique onde estudei jornalismo. Porque entrei para a redação, tive a formação – naquela altura não havia formação em jornalismo na maior parte dos países – porque a UNESCO cria em 1982 em Moçambique uma escola interestatal, destinada aos estudantes de jornalismo dos países africanos de língua portuguesa e de Timor Leste. Estudo com colegas de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe, para além dos próprios moçambicanos obviamente, e também de Timor Leste. Esse foi um dos momentos mais enriquecedores da minha vida porque até então – embora conhecesse muita gente, em Luanda há comunidades diferentes como há em todas as metrópoles – nunca tinha vivido no mesmo edifício com pessoas de outros países. Constituí pela primeira vez uma família, porque funcionou como uma família, multinacional. Desse ponto de vista foi muito rico. Faço o curso, ao mesmo tempo faço de correspondente da ANGOP – a agência que me enviou para lá – e quando saio de Moçambique, regresso a Angola, e sou nomeada para chefe da Desk Africa porque saí de Moçambique com uma bagagem sobre África muito maior do que aquela que tinha em Angola. Até porque a sociedade Moçambicana – ainda hoje é assim – dá especial atenção às questões africanas, muito mais do que davam e dão hoje em Angola. E fiquei quase com um direito natural a chefiar a redação africana da ANGOP. Fiquei até 1989 quando vim para Portugal como delegada da Agência de Notícias.

E enquanto jornalista em Angola sentiu algum tipo de impedimento, falta de liberdade, nomeadamente nos temas que propunha?
Não. Tive o privilégio de tratar os temas africanos que são ‘a minha praia’, já eram naquela altura. E trabalhava na ANGOP que era a central de notícias do país. Ou seja, tudo o que era noticiado no país sobre África, passava por mim. Quer nas rádios, na televisão – só tínhamos um canal de televisão -, nos jornais. E estamos a falar no tempo do apartheid em que o noticiário, aquele em que trabalhei enquanto chefe da Desk Africa, era muito centrado na África do Sul até porque Angola estava em guerra com a África do Sul que ocupava parte do território angolano e parte do território moçambicano, atacava os países que apoiavam os movimentos de libertação da Namíbia e da África do Sul. Eu como pan-africanista nunca tive nenhuma dificuldade porque a minha conceção do que deve ser a libertação mediática, ou que devia ser naquele contexto da África do Sul, passava exatamente pela eliminação do apartheid, pela libertação de Mandela, etc, que coincidia com a posição oficial do regime, do MPLA que estava no poder. E ainda hoje tenho a forte convicção que não podia ser de outra forma.
E sentia naquela época a estatização dos meios de comunicação social?
Sim. Eram todos públicos, não havia comunicação social privada. Entrei para o jornalismo Angola tinha cinco anos de independência. Hoje há alguns jornais privados, aliás escrevo crónicas para o Novo Jornal – as crónicas do meu livro resultam da colaboração com esse jornal – que é privado. Mas a imprensa hoje tem muito mais dificuldades do que tinha naquela altura.
Porquê?
Temos de contextualizar as coisas. Vivíamos num regime de partido único que tem as suas regras de regime de partido único. Hoje supostamente vivemos num regime democrático com regras de regime de partido único. E esta é a contradição essencial do regime angolano, por isso há menos liberdade hoje, porque ninguém está à espera de viver numa democracia e ver meios de comunicação social capturados e ver captura da comunicação social, isto não é típico de uma democracia, então é uma farsa. Está inscrito em todos os documentos reitor que o Estado tal é uma democracia mas a prática desse Estado, das autoridades desse Estado são práticas ditatoriais. Por isso digo que era muito mais fácil naquela altura, até muito mais fácil combater, reivindicar, quando as coisas estão definidas. Hoje não! Vivemos nessa autocracia que tem alguns elementos de democracia, para fingir que é democracia, e um desses elementos são as eleições que se realizam de cinco em cinco anos e a Constituição, mas que é flagrantemente violada todos os dias quando se instala um regime dessa natureza.
