Foto ilustrativa: Pexels

*Artigo originalmente publicado a 16 de março de 2021
Sandra regressava de uma pequena viagem de fim de semana, levando atletas de Tomar a um encontro internacional de ginástica na Maia, quando a ideia de poder estar doente começou a atormentá-la.

“Foi uma luta…”, suspira, recordando esses dias. “Comecei com os sintomas na quarta-feira, dia 11, à noite. Liguei para a Saúde 24 e disseram-me que podia ser gripe. Ainda assim, disseram-me para ficar em vigilância”, começa por contar.

Nessa noite ligou para o Hospital de Tomar e perguntou o que a aconselhavam a fazer, uma vez que tinha estado num local onde já havia casos confirmados. Se não fosse trabalhar, disseram-lhe, seria uma “opção pessoal”, da sua responsabilidade, pois não encontravam motivos para a colocar em isolamento.

Sandra, que prefere não ser identificada pelo nome completo nem que se publiquem fotografias suas, trabalha no Departamento de Recursos Humanos da Câmara Municipal de Tomar e para si era “ponto assente” que não iria colocar os colegas de trabalho em risco. Ficou em casa por uma questão de consciência, diz.

“Só ao fim do dia é que consegui estabelecer contacto com o centro de saúde, onde o Dr. Daniel foi uma pessoa bastante presente, sempre a querer saber como estava. Era a primeira situação que se vivia de covid-19 na região e este médico foi sempre muito cuidadoso, também em relação aos meus filhos e ao meu companheiro”, conta-nos.

Ficou em casa na quinta e sexta-feira. No sábado sentia-se “muito melhor”. Mas no domingo… “Foi horrível! As dores de cabeça e as dores musculares eram bastante fortes. Liguei outra vez para a Saúde 24 nessa manhã”. Do outro lado da linha havia muitas dúvidas: “Aaah… ah… Mas… Esteve na Maia? Vou reunir com a equipa e depois dizemos alguma coisa…”

Só às cinco da tarde a Saúde 24 telefonou de volta, dizendo para que se deslocasse ao Hospital de Tomar. “Pelo sim, pelo não, diziam que era preferível ir, para ser avaliada”.

Pensou que chegava ao hospital, faria análises e iria embora. Na verdade, ninguém sabia bem qual o procedimento a seguir. “Até a própria Delegada de Saúde teve as suas dúvidas, ou uma réstia de esperança, sobre a hipótese de não ser, de facto, uma infeção por covid-19”, conta Sandra.

“Falei com a Delegada e expliquei quais os sintomas que tinha: muitas dores de cabeça e falta de olfacto. Ainda nem se falava na altura da perda de cheiro e de paladar, não havia quem tivesse manifestado esses sintomas. E ela dizia-me que poderia ser uma simples constipação”, recorda.

Sandra jurava que não podia ser constipação. “Não tinha nada a nível pulmonar, porque sequei toda. E aquelas dores de cabeça não eram normais. Conhecendo-me como me conheço, não era nada normal, nem sequer parecido com qualquer coisa que já tivesse sentido. Era uma dor constante, tomava medicação e não passava… e a febre disparava nas alturas em que tinha dores de cabeça mais fortes. Parecia que a cabeça ia rebentar. Apanhava-me um olho, era horrível, por isso andava constantemente de olhos fechados… e não conseguia sequer estar de pé.”

“Era uma dor constante, tomava medicação e não passava… e a febre disparava nas alturas em que tinha dores de cabeça mais fortes. Parecia que a cabeça ia rebentar”

Naquele domingo à tarde entrou no Hospital de Tomar pensando iria fazer um “examezeco qualquer” e que depois voltaria para casa. Mal sabia da demora e da quantidade de análises que a esperavam. Começou a perceber que não iria para casa tão cedo quando a avisaram que ficaria internada.

Sandra estranhava a bateria de exames que lhe faziam – análises, raio-X – mas não o teste covid. Só o fizeram no dia seguinte, na segunda-feira, 16 de março.

