Máximo Ferreira no Centro de Ciência Viva de Constância. Créditos: mediotejo.net

O astrónomo Máximo Ferreira nasceu em Montalvo, no concelho de Constância, há 76 anos. Antes de observar as estrelas trabalhou na Metalúrgica Duarte Ferreira, em Tramagal, mas os seus horizontes acabaram por levá-lo mar adentro.

Após terminar a quarta classe, e porque os professores concordavam ser bom aluno, confessa que gostava de ter prosseguido os estudos naquele momento mas devido a impossibilidades financeiras da família, iniciou-se em Tramagal, onde o pai trabalhava. Entrou para a MDF faltava-lhe um mês para completar 12 anos, como moço de recados, com a intenção de ir estudar de noite quando atingisse a idade que permitia escola pós laboral: 14 anos. Deslocava-se de bicicleta de Montalvo a Rio de Moinhos, deixando a bicicleta numa casa perto do rio, atravessando o Tejo de barco até à fábrica. Para frequentar a Escola Industrial e Comercial de Abrantes fazia 40 quilómetros diários a pedalar, mas acabou por não terminar o ensino ao optar por ser voluntário na Marinha Portuguesa.

Máximo Ferreira completou o ensino secundário depois no Liceu D. João de Castro em Lisboa, ao mesmo tempo que cumpria a missão de marinheiro. Embarcou então aos 17 anos para Lisboa, tinha um quarto na Cova da Piedade mas viveu em submarinos e classifica os quatro anos de estudo na Marinha como “duros”. Viajava para França e Inglaterra com os livros atrás, quando atracava em terras portuguesas ia a exame.

Casou para o Seixal onde, ainda hoje, tem casa, sendo o local que os filhos escolheram para viver. Em Constância foi presidente da Câmara Municipal, é o presidente da Associação Casa-Memória de Camões e diretor do Centro de Ciência Viva de Constância, que este domingo celebra 19 anos. Fomos conversar com Máximo Ferreira e perceber o que é isso de ser astrónomo.

Ser astrónomo. Portugal oferece condições para tal profissão?

Não. A resposta é simples. O que acontece, e aconteceu comigo, formamo-nos em Física, Matemática, e depois vamos fazendo algumas coisas. Durante algum tempo estive no Planetário, fui militar – entrei como voluntário – na Marinha, ligado ao ensino, aos submarinos e depois à parte da Astronomia no Planetário da Marinha, em Belém e mais tarde passei para a Faculdade de Ciências. Fiquei a fazer umas quantas coisas e também Astronomia, mas sou Físico. Atualmente há muitos laboratórios pelo mundo inteiro onde temos portugueses, alguns deles foram meus alunos, e isto dá-nos, a mim e a outros colegas, satisfação. Criámos isto a partir de 1992 que passou por incentivar físicos a fazer doutoramento em Astronomia, algo ligado à observação, com Física pelo meio, dos planetas e das estrelas mas ainda não era bem os astrofísicos. Hoje em dia os astrofísicos são aqueles que enchem os laboratórios pelo mundo inteiro. Temos em Portugal muitos e muito bons que são astrofísicos das atmosferas dos planetas, astrofísicos das geologia dos planetas – no sentido da constituição dos planetas que são sólidos, gasosos -, depois das estrelas, das galáxias e da estrutura do universo. Não é só em Portugal, cá todos nos queixamos – eu não, que já estou reformado – quem está na vida ativa queixa-se por não haver propriamente um emprego. São bolseiros, ou seja, estou numa instituição, candidato-me a um projeto, tenho dinheiro para ter dois ou três astrofísicos a quem pago cerca de dois mil euros como técnico superior. Durante quatro ou cinco anos são bolseiros e quando acaba a bolsa têm de andar à procura de outro sítio onde haja um projeto deste género. Alguns passam uma vida inteira como bolseiros. Portanto do ponto de vista do conforto e da tranquilidade na vida não é uma coisa muito atraente.

Então essa é a razão pela qual se dedicou mais à divulgação do que à investigação?

Claro! Mas também por outra razão: entrei na universidade só aos 28 anos [Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa] e fiquei a ensinar Física e a fazer cursos livres de Astronomia no departamento de Física e depois no Museu de Ciência da universidade e fui-me envolvendo em algumas coisas. Houve mudanças curriculares, introduzimos Astronomia na disciplina de Física porque achámos que era atraente para os alunos. Pensando num buraco negro, numa galáxia, na expansão do universo podíamos falar de massa, de gravidade e daqueles conceitos que muitos alunos não gostam muito. Na formação de professores demos apoio aos professores recém licenciados quer em Física quer em Química, nas escolas, levando-os a desenvolver projetos de final de estágio que tivessem a ver com isto. Entusiasmei-me e tem dado um bom resultado.

Portanto descobriu a paixão pela astronomia durante o seu percurso na Marinha…

Sim. Até lá, olhar para as estrelas não era um hábito. Mas lembro-me em pequeno, andava na terceira ou na quarta-classe, quando saía da escola, a minha mãe dizia-me para onde devia ir pastar as nossas duas cabras – se era na zona de mato ou na zona de tremocilho, por causa da qualidade do leite – e levava a sacola com os livros. Lembro-me de andar a fazer relógios de sol, com um prego espetado numa tábua ia acertando o relógio de sol fazendo lá uns riscos. Não sei porque o fiz… provavelmente li em algum lado, embora lesse muito com os meus 12 e 13 anos, mas não com 9 e 10 anos. Só comecei a olhar para as estrelas quando na Marinha fui colocado a dar aulas numa escola de Eletrotecnia – a minha área – e era preciso assumir a responsabilidade técnica do Planetário, em 1972. Não tinha quase nada eletrónico, era mais eletromecânica, engenhocas, uma máquina complexa que gerava os movimentos da Terra, e mostrava as estrelas e uma série de coisas. Fui achando piada àquilo, tanto que estava para continuar na área de eletrónica e mudei, fui estudar Física. Por isso, é que só entrei na universidade aos 28 anos e esta idade já começa a ser tarde para entrarmos na investigação. Além disso era casado, tinha filhos… andar de bolseiro de um país para o outro, não podia ser, nem era a minha maneira de ver as coisas na altura… hoje se calhar era diferente. Portanto, a minha entrada na Astronomia vem de trabalhar com uma máquina que simulava o céu. Tinha de saber como a máquina trabalhava e para isso tinha de saber como o céu funcionava e depois achei que era melhor fazer Física.