Reconhece que Angola tem uma Constituição democrática mas considera o regime autocrático, ou seja, como disse a Constituição não é cumprida?
Claro. Porque temos um Estado totalitário, securitário, onde tudo é medido em função da manutenção de um único partido e com o poder centralizado num único individuo. Falamos do mesmo MPLA mas o MPLA foi-se metamorfoseando ao longo dos anos, transformou-se há muito tempo, não foi hoje, mas as coisas pioraram quando, na sequência do próprio processo de libertação de toda a região, o fim do apartheid, etc, teve necessidade, foi forçado fruto de todo esse processo, a instaurar uma democracia. Mas em vez de uma democracia simulou a instauração de uma democracia e instaurou de facto uma autocracia como forma de não perder o poder. Isso tudo só tem um objetivo: a manutenção do poder porque é através do poder que consegue os privilégios materiais e financeiros que lhes permite manter aquelas vidas, quase todas elas superficiais. A uma elite sobretudo do MPLA.

Qual a razão de escolher Portugal como a sua terra de adoção?
Como disse vim para Portugal como delegada da ANGOP. Finda a minha comissão de serviço, estava a estudar, a fazer sociologia, e acabei por ficar. No entanto, depois disso casei-me, depois de casar tive filhos, e uma catadupa de acontecimentos foram-me retendo aqui. Olhando para a degradação política, social e económica de Angola, e tinha de escolher onde viver porque não queria viver em Angola, fiz de Portugal a minha terra. Adotei Portugal como a minha terra por isso é a minha terra de adoção voluntária, escolhi. Poderia ter saído, até tive oportunidades para ir para outros sítios mas escolhi Portugal e gosto muito de morar em Portugal.
É cofundadora da PADEMA, de que se trata?
É uma organização da diáspora africana em Portugal, centrada na mulher africana. Uma plataforma para o desenvolvimento da mulher africana. Criamos essa organização – um grupo de mulheres africanas, porque encontrámos problemas comuns e achámos que unidas à volta de uma organização, de uma associação, seria muito mais fácil funcionarmos como um grupo de pressão para reivindicarmos os nossos direitos, reivindicarmos a igualdade de direitos e a igualdade de oportunidades porque é de mulheres migrantes, mulheres negras, mulheres afrodescendentes que estamos a falar. Mas não só isso, também a afirmação dos valores culturais, porque um individuo só é livre se puder ser culturalmente o que é e não estar sujeito a uma aculturação, a uma imposição, que muitas vezes vai contra os seus valores até morais e éticos. E então criamos a PADEMA.
E que perceção tem da situação das mulheres africanas desde a criação da plataforma? As mulheres precisavam de apoio?
E continuamos a precisar. Já não estou presidente, há pouco tempo deixei, no dia 25 de Abril – na verdade ainda não passámos as pastas, não fizemos todas as cerimónias que se impõem –, mas já há uma nova presidente eleita. Fui presidente durante seis anos – criámos a organização precisamente há seis anos -, e foram de grande aprendizagem, de muita responsabilidade também. Foram seis anos muito bons! Conseguimos internacionalizar a organização, que está nas Nações Unidas, é fundadora da Rede Parlamentar do Conselho da Europa para as Políticas das Diásporas, está internamente em Portugal sendo reconhecida pelos principais poderes. Enfim, temos feito alguma coisa nesse sentido.

Portanto, a PADEMA desempenha um papel relevante na criação de políticas públicas que visem as mulheres africanas?
Sim. Que visem os direitos humanos na generalidade. Quando falamos de mulheres temos de falar de crianças e quando falamos de crianças temos de falar de sociedade, os direitos humanos e a dignidade humana que são fundamentais quando falamos em direitos humanos.
