A história de Delfina Nunes começa, geograficamente, mais a Norte. Numa migração, há cerca de um século, para o Tejo. Naquele tempo, sem episódios de poluição e a abarrotar de peixe, o rio servia como modo de vida, na pesca, às populações ribeirinhas.
A viagem teve lugar depois de um episódio trágico no mar. A avó de Delfina deixou, tal como outros avieiros, a agreste e perigosa vida marítima, entre a praia de Pedrogão e a praia de Vieira de Leiria, para se instalar na margem direita do Tejo, perto de Abrantes, junto à Barca do Tejo.
No rio “que era, agora é uma ribeira”, comenta, a faina continuou e ali a mãe, viúva devido a um ciclone e com quatro filhos, conheceu o pai de Delfina, pescador de Constância, que acabou por se instalar em Tramagal, onde a filha e outros dois irmãos nasceram. Vive na única vila do concelho de Abrantes até hoje.
E os dias sucederam-se até Delfina atingir a idade, na infância, para iniciar os trabalhos no campo. “Mal saí da escola, durante 13 anos de sol a sol”, recorda. E mais tarde, na juventude, entrou para a fundição da Metalúrgica Duarte Ferreira, na qual permaneceu cerca de 20 anos a trabalhar em moldes, ou seja, até aos 40, retirada por uma lay off que a empurrou para um curso de conservação e restauro através do Instituto do Emprego e Formação Profissional.
“Fui por brincadeira. Não era capaz de estar fechada em casa porque nasci a trabalhar. Criei aqui o meu trabalho. Trabalha-se muito mais, mas só não ouvir os apitos e ir a correr para a Metalúrgica…”, lembra.
Cabelo preso, algo arruivado, olhos azuis, trabalha curvada sobre a peça, nos seus 76 anos. É artesã. Restaura móveis antigos, baús em pele – de vaca ou de cavalo – e palhinhas. Enquanto conversamos trata de uma cadeira.
O material, ou seja, a palha, “são lianas de uma árvores chamada cipó. São muito compridas e resistentes”, afirma Delfina, enquanto retira a palha de um saco para nos mostrar. Diz que em Portugal existe um único importador, com quem trabalha há 26 anos, e refere que prefere cera a verniz para finalizar os seus trabalhos.

Na bancada três ferramentas para as manualidades: tesoura, furador e uma calha “para ajudar” a passar os fios e construir o arrendado nos tampos das cadeiras e dos bancos. “Assemelha-se a uma sovela de sapateiro mas não é”, assegura, explicando que ela própria fabrica a ferramenta, utilizando varetas de guarda-chuvas antigos.
A palha repousa na água para amansar e facilitar o trabalho, caso contrário, devido à sua rigidez, parte-se. Além disso, a água fá-la esticar e permite ser aplicada a direito, “senão fica ondulada”, nota a artesã.
Num sequencial entrelaçar de fios, em bailado de baixo para cima, “há muita maneira de fazer a palhinha; de quatro palhas, de cinco e de seis. Eu gosto mais de trabalhar com seis que é o mais complicado. Gosto de trabalhar com coisas complicadas, as coisas simples não me dizem nada. Sempre fui assim… nas rendas, nos bordados”, assegura.
Essa vocação aplica-a também nos baús de pele, arcas de madeira que atravessaram gerações, forradas a chita por dentro e a pele de animal por fora. Esta arte “quase ninguém é capaz de fazer”, diz. “Isto cheira muito mal e a pele dos animais têm de estar toda encharcada. No mínimo uma noite, ou duas, a ser encharcada com água. A secar 10 dias e depois cardá-la, dar cor, mais cinco dias. E isto se não precisar ir ao ferreiro para fazer as chaves”, enumera, o único trabalho que, segundo diz, “dá realmente dinheiro”.
Cada restauro são 200 euros, enquanto a trabalhar na palhinha rende um euro à hora, ou seja, 75 euros por uma cadeira.
Em três dias descola-se a cadeira, limpa-se todos os furos, repara-se o tampo, substitui-se o arrendado, passa-se a madeira a palha de aço para tirar eventuais manchas e por fim pincela-se de cor. Já o restauro dos móveis “tem muito que se lhe diga”, exige orçamento, “que nem sempre é rigoroso” porque podem aparecer surpresas quando se desmancha a peça, por isso é pago à hora, e portanto mais compensador.
Clientes não faltam. Delfina conta que tem sempre empalhamentos para fazer, “muito trabalho”, garante. A sua oficina em Tramagal abarrota de móveis à espera de tempo e trato para ganharem novas vidas.
Apesar dos 76 anos continua a trabalhar porque “parar é morrer”, justifica, embora já não faça feiras por todo o País, como antigamente. Falhou-lhe Guimarães, apesar dos múltiplos convites que recebeu da Câmara Municipal para apresentar o seu trabalho ao vivo num expositor. “Hoje estou arrependida!”, confessa.
De resto, de Bragança ao Algarve, feiras não lhe faltaram para conseguir arranjar clientela, conta. Atualmente fica-se pelas feiras mais próximas de casa, como em Ponte de Sor ou em Gavião, onde o nosso jornal a encontrou a trabalhar ao vivo num dos expositores de artesanato.


Quanto a aprendizes só teve um jovem a trabalhar, com a família, na oficina, uma vez que o seu filho também sabe algumas técnicas de restauro e o seu marido tem a vocação completa. “Ninguém quer aprender. É muito moroso e, primeiro, tem de se investir” no material e nas ferramentas. “Uma arte que se vai perder”, lamenta.
De toda aquela arte manual, Delfina Nunes prefere o restauro dos baús em pele. “É o mais difícil!”, ri. Aprecia, particularmente, observar o resultado final. “É vê-los como chegam e como ficam”.