Se as estrelas não lhe despertavam especial interesse em criança, que interesses tinha? Ou tudo lhe interessava?

Acho que sim. Pelos menos os professores achavam que sim. Embora, naquele tempo, da primeira à quarta-classe só tínhamos um professor. Mas era tão interessado que fazia uma carrada de coisas: para além de ajudar o meu pai na horta – aí era voluntário à força ao fim de semana – fui sacristão, pertencia à Liga Eucarística dos Homens – até aos 15 anos depois comecei a olhar para a religião com outros olhos e afastei-me -, aprendi música, toquei na Banda de Rio de Moinhos – contudo nunca fui grande músico, tenho pouco ouvido para a música. Quando entrei na Marinha troquei o saxofone alto por um soprano, ainda hoje toco, quando me encontro com alguns colegas ainda brincamos. Em casa tenho dois saxofones, não há é muito tempo nem tranquilidade porque é preciso concentração para tocar com prazer. Lembro-me de algumas coisas interessantes na Escola Industrial, na disciplina de português, embora mais tarde tenha escolhido as ciências, as estrelas e os planetas.

Centro de Ciência Viva – Parque de Astronomia de Constância. Foto: DR

Então não perdeu a chegada à lua?

Não vi. Penso que estaria debaixo de água num submarino. Só passados alguns dias é que ouvi falar naquilo, eu e os camaradas que estavam dentro do submarino, porque lá não estávamos em contacto com o mundo exterior. Portanto, não acompanhei a chegada à Lua de perto mas fui percebendo as coisas e só mais tarde apreciei bem o valor científico. As razões políticas que levaram a colocar um homem na Lua também fui percebendo e não apreciei tanto. Mas do ponto de vista cientifico foi bom, não só pela coisa em si mas pelo que depois originou, o facto de os norte-americanos terem cedido à comunidade cientifica, no sentido do projeto ser continuado. No principio era uma competição; ver quem chega lá primeiro, mas depois a última missão tripulada leva um cientista, um geólogo, e não só as amostras que vieram como o interesse que já tinha despertado resultaram em tudo o que hoje se sabe dos planetas. Se não fosse assim era de outra maneira, mas começou ali. Hoje enviamos um robô que vai até Marte e faz as análises e envia sinais para cá e ficamos a saber se Marte tem óxido de ferro, isto ou aquilo, mas começou desta maneira incipiente: andar na Lua um homem, com um púcaro num pau, a apanhar um bocado para trazer para a Terra.

E tem esperança de ainda ver o Homem a pisar Marte?

Não, não tenho esperança. É pouco provável que veja. Do ponto de vista tecnológico era possível mas do ponto de vista fisiológico e psicológico é quase impossível que venha a acontecer nos próximos 40 ou 50 anos. Atualmente ainda nos preocupa a recuperação de um astronauta que passa 3 ou 4 meses no espaço, aqui perto da Terra, e isto é só a componente física. Do ponto de vista psicológico não é assim muito complicado porque está sempre em contacto, e há videochamadas, e os psicólogos cá na Terra vão vendo como as pessoas reagem lá em cima. É complicado do ponto de vista físico, quer a questão da pressão arterial, dos ossos, da pressão ocular, e podemos mesmo assim fazer testes, a pessoa treina-se e vamos vendo como vai reagindo do ponto de vista físico, psicológico, quer da relação com os outros, que é importante. Mas sabemos se houver uma coisa qualquer mandamos lá uma nave e ao fim de dois dias está cá em baixo. Ir daqui para Marte são 9 meses mais 9 meses para cá, admitindo que as pessoas fazem questão de ir e voltar – no futuro pode existir pessoas que não se importem de ir sem bilhete de volta –, mas não estamos a ver como é possível resolver estas dúvidas, isto é, como uma pessoa se comporta ao fim de 6 meses, 9 meses de isolamento, se vai sozinha é mau, se vai acompanhada também pode não ser melhor. É aí que reside a maior dificuldade do meu ponto de vista – e de muitos colegas -, porque mandar uma máquina já se faz. Do ponto de vista científico, é verdade que tem alguma importância, que tem a ver com as ciências da saúde, comportamento do corpo humano, agora para a Física, Matemática, materiais etc, não precisamos de ir a Marte com voos tripulados para saber como é Marte, para posteriormente lançar uma nave para outro sítio. Isso pode fazer-se por processos automáticos.

Mas pensando nas alterações climáticas – e a ficção já aborda o cenário -, parece haver um clima de desvalorização da máxima ‘Não Há Planeta B’, por parte dos mais ricos, talvez por estarem convencidos que o dinheiro permitirá a colonização de outros planetas, salvando assim a Humanidade (ou parte dela). Aliás, as viagens dos milionários ao espaço já começaram…

Que vão! A probabilidade de ir e voltar, de estar lá um dia e dizer que esteve lá e deixar uma bandeirinha, é uma coisa. Ir viver para lá em permanência a coisa complica-se ainda mais. São as questões das radiações que a atmosfera de lá não filtra, portanto ou a pessoa está sempre protegida por um escudo ou se sai não dura muito tempo. Depois do que é que se alimenta quer do ponto de vista sólidos quer de líquidos? Como respira ou seja, como arranja maneira de ter oxigénio na percentagem que precisamos? São muitas limitações, é mesmo ficção científica! No filme ‘Perdido em Marte’ o rapaz semeia batatas, é impossível! As batatas germinam mas depois não têm capacidade de se desenvolver e dar mais batatas. Anda sem máscara, mesmo dentro da tenda, quando se rasga não sobrevivia. Contudo, o filme tem piada porque tiveram alguns cuidados científicos e depois apresenta umas pequenas falhas para podermos estar aqui a criticar.

