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*Com José Gaio e Agência Lusa

Foi a 31 de maio de 2010 que a Assembleia da República aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, por proposta da Juventude Socialista, após um debate fraturante entre os diversos partidos políticos, mas que viria a reunir o consenso necessário para retirar do Código Civil a expressão “de sexo diferente”, na definição de casamento. Portugal tornou-se assim um dos 10 primeiros países do mundo a legalizar a união entre casais homossexuais. Dados do INE revelam que, neste período, no Médio Tejo foram celebrados 53 casamentos entre pessoas do sexo masculino e 24 do sexo feminino. Quanto a divórcios gay, nos últimos anos houve apenas registo de dois casos em Torres Novas, em 2016 e em 2014, ambos masculinos.

Pedro Nuno Santos, ex-secretário-geral da Juventude Socialista, considerou na ocasião que se tratou de um dia histórico e reclamou para a JS a luta por esta lei, mesmo a nível interno no partido. “Daqui a 100 anos estaremos a comemorar o dia do casamento para todos”, disse.

Já o porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, Manuel Morujão, considerou que a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo foi uma precipitação e que a ausência de um referendo sobre a matéria abriu uma “ferida democrática”.

O Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, chegou a pedir ao Tribunal Constitucional (TC) a fiscalização preventiva das normas de quatro artigos, mas o TC daria “luz verde” ao diploma, considerando constitucionais as normas enviadas por Belém.

O Tribunal considerou que a “extensão do casamento a pessoas do mesmo sexo” não colide com o reconhecimento e proteção da família como “elemento fundamental da sociedade”, sublinhando que o casamento é “conceito aberto”, que admite diversas conceções políticas.

Em maio do mesmo ano, o Papa visitava Portugal e a imprensa europeia dava conta das declarações de Bento XVI em Fátima sobre a lei recentemente aprovada, ainda a aguardar publicação.

Os britânicos Times e Daily Telegraph, que enviaram jornalistas para acompanhar a visita, salientaram que Bento XVI considerou o casamento homossexual “subtil e perigoso” perante uma “enorme multidão”, em Fátima.

Poucos dias depois, o Presidente da República anunciou a sua decisão. Numa declaração, em Belém, informou os portugueses de que vetar o diploma seria “arrastar inutilmente” uma discussão que desviava os políticos de problemas graves.

De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística divulgados no ano passado, entre 2013 e 2018 contaram-se 2.515 casamentos de pessoas do mesmo sexo, com maior predominância entre homens (1.484).

A ILGA Portugal faz uma avaliação positiva dos 10 anos da lei que permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, considerando que há ainda “pequenas grandes batalhas” para travar, mas que as lutas histórias foram ultrapassadas.

“A lei do casamento foi o primeiro grande marco legislativo em termos de igualdade”, disse à agência Lusa a diretora executiva da ILGA Portugal, Marta Ramos, para quem a legislação publicada em 31 de maio de 2010 permitiu “muita da mudança de discurso e de reconhecimento de direitos” que hoje se verifica.

Em entrevista à agência Lusa, Marta Ramos lembrou que muitos países ainda não têm o casamento consagrado e muitos outros ficaram-se pela união de facto, enquanto em Portugal foi mais difícil de aceitar a parentalidade, que viria apenas a ser reconhecida mais tarde como um direito dos casais do mesmo sexo.

“O reconhecimento do casamento é profundamente positivo”, declarou, sublinhando que a questão da gestação de substituição continua por regular.

“Vai sempre ser preciso ir afinando de acordo com essa evolução. Os direitos humanos nunca podem ser dados como adquiridos”, afirmou.

Para Marta Ramos, o passo dado em 2010 permitiu “haver linguagem, haver um discurso para falar destas questões em Portugal”. Frisou que se trata de “falar de direitos humanos”, de igualdade. “Mas há sempre uma franja radical, inclusive no meio político”, observou.

“nas pessoas mais velhas ainda está muito presente o olhar malicioso na rua, o comentário, a homofobia”

A ILGA continua a ser procurada pelos casais que pensam em formalizar a união, antes de se dirigirem aos serviços, para saberem o que devem fazer: “Primeiro perguntam-nos a nós o que fazer. O que têm de fazer para casar, onde devem dirigir-se, como é que devem fazer com a entidade empregadora, se têm de comunicar”, contou a responsável pela organização de Intervenção Lésbica, Bissexual, Trans e Intersexo.

“Cada vez mais permite que as gerações mais jovens consigam fazer essa transição, mas nas pessoas mais velhas ainda está muito presente o olhar malicioso na rua, o comentário, a homofobia, é disso que estamos a falar”, relatou Marta Ramos ao comentar as alterações que a lei veio introduzir em termos sociais.

Um inquérito europeu divulgado este mês revelou que as pessoas ainda não se sentem à vontade para andar de mão dada na rua, recordou.

