O lema “Por uma cultura de paz, contra a violência” guia o ciclo de conferências que pretende envolver toda a comunidade escolar, e não só, no debate sobre a violência em contexto escolar/bullying e o afastamento que se foi acentuando nos últimos anos entre as famílias e a escola.
Na abertura da sessão, enquanto autarca anfitrião desta iniciativa, Manuel Jorge Valamatos referiu que as escolas e a família “são essenciais no processo de aprendizagem dos nossos jovens e na sua formação cívica e pessoal, preparando-os para viver em sociedade”.

O presidente de Câmara notou ainda que “são os valores transmitidos aos nossos jovens que vão permitir que estejam preparados para enfrentar os desafios da sociedade”, destacando que “a união tem de ser um elemento fundamental na construção de uma cultura de cidadania, solidariedade e tolerância”.
Por seu turno, também na abertura da sessão, Daniel Marques, Comissário da PSP e Comandante da Esquadra de Abrantes, destacou a importância do programa “Escola Segura” que há muitas décadas é responsável pelo policiamento de proximidade em ambiente escolar, numa postura de sensibilização, formação e prevenção para com as crianças e jovens.
Lembrando que remonta aos anos 80 o serviço “Escola Segura”, instituído e sobejamente conhecido por todos, com polícias formados e afetos às dinâmicas dos estabelecimentos de ensino para policiamento de proximidade em contexto escolar, o comissário da PSP referiu que atualmente, a Polícia dispõe de 350 polícias nos centros urbanos do país formados especificamente para este efeito, atuando em 3006 escolas, num universo de mais de 900 mil alunos e 150 mil professores e assistentes operacionais.

“Em média, por ano, são concretizadas 13 500 ações de sensibilização e prevenção criminal no país, abrangendo mais de 400 mil alunos de diversos graus de ensino”, notou.
Por fim, falando nos desafios que se impõe para este ano letivo, falou em “reforçar comportamentos dos condutores que salvaguardem a segurança rodoviária junto dos estabelecimentos de ensino, retomar ações de informação e sensibilização à comunidade escolar – menos frequentes em contexto de pandemia – continuar apoiar a comunidade escolar na deteção de sinais de vitimização em ambiente físico e virtual, incentivar a comunicação imediata à PSP.
Manter a capacidade de identificar o mais precocemente possível situações de ciberbullying que se tenham desenvolvimento durante os confinamentos sanitários e que possam agora ser alvo de tentativa de transporte para o meio escolar”
Daniel Marques referiu ainda que a PSP continuará “empenhada em contribuir decisivamente para que os estabelecimentos de ensino se constituam como espaços de segurança e de saudável convivência para todos”, agradecendo publicamente aos responsáveis pela realização desta iniciativa do Correio da Manhã em Abrantes.

Paulo Sargento, comissário da iniciativa do Correio da Manhã, psicólogo e neuropsicólogo clínico e forense, inaugurou a conferência com uma apresentação onde fez um ponto de situação da violência em contexto escolar e na população jovem no país e à escala global.
Segundo os diapositivos que trouxe para reflexão, “metade dos alunos em todo o mundo (entre os 13 e os 15 anos) – 150 milhões de jovens – relatam ter passado por violência entre pares na escola ou nas imediações desta”, num estudo de 2018.
Em Portugal, disse o especialista focando um relatório baseado no estudo Health Behaviour in School-aged Children, 38% dos adolescentes, com idades entre os 13 e os 15 anos reportam ter sofrido bullying na escola nos anos anteriores. Já 31% dos adolescentes entre os 11 e os 15 anos relataram ter praticado bullying contra pares na escola pelo menos uma vez nos últimos dois meses.
E 46% dos adolescentes, dos 13 aos 15 anos, relataram ter sofrido bullying pelo menos uma vez nos últimos meses e ou terem estado envolvidos em confrontos físicos pelo menos uma vez no último ano.
Já de acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna, do programa “Escola Segura”, notou que os últimos relatórios sobre segurança escolar, de 2017 a 2021 (inseridos os dois últimos anos em contexto de pandemia de covid-19 com interrupções letivas) apontaram que “as ocorrências participadas têm vindo a diminuir, mas 53% têm natureza criminal”.
Neste âmbito, “apenas 10 distritos, sobretudo os do Litoral, manifestam 90% das ocorrências, sendo Lisboa responsável por mais de 50%”, sendo que “o distrito de Santarém tem menos de metade das ocorrências de outros distritos com a mesma densidade populacional”.