Disse numa entrevista que “a discriminação de género devia ser catalogada como um crime contra a Humanidade”. Reitera?
Reitero. Porque não há maior forma de discriminação do que ser discriminado em função daquilo que é a identidade do individuo. Não há nada mais identitário ou mais identificativo do que o meu género. Discriminar é uma violência, violar alguém no seu género é a pior das violências que pode acontecer. E isso tem de ser criminalizado. Até como forma de reparação porque essa discriminação é secular como sabemos, o patriarcado continua a funcionar como um instrumento de subjugação, de desumanização, de infantilização das mulheres. Estamos a caminho de celebrar 50 anos do 25 de Abril e todas nós temos de nos lembrar que há 50 anos uma mulher não podia ter passaporte e apanhar um avião para ir onde quisesse, não por problemas financeiros mas porque tinha de ter autorização do marido. Uma mulher não podia decidir sobre a sua vida, as suas finanças, nem muitas vezes decidir sobre o seu corpo. A sociedade atual tem de fazer essa reparação e não encontro uma forma que seja mais eficaz, até como forma de prevenção, que a criminalização da violência de género.

‘Silenciocracia, jornabófias e outras mazelas’ é o livro que Luzia Moniz apresenta em Sardoal. Na obra reúne 38 artigos de opinião que escreveu. Trinta e cinco destes artigos foram publicados no semanário angolano ‘Novo Jornal’ onde tem liberdade de escolher os temas. Que temas são esses, é um livro sobre liberdades, liberdade de imprensa de expressão ou sobre silêncios ou até talvez censura?
É sobre tudo isso. É um livro sobre as liberdades. Por isso é um livro que aborda a igualdade de género, quando falamos de igualdade de género estamos a falar de liberdades porque é preciso pensar que não há igualdade sem liberdade. Tenho vindo a defender que vivemos num mundo em que há alguma confusão entre quantidade e igualdade de género. Por exemplo, fazemos uma festa porque o governo X tem o mesmo número de mulheres e o mesmo número de homens ou existe uma percentagem muito elevada de mulheres no Parlamento, etc. Mas se essas mulheres não forem livres, se as suas vozes não forem livres, no sentido de defender as mulheres, no sentido de defender os direitos humanos das mulheres, mas se forem reprodutoras do discurso do homem chefe, da vontade do patriarcado, não estamos a falar de igualdade de género, estamos a falar de quantidade. São essas inquietações, preocupações com o género, a preocupação com a liberdade de imprensa, preocupações culturais, afirmação de identidade, a defesa dos valores culturais e a democracia versus autocracia. Naturalmente porque algumas das crónicas são sobre Angola, sobre África, e temos esses dramas no continente africano – Angola não é o único regime – inscrito como regime democrático quando no fundo não passam de autocracias e algumas são verdadeiras ditaduras. E as mazelas são as de Portugal, como a questão do racismo, da colonialidade. Todas as crónicas foram escritas, exceto uma, em tempo de pandemia, em regime de confinamento, tempos difíceis e sempre de reflexão. Levaram-me muitas vezes a refletir sobre o confinamento a que estão sujeitos países e continentes inteiros, a pandemia mostrou-nos isso. Neste mundo supostamente globalizado há países e continentes inteiros que foram transformados em pária e este livro têm também artigos onde abordo esse tema.
O que é um jornabófia?