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Amnistia diz que ainda há um longo caminho a percorrer na igualdade das pessoas LGBTI

A Amnistia Internacional faz um balanço “bastante positivo” dos 10 anos da lei que permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas defende que culturalmente há ainda um longo caminho a percorrer para mudar atitudes de discriminação.

“Esta lei foi um passo importantíssimo para eliminar uma grave forma de discriminação que existia na sociedade portuguesa e assim torná-la mais respeitadora dos direitos humanos”, disse à agência Lusa a diretora de Investigação e Advocacia da Amnistia Internacional Portugal, Maria Lapa, referindo que o número destes casamentos tem vinco a aumentar de ano para ano.

Neste período, sublinhou, houve também outras mudanças legislativas importantes para o avanço dos direitos LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais) em Portugal, como o direito à autodeterminação da identidade de género e o direito à adoção por casais do mesmo sexo.

A responsável da Amnistia Internacional (AI) alertou, no entanto, que apesar de se terem registado melhorias nos últimos anos, as pessoas LGBTI “continuam a ser vítimas de discriminação e até de ataques, muitas vezes violentos”.

Em declarações à Lusa a propósito dos 10 anos da lei, Maria Lapa defendeu que, em Portugal, “existe discurso de ódio contra esta população, e medidas governamentais para avançar em matéria de igualdade são por vezes mal recebidas por partes da sociedade e classificadas como ‘ideologia de género'”.

Portugal foi um dos 10 primeiros países do mundo a legalizar o casamento de pessoas do mesmo sexo e está entre os melhores casos da Europa a nível de legislação que protege os direitos LGBTI

A AI preconiza o aumento das medidas de combate à discriminação e à exclusão social de pessoas LGBTI, com particular foco na mudança de atitudes e comportamentos.

“Às vítimas, deve ser prestado apoio e encaminhada a informação relevante para que defendam os seus direitos, encorajando que outras pessoas na mesma situação reportem casos de tratamentos discriminatórios”, sustentou a dirigente.

A organização de defesa dos direitos humanos sugere um reforço da formação dos funcionários do Estado para facilitar o processo de transições na lei e prevenir casos de discriminação.

“O poder político tem de assegurar que medidas mais amplas sejam tomadas para atacar as causas profundas da intolerância, promovendo o diálogo, a educação sobre a diversidade e o empoderamento das minorias para que possam usufruir dos seus direitos humanos em plenitude”, declarou Maria Lapa.

No atual contexto de crise de saúde pública, advertiu ser necessária “atenção a situações de pessoas LGBTI que possam encontrar-se em condições especiais”, sobretudo os mais jovens, muitos dos quais têm vivido o confinamento “num ambiente familiar em que não podem expressar a sua identidade sexual”.

“Há que garantir que os serviços de apoio permanecem ativos e prontos a prestar assistência, como recomendado pelas Nações Unidas”, disse.

Portugal foi um dos 10 primeiros países do mundo a legalizar o casamento de pessoas do mesmo sexo e está entre os melhores casos da Europa a nível de legislação que protege os direitos LGBTI, de acordo com a mesma fonte.

Segundo dados da Agência da União Europeia para os Direitos Fundamentais, Portugal é também o país europeu onde menos pessoas LGBTI são vítimas de agressão (5%). “Contudo, a vantagem legislativa não se traduziu ainda em níveis significativamente menores de discriminação: em Portugal, 40% das pessoas LGBTI já sentiram discriminação em alguma área da sua vida e, na UE, 42%”, indicou.

O contraste é maior quando a comparação é feita com países da Europa Central e de Leste, onde existe “oposição generalizada” ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.

“Apesar de várias vitórias e avanços recentes nos direitos da população LGBTI europeia, temos atualmente sérias razões para alarme, dado os retrocessos que paralelamente se têm registado nos últimos anos”, afirmou, citando o exemplo da Hungria, onde o parlamento acabou de aprovar legislação que volta atrás no reconhecimento legal das pessoas transgénero e intersexo.

Também na Polónia, acrescentou, dezenas de municípios declararam “zonas livres de ideologia LGBTI”, em 2019. “Por toda a Europa, temos assistido a um aumento do discurso de ódio por parte de figuras políticas – incluindo em Portugal -, na maioria das vezes com impunidade”, lamentou.

Para Maria Lapa, “apesar dos motivos de orgulho” no comportamento de Portugal, não deve ser ignorada “a tendência que se tem registado na Europa de ameaça à liberdade e aos direitos da comunidade LGBTI”, e à qual o país não está imune.

“Ainda que as leis possam por vezes ser vistas como algo meramente burocrático, a verdade é que têm um impacto real na vida das pessoas. Leis que garantem igualdade de direitos a pessoas LGBTI são uma mensagem clara de que estas pessoas merecem igualdade e um compromisso do país em cumprir as suas obrigações de direitos humanos”, alegou.

“Como qualquer mudança cultural, é algo gradual e que exige tempo, mas as leis são um passo essencial”, frisou.