Centro de Ciência Viva de Constância. Foto: mediotejo.net

Voltando à sua vida de militar na Marinha, creio ter lido no Diário de Notícias que colaborou no 16 de março, no Golpe das Caldas, e depois no 25 de Abril. Então onde é que estava no 25 de Abril de 1974?

Estava a dar aulas em Vila Franca de Xira e no 16 de março também estava. Não percebia nada de armas mas, no 16 de março, meteram-me a comandar um grupo de homens com G3 a bloquear o trânsito em Vila Franca. Havia umas portagens e era aí que chateávamos as pessoas, a revistar os carros porque existia a ideia de poderia haver um movimento de pessoas armadas a deslocar-se para Lisboa. No 25 de Abril acompanhei dentro da unidade em Vila Franca, só mais tarde é que percebi – não estava envolvido no pré 25 de Abril – que convivia com alguns camaradas envolvidos na revolução. A única coisa que fiz foi de intervenção militar: havia a Escola Técnica da PIDE junto ao Jardim Zoológico – uma coisa que foi arrasada e alargaram a estrada de Benfica – e os fuzileiros foram lá primeiro tomar aquilo, com granadas, etc. Depois era preciso preservar aquele espaço não fosse a PIDE voltar ou houvesse por lá alguns buracos onde estivessem escondidos alguns elementos – este era o pensamento da época. E lá fui eu, onde estive durante um mês ou dois, em sistema rotativo, com um grupo de homens. Andávamos por cima dos telhados com a metralhadora. As pessoas eram todas muito generosas, deixavam dinheiro e cerveja e eu tinha de controlar a situação para não descambar: controlar as bebidas, o próprio dinheiro. Encarreguei alguns militares da contabilidade e perguntava-lhes: esse dinheiro dá para quantos frangos? E à noite ia comprar frangos, informando a unidade para não enviar jantar. Lembro-me de andar em cima dos telhados com uma cafeteira na mão a dar café às pessoas. Acabou por ser divertido. Na altura, pareceu-me não haver interesse da PIDE em voltar porque aquilo não tinha nada, a não ser uma biblioteca com uns livros que utilizavam com as técnicas da tortura e outros que resultaram de apreensões na casa das pessoas. A minha participação foi essa. Do ponto de vista militar hoje faz-me rir, não foi necessário andar aos tiros, felizmente, e se fosse era incapaz de cumprir a tal missão de controlar homens e comandar fosse o que fosse. Do ponto de vista político também não tinha bem consciência política da situação nem da organização. Fui percebendo e integrando-me, mas com alguma calma.

Ou seja, a sua consciência política chegou com a maturidade?

Sim. Não fui muito ativista, fui percebendo que a minha ideologia era de esquerda, mas só depois do 25 de Abril. O facto de me ter afastado da Igreja, de no Tramagal, teria 15 anos, nos colocarem a trabalhar num sítio afastado, eu e mais uns 12 rapazes, a que chamávamos a brincar ‘carreira de tiro’, onde acabávamos peças para os fogões e era tudo controlado, davam-nos 10 minutos para fazer isto e aquilo, no final do dia vinha o encarregado ver se tínhamos feito aquelas peças todas. Ou seja, sentia alguma revolta mas não percebia bem que essa era a razão de muitas revoltas que já tinham acontecido e outras que aconteceram daí para cá. Alguma revindicação já existia em mim e à medida que fui crescendo foi-se consolidando.

Viveu no Seixal e depois de reformado voltou para Constância. Como aconteceu essa mudança?

Ainda não estava reformado comecei a construir uma pequena casa, em Constância. Isto porque o Museu de Ciência da Universidade de Lisboa foi estabelecendo, não só pelo diretor mas da parte da Astronomia por mim, andar pelo país a incentivar a criação de clubes de Ciência, quer nas escolas quer em autarquias que tinham funcionários que gostavam daquilo, essencialmente animadores culturais que achavam a Astronomia interessante para poderem desempenhar as suas tarefas. E também a formação de professores recém licenciados que estavam a iniciar carreira. Ajudámos quer na área da Física quer na Astronomia como veículo para ligar a Física, a Matemática e a Química. Fiz isso em alguns locais e inclusive na escola de Constância. A Câmara Municipal entusiasmou-se com a ideia, criou o Observatório, estabelecemos um protocolo entre a Câmara, a escola e o Museu de Ciência da universidade e vinha cá quando se justificava. Fazíamos observações num terraço que está aqui por cima e a escola desenvolvia algumas atividades. Foi aí que comecei a construir uma pequena casa, tinha-me divorciado. Quando atingi 43 anos de serviço reformei-me, naquele tempo ainda era possível reformar-me aos 56 anos. Comecei a perceber que havia umas tendências no governo da época, principalmente da ministra das Finanças, para começar a esticar as datas da reforma e achava que podia aqui desenvolver algum bom trabalho. As coisas no Museu da universidade não estavam a correr muito bem, o diretor que tinha sido o ‘motor’ faleceu e achei que era altura de me vir embora. Aqui do alto do edifício vejo a minha casa que tem uma cúpula idêntica a esta e de lá vejo esta cúpula. Estou aqui em linha de vista de um lado ao outro e a 10 minutos do Centro de Ciência Viva de Constância.