Segundo Paulo Sargento já seria de notar o facto de o concelho de Abrantes se inserir, assim, num distrito que aparenta estar “bem sucedido” em matéria de violência escolar e entre jovens.
Defende o especialista que “o problema da violência escolar é real, inquietante, e tenderá a aumentar na sua frequência e intensidade no período pós-pandemia”, lembrando que as crises civilizacionais vão ocorrendo ciclicamente ao longo da História, e um dos traços comuns é o facto de gerarem violência pós-crítica.
Também no painel de oradores esteve Celeste Simão, vereadora com o pelouro da Educação na Câmara Municipal de Abrantes, que traçou uma perspetiva local sobre o que se passa na comunidade escolar do concelho, referindo que “os dados apontam para decréscimo de violência e com isso ficamos muito mais tranquilos”.
A vereadora frisou o trabalho em rede, e a colaboração com a PSP, GNR e as próprias escolas, além dos projetos promovidos pela autarquia, próximos das escolas, com implementação de ações e iniciativas do Plano Municipal para a Igualdade e com uma equipa de apoio à comunidade e multidisciplinar, onde se trabalham temáticas como o bullying, a violência doméstica, a violência de género, e outros.

Segundo Celeste Simão a estratégia passa por insistir na prevenção e articulação com os parceiros, mantendo um trabalho profícuo em rede. Quanto questionada pelo jornalista que moderou a sessão sobre se Abrantes seria portanto um exemplo a seguir no que toca à prevenção da violência escolar, a vereadora assumiu que os dados para isso apontam.
Também Saudade Simões, presidente da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Abrantes, interveio referindo que a CPCJ é vista muitas vezes como “o papão” na sociedade, e referiu que o bullying é transversal a todas as idades, não sendo só os jovens que o sofrem na pele.
“Nós enquanto comunidade temos esquecido, pelas mais variadas razões da construção da identidade. Tudo aquilo que não for feito nos seis primeiros da vida de uma criança, vai ter reflexos para a vida toda. Como diz o Dr. Eduardo Sá, aquilo que se passa na infância não fica lá”, começou por partilhar.

Quanto ao retrato da CPCJ de Abrantes, Saudade Simões disse não ser tão otimista quanto à intervenção da vereadora Celeste Simão e a do Chefe Amaral da PSP de Abrantes.
“Temos tido uma escalada muito grande de situações e de abertura de processos este ano. A nós deixa-nos preocupados porque, numa reunião há 15 dias, abrimos 13 processos e oito eram de violência doméstica. Deixa-nos a pensar. Como é que estamos a tratar as nossas crianças, que são vítimas. E depois temos a questão do bullying. Tudo isto se prende, quanto a mim, com o respeito e que tem de ser educado desde muito cedo e falado e discutido na escola”, afirmou.
“Estamos abertos à interação com todas as entidades, no sentido de resolver problemas e não acentuá-los mais”, concluiu.
Neste aspecto, o responsável pelo programa “escola Segura” da Esquadra da PSP de Abrantes, Chefe Nelson Amaral, corroborou o que foi dito pela autarquia, notando a importância do trabalho efetuado em rede no concelho e a presença nas escolas num policiamento de proximidade.

Entre os principais problemas detetados nas escolas, o Chefe Amaral destacou a falta de cidadania, falta de respeito pelo próximo e a falta de civismo.
Quanto a ocorrências, refere que há registos residuais e pontuais sobre casos de bullying e violência entre alunos dentro das escolas.
Por isso a PSP tem apostado na realização de ações em conjunto, com entidades do concelho de diversa ordem, no combate a determinada problemática e com isso informar e sensibilizar as camadas jovens para uma maior consciencialização sobre práticas e atitudes que atentam contra a liberdade e identidade do outro, relembrando que existem limites, porque “a nossa liberdade termina quando começa a dos outros”.
Em declarações à comunicação social, Nelson Amaral deu conta do trabalho de sensibilização e da importância do debate aberto à comunidade para que facilite a abertura de mentalidades. No Comando de Santarém da PSP foram feitas no ano 2021 cerca de 306 ações, com 46 realizadas em Abrantes.
Na Divisão Policial de Tomar, onde está inserida a esquadra de Abrantes, representam 35% das ações feitas. Quanto aos contactos individuais e acompanhamento de casos sinalizados, foram feitos cerca de 800 contactos no Comando de Santarém da PSP, com 360 contactos feitos na Divisão Policial de Tomar e em Abrantes, com 64 contactos, a esquadra de Abrantes representa 35% dos contactos feitos.

