Quando meses depois regresso a Macieira, Sertã, local onde estive em reportagem no quente verão de 2017. Há um nó na garganta que teima em não se desfazer. O nó de quem não pode fazer mais do que relatar uma tragédia anunciada pela queda de cabos telefónicos, vergastados pelas chamas quentes, que sem dó nem piedade consumiram milhares de hectares.
Por aqui ainda são muitos os resquícios do fogo. Árvores caídas e que fazem lembrar esqueletos, ramos em valetas por limpar, placas de terras queimadas que nos levam a tocar à campainha de estranhos a pedir orientações num labirinto pintado em tons de negro e cinza. É aqui que nos deparamos com a localidade Vale do Inferno, Troviscal. A ironia não é suficiente para nos fazer sorrir quando sabemos que houve alguém, aqui bem perto, que caminhou dois quilómetros a pé, noite escura, para pedir ajuda para a esposa que encontrou inanimada. Não tinha telefone. E a ajuda chegou tarde demais. Tinha perdido a companheira de uma vida.
“Eu não tive culpa, eu não fui culpado”, havia de repetir em lágrimas aos vizinhos mais tarde, contaram-me. O nó na garganta a apertar. Não, senhor Ângelo. O senhor não teve culpa. Que culpa tem de viver numa aldeia onde demoram meses a repor os cabos telefónicos? Que culpa tem de fazer parte da estatística dos esquecidos e deixados ao abandono porque só contam um ou dois votos nas urnas?
Que culpa pode ter o senhor quando agarrou na bengala e andou duas horas a pé noite fria, sem iluminação pública, guiando-se apenas pela berma da valeta, até chegar a casa do vizinho mais próximo para pedir ajuda? Um caminho sinuoso, de subidas e descidas, que mal posso perceber como o conseguiu fazer sem cair e redobrar a tragédia no Vale da Ameixoeira, uma recôndita localidade que nem alcatrão merece em parte do pavimento.
Triste, simplesmente triste, num País onde parecem existir portugueses de primeira e de segunda.