Máximo Ferreira no Centro de Ciência Viva de Constância. Créditos: mediotejo.net

E assim se iniciou esta aventura, há quase duas décadas – este ano celebra 19 anos -, do Centro de Ciência Viva…

Na verdade tem 23 anos porque no ano 2000 foi inaugurado a sala onde estamos e a cúpula que está aqui por cima. Chamava-se Observatório Astronómico de Constância. E em 2004 é que passámos a ser Centro de Ciência Viva. Já existiam alguns Centros de Ciência Viva em Portugal, o ministro Mariano Gago, o impulsionador de tudo isto, achava que devíamos criar centros numa espécie de rede. Cada um tendo um tema específico, mas que podíamos ir complementando com outras atividades – existem em todos os centros atividades que são semelhantes e posso trocar experiências com o colega de Tavira, ou de Guimarães, ou de Coimbra ou de outro sítio qualquer. Tivemos uma boa ajuda quer do Ministério da Ciência e da Tecnologia, quer da Câmara Municipal de Constância que se interessou em arranjar o espaço e financiamentos, que a princípio não eram comunitários mas depois chegaram essencialmente da União Europeia.

Nasceu um sonho?

Não posso dizer sonho, porque acho que nunca sonhei com algo como o que está aqui. Isto foi acontecendo. Fomos trabalhando e tive sempre a preocupação de ter uma equipa com pessoas com formação pedagógica e que soubessem pegar nos temas, e acompanhar os visitantes e perceber o que lhes interessava e como falar com eles, quer o público em geral quer os estudantes. E aos poucos o Centro foi crescendo, também a procura cresceu, e depois a equipa foi-se entusiasmando e desejando ter mais e chegámos a este ponto. Agora temos de nos conter porque as coisas não estão fáceis no sentido de termos financiamento que nos permita ter uma equipa maior. Queremos ganhar força para aguentar isto como está e não está mal.

O objetivo inicial era então mostrar o céu?

Sim. Ter uns telescópios e as pessoas vinham cá espreitavam e diziam: ai que bonito! Depois quando havia observações e se não houvesse condições de observação, para as pessoas aliciadas a vir ver o céu, afastávamos as cadeiras e montávamos um planetário comprado com o dinheiro que nos deu o ministro da Ciência, Mariano Gago, na altura foram 5 mil contos. A ideia era humildemente esta. Posteriormente fomos percebendo que era giro fazer uns cursos de Astronomia, que, em vez de estar a pôr o insuflável e depois tirar, o bom era ter uma sala de planetário subterrâneo, que agora é uma câmara escura, um laboratório de holografia onde aplicamos alguns aspetos da Física dos currículos escolares, uma atividade que dura três horas e as pessoas ficam com um holograma, em três dimensões. Mais tarde achámos que era interessante ter mais uns moldes que explicassem melhor esta coisa dos planetas andarem à volta do Sol e da Terra andar à volta do Sol e da Lua andar à volta da Terra e fomos sonhando. Este Centro não cresceu com um projeto global. O maior investimento que fizemos, de uma vez, foi cerca de 650 mil euros, em 2011, que deu para uma outra sala de planetário, deixar o subterrâneo, e comprar um planetário digital – que é uma maravilha de tecnologia -, colocar mais cúpulas, mais telescópios. O maior telescópio que temos, e que é o maior telescópio público a funcionar em Portugal, foi-nos oferecido pela Fundação EDP, uma espécie de troca de serviços porque a Fundação quis fazer uma exposição no Museu da Eletricidade e nós coordenámos o programa científico, fizemos umas palestras e mais umas coisas. A contrapartida foi pedir os 56 mil euros para o telescópio. Ou seja, com financiamentos, com dádivas, muito trabalho e muito entusiasmo da equipa.

Foto: mediotejo.net

Qual a média de visitantes anuais do Centro de Ciência Viva de Constância?

Estamos a aproximar-nos dos 400 mil visitantes. A média de visitantes por ano, juntando também os anos da pandemia – num período tivemos fechados e noutro as escolas praticamente não vinham – está em 26 mil. Este ano vai subir, os meses homólogos já estão acima em número de visitantes, e começámos a fazer outra coisa. Embora gostássemos de ser uma instituição de apoio social não podemos fazer isso porque senão suicidamo-nos, temos de arranjar algum dinheiro, temos custos, cinco pessoas para pagar salários – eu não ganho nada como diretor -, a Câmara coloca aqui um funcionário, o Ministério da Educação coloca uma pessoa cá, a Câmara dá algum apoio anual. A Ciência Viva também dava, deu durante 17 anos mas há dois anos cortou, e portanto, agora temos de fazer, na bilheteira e noutras coisas, 60% da despesa do orçamento anual. Se ocorre uma crise qualquer como foi a crise de 2011, da troika, começamos a ir às escolas. Mesmo agora nota-se que há escolas que fazem marcações e depois desmarcam, e não é por causa dos dois euros que cobramos a um miúdo, é por causa dos transportes. Sucede que há muitos alunos que desistem e a escola também, porque depois o custo suportado por aqueles que querem vir é elevado. Como temos um segundo planetário, o insuflável, vamos nós às escolas, que sai mais barato. Este ano juntámos as escolas a virem cá em número crescente e outras escolas a pedir para irmos lá. O que fazemos agora é ‘esfarrapar-nos’ para não negar atividades a ninguém e penso que, este ano, vamos atingir as 28 mil visitas. Claro que não gosto muito de avaliar o valor das coisas pelo número de visitantes, senão promovemos um festival de música pimba e metemos aqui 50 mil pessoas, mas neste caso é a única maneira que temos de avaliar. Se temos muitas escolas a pedir-nos para irmos lá, é porque acham que o trabalho que fazemos é importante no apoio ao ensino. Se há uma Câmara Municipal que quer fazer um evento qualquer com uma conferência ou uma palestra e nos convida é porque haverá algum valor não só na transmissão de conhecimento mas da maneira como fazemos. E temos de avaliar por isso, portanto continuamos a avaliar pelo número. Quanto mais pessoas nos procuram maior é o sinal que não estamos a trabalhar mal.

Há pouco deu conta de haver algumas dificuldades financeiras mas, no que toca ao interesse do público, nestes 19 anos qual é o balanço?