Instantes do primeiro internamento, a 15 e 16 de março de 2020, cedidas por Sandra ao nosso jornal. Fotos: DR

Nos primeiros dois dias de hospitalização Sandra ficou numa sala de espera que tinha como única mobília um cadeirão azul, de pele rígida. Foi aí que dormiu duas noites. Tinha acesso a uma casa de banho, mas sem duche. Não teve acesso nem a banho nem a  roupa lavada. Era-lhe entregue, ao postigo, um saco de mantimentos de manhã, que dizia “kit de isolamento”, constituído por “pacotes de bolachas, sumos, água e pouco mais”; estava a ser tratada mediante o plano de contingência do Centro Hospitalar do Médio Tejo em caso de suspeita de covid-19.

Ficou naquela sala de espera transformada em zona de isolamento improvisada durante dois dias que pareciam não ter fim. “Foi ali que permaneci desde domingo à tarde até terça-feira, dia 17, ao final do dia, quando foi feita a minha transferência para o hospital de Abrantes”, conta.

Os profissionais de saúde só falavam com ela ao postigo e entraram apenas para mudar o soro, tirar a temperatura e fazer recolha de amostras para análises. “Só me desloquei dentro do hospital para fazer um raio-x… e foi uma aventura”, conta, atirando uma gargalhada, com a boa disposição e alívio que só pode existir em relação às histórias distantes e já ultrapassadas.

Regressemos a esse dia 16 de março, quando ainda não tinha realizado o teste de despiste à covid-19, apesar de estar internada desde o dia anterior.

Depois de perguntar várias vezes pela razão pela qual ainda não tinha sido testada, uma enfermeira questionou-a novamente se havia estado em contacto com algum infetado. Ela voltou a responder que tinha estado num evento com cerca de 10 mil pessoas, que durou 5 dias, na Maia. E que, entretanto, a Federação de Ginástica enviara relatórios a confirmar três casos positivos em comitivas internacionais ali presentes. Contudo, conta, “eu não conseguia afirmar se tinha ou não estado em contacto direto com as pessoas em questão, que nem era portuguesas. E a enfermeira disse que só me conseguia fazer teste se eu admitisse que tinha tido contacto direto com alguém que tivesse testado positivo”, revela.

No local de trabalho, a Unidade de Saúde Pública começara a realizar o rastreio de contactos e foi numa chamada telefónica feita por engano que Sandra desconfiou que já haveria resultado. “Percebi pela voz da Delegada de Saúde, que achava estar a falar com a minha chefia, que já se sabia do teste e que algo se passava”, assume. Quando uma enfermeira lhe veio dizer que “tinha uma novidade para dar”, ela só disse: “Já sei, estou positiva.”

Entretanto, disseram-lhe que iria ser transferida, mas ainda não sabiam para onde. “Ninguém me queria levar para lado nenhum, toda a gente tinha receio. Nem sei se haveria alguma ambulância disponível para o transporte… foi indescritível. Só quem passa por isto… Agora já não é assim, porque as pessoas estão mais informadas, toda a gente está preparada para atuar. Mas foi s-u-r-r-e-a-l estar numa situação deste tipo”, lamenta.

“Ninguém me queria levar para lado nenhum, toda a gente tinha receio. Nem sei se haveria alguma ambulância disponível para o transporte… foi surreal”

Saiu do hospital de Tomar e entrou numa ambulância sem saber para onde ia ser transferida. Punha-se a hipótese de ir para Coimbra ou Lisboa, e só depois lhe disseram que ia para Abrantes.

Percebeu que a sala de espera onde estava há dois dias tinha ligação à rua. “Não passei por dentro do hospital, saí pela porta e estava logo uma ambulância à minha espera. A roupa que eu levava já não estava comigo, tive de vestir roupa hospitalar porque a minha já estava contaminada. Disseram-me para não tocar em nada, para me sentar na ambulância, pousar o saco em cima do colo e não tocar em lado nenhum. Parecemos uns prisioneiros, sem saber… uma sensação do pior.”

Dentro da ambulância reconheceu pela voz um dos bombeiros que a transportava. Mas a situação de incógnita não abriu espaço a qualquer simpatia ou diálogo entre ambos. O medo, o receio e a sensação de insegurança estavam instalados.

“Cheguei a Abrantes já de noite, deviam ser umas dez horas. O hospital estava vazio, só se via uns olhos a espreitar. A ambulância parou e a indicação que recebi foi: “O bombeiro subirá consigo, não toque em nenhum botão do elevador, vai ser transferida para um piso superior.”

Chegada ao piso, teve de fazer um compasso de espera. “Não pude sair logo do elevador porque ainda não estavam todos preparados e devidamente equipados. E aí começou a aventura dentro de um quarto… Mas sempre era um quarto, não era uma sala de espera com cadeirão”, salienta.