O distrito de Santarém conta com um total de 78 casos no ano 2021, reportados por todas as forças de segurança no que toca à violência escolar, mas no que concerne à PSP, foram registados 24 casos.
No que toca a Abrantes, em 2021, apenas se registaram quatro ocorrências criminais e quatro ocorrências não-criminais. “Penso que os números têm que nos deixar satisfeitos, são reveladores do sucesso da articulação feita, mas claro que não nos permite descansar e temos de nos manter ativos e pro-ativos, porque o ideal seria zero casos. Sabemos que é utópico, mas é para isso que vamos continuar a trabalhar”, mencionou.
A PSP de Abrantes nota que existe um “despertar de consciências importante” e que aproxima os jovens da polícia e os faz pensar nas suas atitudes e repensar sobre o que poderiam estar até inconscientemente a praticar ou a ser alvo de.
Quanto ao pós-pandemia, segundo o Chefe Amaral, notou-se uma transferência dos casos de violência física para o plano virtual, com chegada de “relatos de situações de ofensas, incivilidades” através das redes sociais.
Na mesma linha de pensamento interveio Miguel Faria, que recordou o recente caso da criança que foi obrigada a despir a camisola do seu clube para assistir a um jogo de futebol ou do caso de uma criança ao colo do pai ter sido vaiada num estádio de futebol por adeptos oponentes e que levaram a que tivesse de mudar de lugar para assistir ao jogo.

Miguel Faria, psicólogo e coordenador da Escola Superior de Saúde Ribeiro Sanches do Instituto Politécnico da Lusofonia, referiu que a educação não é só em casa e refletiu sobre a violência e agressão numa altura em que se vivem tempos muito individualistas e onde prolifera a falta de empatia para com o outro e o não saber lidar com as diferenças, impondo de forma agressiva e fazendo prevalecer os seus direitos e atentando contra os direitos do próximo.
Na mesma senda, Carlos Anjos, ex-inspetor da Polícia Judiciária e presidente da Comissão de Proteção às Vítimas de Crime, lembrou que “grande parte dos problemas dos jovens começam nos pais”, com situações de antecedentes ou problemas no seio familiar.
Por outro lado, abordou a difícil tarefa de controlo dos filhos, que hoje em dia foge de limites pela virtualização da socialização entre as crianças e jovens que dificulta que a generalidade dos pais consiga saber o que fazem os filhos, como fazem e com quem.

É por isso que conceitos como o bullying e o cyberbullying são “problemas dos novos tempos”, outros tipos de violência, e que não são facilmente detetáveis em relação a um ato de violência física.
O mesmo sucede com a relação entre os jovens, nomeadamente no que toca à violência no namoro, onde crê o ex-inspetor da PJ que “os jovens estão a prescindir dos seus direitos”.
Por outro lado, e crendo que o conflito existe e sempre existiu, Carlos Anjos julga que a solução passa por “moderar e criar melhores cidadãos”, ciente de que se vivem tempos muito diferentes e aos quais é necessário adaptar e procurar formas de regular a vivência dos jovens, procurando que os pais não se desresponsabilizem e que procurem empoderar-se no sentido de educar, ensinar e sensibilizar os filhos num trabalho que deve ser complementar à aprendizagem feita nas escolas.
A iniciativa “Mais Escola, Melhor Família: Por uma cultura de paz, contra a violência escolar!”, do Correio da Manhã, irá promover um ciclo de conferências/debates em várias capitais de distrito e outras cidades, existindo ainda um site alusivo ao projeto, que promoverá ainda um Observatório da Violência Escolar e a edição de um livro com colaboração de diversos especialistas.