É positivo. Não temos dúvidas. Temos o exemplo de uma menina no concelho que quer fazer direito internacional – está numa escola em Abrantes – e achou tanta piada a isto do espaço que se inscreveu para um concurso para ter lugar num avião que faz voo parabólico – integra o treino dos astronautas – e foi selecionada. Correu-lhe tão bem que foi nomeada uma espécie de divulgadora do projeto, e é uma pessoa da área de Humanidades e que fala da importância da Ciência para as pessoas, da importância no âmbito do direito internacional ou seja, a Ciência é para servir para a paz e para o desenvolvimento e não para as outras coisas. A questão do desenvolvimento não é quem está sensibilizado do ponto de vista social mas bem encostado a uma área científica. Portanto, quando sabemos estas coisas dá-nos grande alento.

Centro Ciência Viva Constância. Foto: mediotejo.net

Tal como já referiu, o professor Mariano Gago, ministro na altura, teve um papel importante?

Sim. Já agora deixe-me dizer que o José Mariano antes de ser ministro estava a fazer doutoramento em Genève e escreveu um livro intitulado ‘Homens e Ofícios’ uma edição coordenada pela Universidade Lusófona, com base nesta experiência: tirava um ou dois dias por semana para se encontrar com trabalhadores portugueses que andavam nas obras e conversava com eles, falar da vida deles cá e na Suíça, e portanto tratou com agricultores, pedreiros, etc, ensinou-lhes francês – foi padrinho do filho de um desses pedreiros de Martinchel [Abrantes] – e escreveu esse livro que era uma espécie dos escritos de Bento de Jesus Caraça ou do Rómulo de Carvalho, que escreveram livros para o povo. Mariano era um bocadinho mais exigente, enquanto nenhum dos dois punha as pessoas a fazer contas, ele punha. Quando vem para Portugal começa, mesmo antes de ser ministro, a participar e a criar eventos culturais onde se falava de Ciência. Lembro-me da Caixa Geral de Depósitos fazer algumas conferências onde também participava. Quando toma decisões enquanto ministro, aquilo já estava há muito tempo na cabeça: a cultura cientifica das pessoas era indispensável para o exercício da cidadania, da democracia, e portanto ninguém pode defender uma causa ou atacá-la em consciência se não souber o que é. O estado da Ciência em Portugal – apesar de agora estar um bocado a degradar-se – dependeu daquilo que fez, que organizou, enquanto ministro. Não foi por acaso que da primeira vez que esteve como ministro não quis ser ministro do Ensino Superior – conhecia o Ensino Superior e achava ser mais complicado mexer e não tinha o efeito que queria: fazer com que as pessoas tivessem noção da importância da Ciência. Só entrou no Ensino Superior na segunda vez e mesmo assim acho que não foi de muito boa vontade. Mariano Gago queria a Ciência e Tecnologia, quer ao nível da investigação quer ao nível da aplicação nas empresas quer ao nível do público em geral e a aposta nos Centros de Ciência Viva é a continuação desta ideia.

Então qual é a história que se pode contar a partir deste Centro? Do Universo, das galáxias, do Sistema Solar?

Temos o Parque de Astronomia, como se fosse uma viagem vista de fora. Uma representação da galáxia – quando olhamos para o céu vemos muitas estrelas, todas elas fazem parte de uma ‘cidade’ que têm para aí uns 140 mil milhões de estrelas e o que vemos é umas para um lado, outras para outro porque estamos metidos nisto – mas posso fotografar outras galáxias, fora da nossa e medir distâncias, ir fazendo um desenho da nossa galáxia com a disposição das estrelas que as observações me permitem fazer e perceber que é parecida com outras. E se alguém perguntar se afinal não serão 160 mil milhões também podemos conversar sobre esse assunto e a maneira de determinar isso, o cálculo e a falta de rigor. Questionamos se destas estrelas todas terão planetas e posso detetar logo pela cara da pessoa se acha que é o único planeta no universo que tem vida. Se percebemos que há aqui uma questão religiosa temos o cuidado de não afetar a questão religiosa. Mas os cientistas acham que pelo menos 20 mil milhões de estrelas da nossa galáxia têm planetas à volta e achamos que há pelo menos um ou dois que é semelhante à Terra, portanto se calhar não estamos sós no universo. Depois marcamos uma estrela, que é o Sol, e dizemos que esta estrela tem planetas à volta e um deles têm vida de certeza. Passamos para representações do sistema solar, com os planetas a girar à volta do Sol, a questão dos movimentos, a velocidade com que andam, falando consoante o nível de conhecimento das pessoas, do nível etário ou do entusiasmo que têm para estar ali. Depois os tamanhos – o Sol uma estrela média mas muitíssimo maior que todos os planetas, a seguir a distancia entre eles e passamos para uma representação do Sol, da Terra e da Lua. Para nós os mais importantes e aqueles que produzem os fenómenos mais evidentes, uma espécie de um carrossel que gira devagarinho. Há outro carrossel em que as pessoas sentadas na cadeira da Terra, veem o outro carrossel a girar e veem como as quatro luas de Júpiter vão mudando de posição, o mesmo com Saturno. Temos um relógio de sol que foi calculado para a nossa latitude, e só dá horas se tiver sol, o ponteiro é a sombra da pessoa, colocando-se num certo sítio com a letra do mês, para verem a sombra maior ou mais curta, provocada pela inclinação do eixo da Terra. Uma outra peça interessantíssima, uma esfera armilar, que estabelece uma certa relação com o que temos na Terra – linha do equador, os trópicos, o eixo da Terra – , uma relação entre aquilo que utilizamos na geografia – dá as coordenadas geográficas – e o que utilizamos no céu para as coordenadas das estrelas, que só têm os nomes diferentes mas o processo é idêntico, de medir a latitude e longitude de uma estrela. E temos uma Terra, um globo com um metro e 80, que as pessoas podem pôr a girar, tem as linhas do equador e marcados os continentes e os oceanos.