Um jornabófia é um conceito que eu criei. Durante o tempo do confinamento na sequência de um escândalo que aconteceu em Angola com a descoberta que um suposto jornalista era um agente credenciado dos serviços secretos. Inclusive foi publicado o seu cartão de agente, com o número, a fotografia e com tudo. O que me impressionou nesse escândalo foi a falta de indignação, fiquei impressionada com o aparente silêncio. Fazia parte de um grupo do WhatsApp que se chama ‘Jornalistas em Portugal’ e quando o caso explodiu questionaram-me se não dizia nada e eu escrevi que ‘temos de nos habituar a distinguir jornalistas de jornabófias’ e dei a definição no grupo do que é um jornalista e o que é um jornabófia. E alguém disse: ‘para quem acha que só Pepetela inventa palavras com definição aqui está uma excelente definição’. Até que numa semana decidi escrever sobre isso e até tirei ipsis verbis o que tinha escrito no grupo, coloquei no linguado no computador, e depois desenvolvi para denunciar essa intromissão de alguém numa profissão que me é cara, que é a minha. E o texto começa assim. “Este neologismo jornabófias define os agentes da bófia que sob capa de jornalistas aterrorizam, infernizam e destroem vidas e o bom nome da classe jornalística”. O texto saiu como um texto de denúncia a essas mazelas e digo claramente, porque não sou ingénua, que não é exclusivo de Angola o que talvez seja exclusivo é a falta de reação. A normalização disto é que é assustador e é contra essa normalização que me bato.
Falamos de um livro com seis capítulos: África e Diáspora, Género e Igualdade, Democracia versus Autocracia, Cultura e Identidade, Liberdade de Imprensa e Mazelas de Portugal. Como foram aceites as suas crónicas?
Em Angola, a juventude em geral aceita carinhosamente. Tenho esse feedback. Mas o poder político não. Virei inimiga – não de estimação… de estimação até era bom -, um alvo a abater.
E tem medo?
Não tenho medo. Por uma simples razão: tenho mais de 60 anos, considero-me uma cidadão privilegiada porque se sou de um país que tem quatro milhões de crianças sem escola, para já são não-cidadãos, quem não estuda não tem cidadania. A escola é o primeiro passo para a cidadania, mais do que o tal elevador social porque o elevador social depende de como partimos e nesse elevador não partimos todos do mesmo andar. Se tenho esses quatro milhões de crianças sem escola que serão futuramente não-cidadãos, eu que tenho escola, que aprendi a ler, a escrever, a pensar, a interpretar o mundo, sou uma cidadã privilegiada e tenho sempre de me colocar nesse lugar. Todos os dias penso nos quatro milhões de crianças sem escola, é uma questão que me coloco esteja onde estiver, em Abrantes, em Lisboa, em Maputo: e se eu não tivesse estudado? E peço aos políticos angolanos para se colocarem essa questão.
Portanto além do problema da pobreza em Angola, sente que a Educação falhou?
Sim. E não é a Educação que falhou é o país. Quando se falha a Educação é o Estado que falhou. Tudo falhou, falhámos como nação. Falhámos como país, como sociedade. Não há cidadania sem Educação. Não há cidadão sem educação. É o falhanço da independência. O maior falhanço de Angola independente é esse. Se um país não consegue dar escola a essas crianças e no entanto tem as receitas que tem, não é propriamente um país sem recursos financeiros, então nós falhámos redondamente!

No seu livro há também uma homenagem a Cabo Verde, porquê?
O meu livro abre com Cabo Verde. O primeiro texto do livro é ‘A lição de Cabo Verde’, e toda a gente me pergunta a razão de abrir com Cabo Verde. Porque sou uma pan-africanista mas não sou uma afro-pessimista, sou uma afro-otimista – mais realista do que otimista -, com consciência que é possível fazer diferente. E dentro desse princípio, desse espírito, escolho essa África que deu certo. Cabo Verde é esse exemplo de país democrático, com as imensas dificuldades que Cabo Verde tem, porque não é um país cheio de recursos naturais como petróleo, diamantes, ferro, gás, etc. Mas é um país em que as suas gentes, os seus políticos, sabem colocar a tónica no que é essencial e o que é essencial em Cabo Verde são os cabo-verdianos, independentemente das matizes, das cores que usam. E isso é um exemplo que os outros devem seguir. Aproveitei uma altura da eleição do novo presidente cabo-verdiano exatamente para escrever essa crónica, a lição que foi a transição entre um presidente de direita e um de esquerda. E não foi por eu ser de esquerda e ele ser um presidente de esquerda, foi por todo esse processo democrático em Cabo Verde que é uma referência no continente africano e no mundo.