Maria Lapa entende que, para que a mudança cultural acompanhe a legislativa, é essencial continuar o trabalho de educação para os direitos humanos nas escolas, sensibilizando em especial os jovens, mas também toda a comunidade escolar.

“Os jovens LGBTI em ambiente escolar estão muitas vezes mais expostos a discriminação, ‘bullying’ e outras formas de exclusão social dos seus pares, e é por isso determinante este trabalho de educação e sensibilização nas escolas”, concluiu.

Socióloga alerta para conservadorismos emergentes na sociedade portuguesa

A sociedade portuguesa evoluiu de forma significativa na última década, para uma maior tolerância e aceitação da homossexualidade e da diferença, mas é preciso estar alerta para conservadorismos emergentes, defendeu a socióloga Sofia Aboim em entrevista à Lusa.

De acordo com a socióloga, Portugal é hoje um país mais acolhedor para minorias do que há 10 anos, quando adotou a lei que permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas a discriminação não desapareceu.

“Também há elementos de conservadorismo que têm emergido ou não teríamos na Assembleia da República o líder do Chega”, André Ventura, referiu.

Sofia Aboim considerou, no entanto, que houve uma evolução notória, desde a entrada em vigor da lei, face a uma questão que arrastou durante anos um dos debates mais fraturantes na sociedade portuguesa.

“Portugal mudou muitíssimo e as novas gerações estão muito mais abertas a aceitar a diferença”

“Há mais censura a atitudes homofóbicas”, observou, sublinhando que os jovens são os grandes responsáveis por esta mudança de atitude, mais notória em meios urbanos e com uma população mais escolarizada, que aceita também melhor a adoção de crianças, que viria a ser aprovada mais tarde, na sequência da lei do casamento civil.

Por outro lado, destacou, verifica-se também “uma abertura maior na sociedade portuguesa para discursos que são declaradamente conservadores, que estão na Assembleia da República”.

Sofia Aboim remeteu, desta vez, para o novo líder do CDS-PP, Francisco Rodrigues dos Santos, que se assume “declaradamente como um conservador”.

O que vai acontecer em Portugal “é difícil dizer”, na opinião da socióloga, especialmente depois da crise, provocada pela pandemia de covid-19 : “Há uma parte da população com maior tolerância, mas também há atitudes reacionárias”.

Em termos gerais, há uma aceitação maior e a discussão hoje não será tão fraturante, admitiu, mas com a ressalva que lhe impõe o “retorno do conservadorismo no mundo”.

“Em Portugal também tem havido alguns sinais de conservadorismos que existem na sociedade portuguesa”, indicou. “Temos de perceber o que vai acontecer a partir de agora, pós-pandemia”.

Para Sofia Aboim, há um maior cuidado com o politicamente correto, mas nada é adquirido e é preciso ter em conta “o descontentamento das pessoas, que pode advir das injustiças”.

“A história tem-nos revelado muitas surpresas”, frisou a especialista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Não tem, no entanto, dúvidas de que na última década, Portugal “mudou muitíssimo” e que as novas gerações estão “muito mais abertas” a aceitar a diferença. “Continua a haver discriminação, homofobia, mas não como havia há 10 anos”, declarou, frisando que o casamento é mais aceite do que a adoção.

“Hoje, não estamos no mesmo Portugal de há 10 anos. Não estamos na dianteira, há conservadorismo, mas o balanço é de mudança significativa”, acentuou. Ao mesmo tempo, evocou as incertezas com as consequências da crise e as desigualdades que persistem na sociedade.

Em relação ao comportamento dos portugueses notou que há uma passividade que não significa necessariamente aceitação ativa, ou seja, “desde que não seja nada comigo não meto”.

“Acho que há uma mistura das duas coisas, uma certa tradição portuguesa de deixa andar, que não significa engajamento. Isso também não é muito bom, mas pode contribuir para que não haja conflitualidade”, afirmou, referindo que os níveis de agressão a homossexuais em Portugal são “baixíssimos”.

Patrícia Fonseca

Sou diretora do jornal mediotejo.net e da revista Ponto, e diretora editorial da Médio Tejo Edições / Origami Livros. Sou jornalista profissional desde 1995 e tenho a felicidade de ter corrido mundo a fazer o que mais gosto, testemunhando momentos cruciais da história mundial. Fui grande-repórter da revista Visão e algumas da reportagens que escrevi foram premiadas a nível nacional e internacional. Mas a maior recompensa desta profissão será sempre a promessa contida em cada texto: a possibilidade de questionar, inquietar, surpreender, emocionar e, quem sabe, fazer a diferença. Cresci no Tramagal, terra onde aprendi as primeiras letras e os valores da fraternidade e da liberdade. Mantenho-me apaixonada pelo processo de descoberta, investigação e escrita de uma boa história. Gosto de plantar árvores e flores, sou mãe a dobrar e escrevi quatro livros.

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