Portanto, esse é o Parque de Astronomia…

Algumas destas coisas são repetidas no Planetário, um local onde as pessoas se sentam, a sala tem 5 metros e meio de diâmetro e o feitio de uma meia bola para criar a sensação de estar à noite a olhar para o céu. A máquina na parte central projeta os pontinhos luminosos, as estrelas, e é um Planetário digital. Tem a possibilidade de criarmos motivos que quebram a monotonia de uma conversa, como a imagem de uma Lua gigante. Podemos falar da queda dos astroides no passado na Lua como nos outros planetas do Sistema Solar, da ausência de atmosfera que não travou a queda mas também não apagou as crateras, falar da razão de um lado haver crateras maiores. Coisas sobre o Sol, estrelas cadentes, auroras boreais, as galáxias, um pormenor que funciona durante dois minutos que temos a sensação de estarmos no espaço a vermos milhões de galáxias a andarem para um lado e para outro, uma galáxia a chocar com outra, portanto o Planetário é uma sala espetacular.

Estas são as atividades ligadas à Astronomia, mas proporcionam atividades ligada à observação, com os telescópios à noite?

Sim. A observação do céu real que começamos às 20h30 ou 21h00, dependendo se estamos no inverno ou no verão, e o céu é aquele durante as duas horas que estamos aqui. É diferente se a pessoa vem em março, se vem em junho, se vem em setembro, é sempre diferente do ponto de vista das estrelas e das galáxias que estão muito longe. A Lua e os planetas também vão mudando sempre e nunca é igual de um ano para o outro, há sempre novidades, se as pessoas se habituarem a esta ideia têm sempre razões para vir cá. Temos ainda o avião utilizado e oferecido pela Força Aérea onde falamos das questões do voo, dos princípios da Física de como levanta voo e como voa. As pessoas podem entrar no avião e mexer nos comandos para simular um voo e acabamos com explicação com os efeitos fisiológicos do voo, das pessoas que viajam daqui para Paris ou para Hong Kong, de um militar que voa num avião à velocidade do som em que a coisa é mais violenta e de um astronauta que vai para o espaço em que é muitíssimo mais violento. Há referências a isto, imagens fixas e outras em vídeo, referências ao treino que são sujeitos e aos cuidados que têm de ter quando regressam de voos com alguma duração no espaço. Existe um giroscópio humano que é uma réplica dos equipamentos em que os astronautas fazem um certo tipo de treino, no qual as pessoas se podem sentar. Temos ainda um Observatório Solar, fazemos experiências, dá para ver as manchas do Sol, que o Sol tem umas erupções à volta e conseguimos visualizar e fazer a decomposição da luz do Sol como se fosse um arco-íris, aparecem umas riscas que são uma espécie de impressões digitais dos elementos químicos que estão no Sol. Não é um equipamento que permita fazer investigação mas permite mostrar como se estuda a composição de uma estrela. Para visitar o Observatório Solar o visitante tem de indicar previamente que quer essa atividade. As atividades regulares no Centro envolvem a sessão de Planetário, avião e Parque de Astronomia.

Mas existe ainda outra que é desenvolvida à volta de um lago…

O lago tem alguns elementos que conseguimos recuperar. Eram em tempos utilizados na agricultura, especialmente na irrigação de hortas e pequenas parcelas de terreno, como as noras, picotas, bombas manuais de tirar água, com as quais, por um lado, distraímos as pessoas, e por outro, explicamos que há ali uma questão Física que facilitava a vida, dá para também falarmos da energia potencial da água, energia cinética, etc. Temos um contentor com algumas imagens, chamamos-lhe ‘Contentor de Memórias’, algumas tiradas do livro de Mariano Gago ‘Homens e Ofícios’, os desenhos que utilizava para explicar aos pedreiros e serventes na Suíça, a Física e a Matemática que tinham aplicado quando regavam as hortas, em Portugal, e disponibilizamos alguns vídeos.

Os Centros de Ciência que abordam a Astronomia são muito visitados, apesar disso sente que os portugueses sabem realmente o que é a Astronomia?

Não tanto como gostaríamos. Lembro-me quando inaugurámos o grande telescópio, o Presidente da República quando chegou cá chamou-me astrólogo e depois alguém lhe deve ter dito alguma coisa que daí a um bocado deu uma volta e já me tratou por astrofísico. Não tenho pretensões que as pessoas deixem de falar de astrologia e quem se sente bem com isso, e acha que o número de asneiras e coisas boas que faz por dia não tem nada a ver consigo mas com o signo, faz o que entender! Agora fico muito mais contente quando as pessoas usam o termo astrologia e astronomia no momento certo. Principalmente aqui na nossa região é uma das nossas preocupações. Digamos que é uma arma de arremesso que levo para todos os locais onde se fala na divulgação científica ignorando que existem zonas privilegiadas como Lisboa, Porto Coimbra, e depois existe o Interior, onde as coisas não são iguais e portanto não podem ser tratadas de maneira igual. Estamos num meio em que devíamos fazer mais atividades dirigidas à população. Ou seja, ouvimos sempre dizer que o luar dá quebranto às roupas dos bebés e outras coisas ingénuas como esta e os alunos que andam no secundário, por exemplo, se não lhes falar nisso na escola é uma coisa que está lá contada pela mãe ou pela avó ou pelo pai. Se vai para a universidade para ser professor e não desmontou esta ideia, ele não vai falar, mas se alguém lhe falar daquilo, como não desmontou a ideia do tempo da avó… é aí que devíamos atuar. Fazer com que as pessoas percebessem que no tempo da avó se dizia isso, e podemos até tentar interpretar a razão, mas ter a noção que o luar não pode fazer nada disso. É certo que o luar pode clarear a roupa devido à humidade que se cria de noite mais a luz do Sol – porque o luar é a luz do Sol. Podemos ter noção que não era à toa que as pessoas diziam algumas coisas, mas é preciso falar e questionar sobre isso, mas só falando em ambientes de Ciência, porque quando queremos desmontar isto na cabeça das pessoas, têm de ter alguma confiança no nosso conhecimento científico. Portanto, ainda há muito por fazer.

Centro Ciência Viva Constância. Máximo Ferreira.