Enquanto que, relativamente a Angola, defende que é preciso mudar o modelo político e económico de desenvolvimento…
Sim. Sem dúvida. É preciso construir uma sociedade inclusiva. Este tem de ser o primeiro passo. Inclusiva em todos os sentidos, independentemente da religião do individuo, da sua origem étnico-racial, independentemente da sua opção política/ideológica, independentemente do género. É preciso criar condições para essa sociedade inclusiva. Para tal é preciso fazer muitas coisas entre as quais mudar e blindar a Constituição porque temos uma Constituição aparentemente democrática, como já falámos, mas não está suficientemente blindada e permite a sua violação completa. Precisamos construir um país democrático. A democracia tem muitos defeitos, vivo num país democrático que também tem defeitos mas onde posso publicar e escrever. Tenho aqui textos contra Durão Barroso e outras figuras e ninguém me perseguiu por isso. O principal problema de Angola, contrariamente ao que a maior parte das pessoas diz, não é a corrupção são as desigualdades. São as desigualdades que fomentam a corrupção, ou seja, que tornam a corrupção impune porque é a desigualdade de tratamento na Justiça – nas sociedades onde não há muita desigualdade os corruptos são problema da Justiça, seja político, seja empresário seja o que for. Nas sociedades muito desiguais estão impunes e geralmente também imunes a qualquer processo judiciário. Portanto precisamos primeiramente combater as desigualdades para termos uma sociedade melhor.

Por falar em desigualdades, muitos analistas afirmam que em África, tal como em outros continentes, também na Europa pelo menos em Portugal, são as mulheres que mais carregam o problema da pobreza. Como vê esta realidade?
Sim. A pobreza tem rosto feminino. Em Portugal mais do que as mulheres em geral, são as mulheres negras. Os pobres são sobretudo negros mas são sobretudo as mulheres que são muito mais discriminadas. Daí ser ativista interseccional. As mulheres negras em Portugal são quadruplamente discriminadas: são discriminadas porque são mulheres e como todas as mulheres incluindo as brancas, são discriminadas porque são negras, são discriminadas porque estão na base da pirâmide social – os trabalhos como empregadas de limpeza, os serviços, etc – e são discriminadas por uma coisa que defini como estrangeirização porque independentemente de nascerem ou não em Portugal são imediatamente estrangerizadas pela questão rácica, porque é negra e se é negra não pode ser portuguesa. Esse rosto da pobreza no mundo é das mulheres, porque vivemos num mundo em que as desigualdades no acesso ao emprego, ao conhecimento, igualdades salariais são ainda gritantes. Também em África são menos qualificadas do que os homens e por isso estão na linha da frente dos pobres, quer os pobres, digamos, tradicionais, quer os novos pobres que são sobretudo mulheres. Por isso, a questão da igualdade é tão importante. É preciso estarmos muito atentas a essas falácias que nos levam para a quantidade de género e não para a igualdade.
Sendo Portugal uma democracia, no entanto disse que falta debate porque, sobretudo o poder político insiste na narrativa retrógrada e reacionária dos Descobrimentos, dando continuidade à Era dos Encobrimentos. Continua a pensar assim?