A equipa foi-se equipando e vestindo, e Sandra foi encaminhada para o quarto, com vista para o Tejo. Um pequeno luxo, dadas as condições que lhe deram nas horas anteriores. Podia ser essa a janela que lhe ocuparia a maior parte do tempo e interesse, mas era através de uma outra janelinha de vidro que tudo acontecia. Era por ali que Sandra comunicava com as pessoas mais próximas – até mesmo com a equipa do hospital. “Só entrava no quarto alguém que me fosse fazer exames. Após algum tempo aprendi a fazer o procedimento a mim mesma, tirava a temperatura, fazia a medição de tensão com os aparelhos, para eles não terem de se vestir. Demoravam uma hora só a equipar-se”, recorda, tendo consciência da dureza da tarefa.

“Após algum tempo aprendi a fazer o procedimento a mim mesma, tirava a temperatura, fazia a medição de tensão com os aparelhos, para os médicos não terem de se vestir. Demoravam uma hora só a equipar-se”

Os profissionais de saúde mostravam algum alívio por lhes ser poupado o terem de perder horas a fio para equipar e tirar equipamento, equipar e tirar equipamento, equipar e tirar equipamento…

Detalhes dos primeiros dias de internamento em Abrantes. Fotos: DR

Inicialmente, estava previsto fazer o isolamento hospitalizada. Mas no dia seguinte novas diretrizes surgiram da Direção-Geral de Saúde, que possibilitava que ali permanecesse só até precisar de cuidados. “Ao fim de dois dias tive alta, porque não precisei de tratamentos especiais”, explica.

Logo lhe vem à cabeça o Dr. Mário, que suspirava e agradecia pelo facto de ter sido Sandra a paciente covid nº1: uma mulher capaz, independente, ciente dos sintomas e com a coragem necessária para dobrar este “Cabo das Tormentas”, apoiando no que a equipa médica necessitasse para facilitar o trabalho.

“Eles ainda estavam numa aprendizagem: primeiro eram aquelas luvas, depois era a touca, depois era não sei o quê… Havia um ritual para vestir e ainda estavam todos a aprender e antes de entrar no quarto diziam ‘Saaaandra! Daqui a uma hora entro para a visitar’. Era bastante demorado”, recorda.

Se a primeira parte da aventura não correu tão bem como Sandra esperava, a estadia no hospital de Abrantes superou as expetativas, e por isso tece rasgados elogios à equipa que a acompanhou. “Ainda hoje mantenho contacto com uma enfermeira que esteve comigo na primeira manhã de internamento e no dia em que saí. Cria-se uma ligação, porque sentimo-nos uns bichos, e ter ali pessoas dispostas a cuidar de nós no meio da incerteza…”

Foto da enfermeira com quem ainda mantém contacto. Sandra releva a boa disposição e boa energia da equipa médica, enfermeiros, auxiliares e técnicos do hospital de Abrantes. Diz que à sua saída até teve direito a música. Fotos: DR

Os constrangimentos no dia-a-dia foram alguns, porque o procedimento assim o impunha. Não tinha acesso a determinados elementos básicos e essenciais, nomeadamente para a higiene oral. Nunca pôde usar uma escova ou pasta de dentes, por exemplo.

“Lavava os dentes com uma espátula de pau, com gaze metida e Tantum Verde que me levavam num frasquinho para desinfetar… Só tive direito a cuecas, a restante roupa era descartável. Tudo o que entrasse naquele quarto era para deitar para o lixo. Tudo ficava contaminado”, recorda.

“Não tinha acesso a coisas básicas. Só tive direito a cuecas e a roupa descartável. E lavava os dentes com uma espátula de pau e gaze”

Eis que, na quinta-feira, dia 19, lhe comunicam que pode fazer o isolamento e monitorização dos sintomas em casa. “Foi um alívio enorme, mas ao mesmo tempo há sentimentos mistos. Sabemos que estamos contaminados e que em casa estão os filhos… Só pensava num plano, em ir para um quarto fechada, trancada, a fazer uma série de procedimentos. Tinha de ficar completamente isolada da família, eles não podiam entrar no quarto”, recorda.