De qualquer forma, quando há possibilidade de espreitar o espaço através de um telescópio, ver um qualquer fenómeno como um eclipse, as atividades aqui no Centro, estão sempre com lotação esgotada e há lista de espera…

É verdade, as pessoas vêm. Não podemos dizer que gostávamos que viessem mais pessoas, gostávamos é que viessem mais vezes. Porque há ocasiões em que não podemos ter mais pessoas. Temos quatro ou cinco telescópios que podem funcionar para ver determinados fenómenos – por exemplo o eclipse do Sol, acontece duas vezes por ano, mas raramente acontece no mesmo sítio – e temos de criar condições para o maior número possível. Reforçamos a equipa nesse dia e estamos todos aqui, cada um com o seu telescópio, Acontece que os telescópios veem a mesma coisa ou um telescópio vê uma coisa e outro telescópio outra – pomos um filtro por exemplo –, fazemos o que é possível, mas há um número máximo que não podemos ultrapassar senão saímos frustrados, nós e as pessoas que vêm cá. Temos de abrir inscrições e de facto temos muitas vezes lista de espera. Em certos fenómenos, através das redes sociais e com alguns jornais e rádios da região, tentamos falar às pessoas de alguns aspetos que podem ver à vista desarmada, sem telescópio. Muitas vezes dou o meu número de telefone e vou para casa e às duas da manhã ligam-me para conversar, nesta tentativa de as pessoas terem o maior contacto possível com a natureza e vão percebendo as coisas que estão lá porque é tudo simples. Uma das atividades no domingo é falar de raios cósmicos, vão fazer isto de uma maneira muito simples mas as pessoas vão visualizar raios cósmicos e perceber que há umas coisas que nos estão a atravessar permanentemente, não interagem com matéria portanto não nos fazem mal, mas estão aqui. É uma curiosidade. E queremos que não tenham medo.

Mas depreendo das suas palavras que a literacia científica da sociedade já vai fazendo o seu caminho?

Sim. Achamos que é importante gostaríamos que a literacia científica estivesse mais avançada e continuaremos a ter sempre pessoas a acreditar que a Terra é plana. Por isso convidamos a virem até ao Centro de Ciência Viva, conversamos com elas, apesar de não ser fácil de tirar uma ideia da cabeça, mas o que fazemos é arranjar uma estratégia para que, pelo menos, fiquem com alguma dúvida naquilo em que acreditam. Porque das duas uma: ou muda de opinião – não faz mal nenhum mudar de opinião – ou então fica sempre a achar que acredita numa coisa mas não está muito convencida. Isto pode reduzir muito os fanatismos. Embora reconheça que quer nas religiões quer nas convicções metafísicas – como a astrologia – não temos o direito de dizer à pessoa que aquilo em que acredita não é verdade. Mas temos a obrigação de ir criando alguns ambientes em que vá tendo vontade de se questionar se aquilo que pensa se aproxima da verdade ou não.

Portanto como foi sacristão deduzo que acreditava em Deus. E presentemente?

Acreditava. Agora não. Houve um período em que olhava para as desgraças, misérias, para as crianças e questionava um pouco como Augusto Gil: ‘Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor?!’ E a culpa, o pecado. Depois fui-me lembrando do padre Pinheiro e de como conversávamos sobre o temor a Deus e eu tinha medo. Lembro-me que ia e vinha de bicicleta para Abrantes, se na estrada passasse por cima de mim um pássaro branco achava logo que ou era uma alma do outro mundo ou era Deus a dizer que tinha olhado para uma rapariga qualquer. Mas com esse padre foi a primeira vez que vi slides numa maquineta que projetava as imagens de maus comportados, espetados nas forquilhas do diabo, com uns cornos e um rabo e a metê-los para dentro de um forno em chamas. Quando aos 17 anos me fui apercebendo destas coisas, houve um período em que estive próximo do ateu. Hoje sou agnóstico, a religião não me afeta nada e não me importa nada que as pessoas vão à missa, importa-me é que não tenham nenhuma noção de Ciência.

E é pela Ciência que acredita que não estamos sozinhos no Universo?

Claro! Embora não possa dizer com certeza que sim. Mas tudo indica que não podem estar muito erradas as nossas ideias sobre o aparecimento de vida e evolução de vida, e que se for assim o ambiente que existiu na Terra também existiu noutros sítios – em Marte existiu, mas as condições desapareceram e nós achamos que sabemos porque é que desapareceram – mas que à volta de outras estrelas existiram planetas idênticos à Terra onde a vida podem ter acontecido. Não dizemos que aconteceu de certeza porque ainda não pudemos ver, mas consideramos isso muito mais provável do que algumas coisas que nos diziam na catequese.

O avião no Centro de Ciência Viva de Constância. Foto: mediotejo.net

Defende portanto que isto de compreender o Universo é uma forma de favorecer a Humanidade?

Claro! Favorecer em diversos aspetos. Achamos que ninguém se pode sentir bem se viver num ambiente que não conhece e não é difícil conhecer o Universo. Há alguns fenómenos que podem ocorrer que são esporádicos, mas no geral não é complexo.

Não é complexo?

Não. Conta-se a história de um imperador austríaco que visita um observatório e pergunta: Então senhor astrónomo o que há de novo no Universo? E o astrónomo diz: E vossa excelência já sabe o que há de velho? A beleza do céu… quando olho para uma constelação e digo que está lá um leão, olho para lá e não vejo leão nenhum, mas se tentarmos colocar lá um leão e tentarmos perceber quando foi e a razão, qual a zona da Terra, que cultura levou a isto, que práticas… o céu serviu como ponto de partida para uma viagem pela história da Humanidade que só pode enriquecer as pessoas. Tudo se pode relacionar – quer a Filosofia, a História, a Matemática, a Física, a Química, a Psicologia – com a Astronomia. Hoje em dia não há área da Ciência que não tenha alguma relação com a Astronomia, com o espaço.