Sem dúvida. Acabei de escrever hoje [dia 2 de maio 2023] um artigo para o Novo Jornal com o titulo: ‘E se a CPLP se centrasse no racismo?’. Faço uma reflexão aproveitando o último discurso do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa na Assembleia da República em que diz que Portugal deve um pedido de desculpas – mas não pede desculpas contrariamente às interpretações que estão a ser feitas – e deve muito mais do que isso; deve assumir as suas responsabilidades por tudo de bom e de mau que fez na escravatura, na colonização, etc. É fácil perceber isso porque a própria historiografia de Portugal, a narrativa dos Descobrimentos, parte do princípio que Portugal chegou a África… aliás, havia um livro de Geografia do 6º ano – que denunciei no Conselho da Europa, já retirado com todos os protestos que os movimentos antirracistas fizeram -, em que dizia qualquer coisa semelhante ‘os portugueses quando chegaram à África e ao Brasil encontraram povos culturalmente muito atrasados’. Temos de lutar todos os dias contra estas narrativas, e temos também de lutar contra as tentativas de branqueamento da verdade quando se pegam em meias verdades – como fez o Presidente Marcelo naquele discurso – para tentar transmitir a ideia de que a colonização foi, como gostam de dizer, um encontro de culturas. Não, não foi! Foi uma violência brutal, um antro de atrocidades, de violação dos direitos humanos, massacres em muitos sítios. Aliás, a escravatura portuguesa em África durou até ao século XX, durou até ao 25 de Abril. Como disse Chico Buarque durante a cerimónia da entrega do Prémio Camões é preciso que o açoitado e o açoitador se unam para ultrapassar isso. Mas é preciso primeiro um reconhecimento e uma reparação.
Como é que vê o atual cenário internacional, nomeadamente quanto ao aparente distanciamento dos países africanos, do Médio Oriente e mesmo asiáticos e da América do Sul, do Ocidente, ou seja basicamente da Europa e dos Estados Unidos. Ainda são ressentimentos do colonialismo?
São em parte. E são em parte fruto das alianças. As independências desses países, as suas lutas, foram sobretudo apoiadas por países do Leste, da antiga União Soviética, Cuba e outros que estiveram na vanguarda, no caso da África sobretudo. Compreendo as razões que levam esses países à abstenção no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Não aceito a guerra na Ucrânia, de todo! Não sei se Putin mediu bem as consequências mas não tinha razões suficientes para desencadear o conflito que desencadeou. Agora, compreendo as razões porque são aliados históricos e quando há alianças históricas, é muito difícil para esses países condenarem a Rússia. Há países em África que têm todo o seu exército dependente de armamento, de botas, de botões para a farda dos militares, dependente da Rússia, é a herdeira da União Soviética. É verdade que a Rússia hoje não tem nada a ver com a União Soviética mas é a herdeira política daí essa solidariedade. Mas são poucos os países africanos que tenham votado a favor da Rússia, a maior parte absteve-se, contudo é uma pretensão perigosa. A guerra veio mostrar esse afastamento do Ocidente por causa da crise energética, por causa da crise alimentar que provocou. Quanto à China, tem atualmente, mais do que a Rússia, um papel em África e na América do Sul, em termos de desenvolvimento. A China hoje é a potência do desenvolvimento. Houve um adormecimento do Ocidente, não percebeu que se estava a fazer ali um gigante, em termos de desenvolvimento económico. Porque a China não tem uma aposta no armamento, na relação com os países ainda não desenvolvidos, tem uma aposta que assenta no desenvolvimento económico, no desenvolvimento material da sociedade e menos do lado das armas.
E os países africanos, do Médio Oriente, asiáticos e também da América do Sul ainda vêm os europeus como o colonizador?
Sim, porque a própria retórica do Ocidente vai nesse sentido. O próprio comportamento do Ocidente. Aliás, temos a França, hoje e sempre, como uma potência neocolonizadora que continua a explorar uma parte do continente africano. A região africana onde está grosso dos países que foram colonizados pela França, tem uma moeda, o franco CFA [Communauté Financière Africaine], cujas reservas têm de estar obrigatoriamente, através de um acordo que a França não aceita que seja denunciado, nos bancos franceses. Esses países estão obrigados, anualmente, a pagar meio bilião de euros à França. É impossível desenvolver os países dessa forma, continuando a sustentar a economia francesa.