Até a Sétima Arte. O Oscar de melhor filme, este ano, foi atribuído a ‘Tudo em Todo Lado ao Mesmo Tempo’, um filme que recorre à ideia de multiverso e metaverso…

O multiverso é muito teórico e existem poucos astrofísicos que se sentem à vontade nisso. Como hipótese achamos possível. Falo do Universo – o espaço e o conteúdo – que está a aumentar. Se está a aumentar o que está ao lado do Universo? Dá-me jeito arranjar outro ou vários. Mas isto não resolve o problema. Têm de desenvolver processos matemáticos que suportem esta ideia de 10 universos, 12 universos, 14 universos, portanto os tais multiversos. Os físicos mais terra-a-terra preferem resolver o problema deste universo, tentar perceber primeiro este. Porque há-de haver qualquer coisa no futuro, que não pode ser próximo, em que vamos ser capazes de perceber que a maneira como pensávamos isto estava um bocado deformada porque não víamos esta e aquela hipótese… e nem é a questão da relatividade. Será algo mais profundo.

Mas atualmente quais são as perguntas existenciais relevantes?

A comunidade científica não se preocupa muito com isso. Há coisas que explico quase rigorosamente, outras que explico mais ou menos, há coisas que pouco explico e há outras das quais só tenho uma ideia. Habituamo-nos a viver com a ignorância porque não posso carregar num botão e a seguir saber a resposta. Tem de se avançar, mas se calhar até com a mudança da nossa lógica. Em primeiro lugar temos de acreditar que a Ciência há-de ser capaz de explicar tudo, mas não vamos pensar que a Ciência é um deus senão estamos a fazer mal à Ciência e a nós próprios, ao deslocar-nos de crenças metafísicas para outra coisa equivalente. Como exemplo a pandemia e a questão das vacinas. Houve pessoas que se marimbaram em ter ou não ter a vacina, em ser ou não contagiadas e fizeram festas. Algumas delas pensaram que: se o vírus for complicado os cientistas inventam a vacina e se servir para os outros também serve para mim. Ou seja, fizeram asneiras na perspetiva de que a Ciência resolvesse. Não pode ser assim, a Ciência não sabe tudo! Ou seja, não se pode fazer da Ciência nem um deus nem um vilão. Isto pode transmitir um sentimento de humildade e de tranquilidade: sabemos o que sabemos e depois há coisas que não sabemos.

Lago. Foto: mediotejo.net

Domingo assinala-se o aniversário, sendo um dia com muitas atividades. Como vai ser o programa?

Temos um patrocínio da empresa florestal que tem eucaliptos à volta do Centro, a Altri Florestal, que contratou uma equipa de biólogos e que estudou o ambiente. Fez um levantamento, em três ocasiões do ano, principalmente de insetos e das plantas, flores etc que os alimentam. Criámos um percurso na floresta onde andaram a fazer essa recolha, criaram oito painéis que já estão colocados e que vamos inaugurar no próximo domingo, às 10h00. São uns biospots – pontos de biologia – onde podemos ver que borboletas, gafanhotos etc existem ali de que se alimentam, com pequenos textos e imagens magníficas. Em cerca de dois quilómetros, os visitantes são acompanhados pelos investigadores, que são comunicadores extraordinários e vão explicar o que fizeram. Depois as pessoas regressam ao Centro onde podem comer uma refeição ligeira – ou ir almoçar a Constância. Às 14h00 começamos com atividades extraordinárias, a primeira é sobre os raios cósmicos que já referi, fazer a observação do Sol no Observatório Solar, no qual as pessoas podem ver quer as erupções, quer as manchas do Sol, quer a análise da luz para verem as tais impressões digitais do hidrogénio, do cálcio, do ferro, da atmosfera do Sol. E paralelamente começam as visitas habituais, as visitas guiadas por professores do Centro no Parque de Astronomia, no Planetário e no avião. A Associação de Pais do Agrupamento de Escolas de Constância e a Banda Filarmónica Juvenil, de Montalvo, organizaram um concerto solidário para a associação Ajuda de Berço, e terá um concerto às 15h00, no anfiteatro, em simultâneo com as atividades do Centro. Ficámos muito contentes por o evento ser feito aqui, não só evento mas o objetivo do evento, numa data em que é dia 19 e nós fazemos 19 anos. É uma dia de promessa para fazermos mais 19 anos.

O que ainda se pode esperar do Centro de Ciência Viva de Constância? Há projetos para o futuro?

Ainda existe muito trabalho para fazer. Com os equipamentos que temos, algumas modernizações, atualizações, gostávamos de criar um ambiente que cativasse mais as pessoas a virem cá. O facto de estar a 2,5 km da zona urbana, da vila, significa que quem vem ao Centro queira mesmo vir, e reconheço que, num ambiente em que a maior parte das pessoas não se preocupa muito com estes assuntos, temos de arranjar aliciantes para virem até cá, à volta de um outro evento. De vez em quando fazemos aqui um concerto… há o rancho folclórico etnográfico, gostava de fazer alguma coisa à volta disso. E a Quinta Dona Maria, em Montalvo, como espaço de museu e inovação sendo uma extensão do Centro, já metida no meio urbano onde é mais fácil. Aí não será Astronomia mas a educação para o património. Seguimos as coisas da UNESCO, temos ligação com uma universidade que faz museologia social, e continuar a fazer algumas coisas lá. Levamos o telescópio, para pôr as pessoas a conviver com a Astronomia e a desfazer aquela ideia de que é muito complexo. Não é!

Com tanta estrela, calculo que observa o céu todas as noites?

Não. Algumas noites tenho tanto trabalho burocrático para fazer que não… contudo, consigo saber quando passa a Estação Espacial Internacional, em certo sítio do céu, na direção desta constelação ou da outra, uns satélites que vão rodando e projetam uma espécie de flash, e tenho sempre meia dúzia de pessoas com quem partilhar estas informações. Mas quando faço este tipo de observação é mais para incentivar os outros do que propriamente para mim, porque sei o que lá está.

Paula Mourato

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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