O quarto onde esteve internada, no Hospital de Abrantes, com vista para o Tejo Foto: DR

Porém, sem haver meios hospitalares, foi o marido de Sandra que a foi buscar. “Tantos cuidados, mas até neste transporte houve uma falha. Tudo bem, eu ia equipada, vestida com roupa hospitalar. Mas será que não estava a pôr em risco a saúde” do companheiro, a pessoa que a iria estar a apoiar em casa?

“Somos prisioneiros de uma doença e levamos a família connosco”

Num agregado familiar de 4 pessoas, com o companheiro e filhos (um rapaz e uma rapariga), a mãe ficou isolada e o pai junto dos filhos, mas sempre fechados em casa. Ficaram, diz, “à mercê da boa vontade da família”.

Por sorte vive num apartamento em que o prédio tem elevador e era aí que o familiar incumbido de fazer as compras colocava os sacos e mandava o elevador subir. Depois o companheiro de Sandra recolhia.

“Quando notávamos as mercearias a acabarem, e os miúdos a dizerem que já não há isto ou aquilo, nós perante as queixas dizíamos que tínhamos de esperar que alguém se disponibilizasse para ir ao supermercado”, recorda.

Em todo o processo, Sandra e a família nunca pararam de questionar algumas incongruências que iam detetando aqui e acolá. Era o caso do lixo doméstico. Como é que uma família de quatro, a comer, a fazer toda a vida 24 sobre 24 horas dentro de casa, poderia não produzir lixo?

“E quem nos despeja o lixo? Se não podemos sair de casa, se a família está fechada, e se formos apanhados a sair estamos a incorrer num crime-público?”

Decidiram pedir permissão à Polícia. Havia um elemento da família que estava incumbido de despejar o lixo e só podia sair de casa quando já estivesse quase tudo a dormir, perto da meia noite, para evitar cruzamentos com vizinhos ou transeuntes.

“E quem nos despeja o lixo? Se não podemos sair de casa, se a família está fechada, e se formos apanhados a sair estamos a incorrer num crime-público?”

Ainda assim, notava-se o receio dos vizinhos daquele prédio de três pisos, onde residem oito famílias. “Quando se soube que era eu a infetada, sei que houve contactos com a Delegada de Saúde, sobre se não seria melhor desinfetar o prédio porque circulava no elevador quando não sabia se estava infetada ou não, porque mexi na maçaneta da porta… São situações que na altura nos magoam bastante. Mas eu hoje percebo a reação das pessoas. No fundo era uma questão de medo e de ignorância, de não se saber o que raio era isto. Era um bicho-papão”, afirma.

Fechada num quarto com casa de banho própria, com o companheiro a deixar-lhe a refeição à porta, passou os restantes sete dias em confinamento absoluto.

Foto: DR

Mas a história não fica por aqui. Teve, aliás, um volte-face inesperado.

Ao fim dos 14 dias de isolamento profilático do companheiro, e sem serem testados elementos do agregado familiar, ele regressou à sua atividade laboral.

Acontece que um laboratório ofereceu a possibilidade de contra-teste, e Sandra deu novamente positivo. Ligou imediatamente à Delegada de Saúde, que não queria acreditar. “Como? Como é possível? Mas já passou tanto tempo…”, dizia.

Nada a fazer. Foi dada indicação para se manter tudo no agregado familiar como até então, em isolamento. Mas… o marido já tinha ido trabalhar. Teve de regressar ao isolamento profilático, mesmo tendo sido nesta segunda fase testado e com resultado negativo.

“E se o resultado fosse outro? São erros que acho que ainda hoje continuam a acontecer. Continua-se a ver estas faltas de congruência e não se cumpre um fio condutor para apaziguar as coisas ou minimizar os riscos”, considera.

Os dias iam passando nesta azáfama interior, tentando aprender a viver como um pássaro na gaiola.

E toda a ausência tinha de ser justificada junto da entidade patronal, o que fez surgir outra dificuldade: a de conseguir baixa médica para entregar no trabalho. Nova baixa, na verdade, além dos dias em que, por iniciativa própria e com consciência dos sintomas suspeitos que detetava, optou por ficar em casa, desde o dia 11 de março.

Ainda não havia sistema estruturado para emissão de baixa médica nestes contornos, e a médica de família acabou por preencher as baixas à mão. E o insólito acontece quando a médica pede que a paciente passe no centro de saúde para levantar os documentos… Obviamente não podia. E enquanto os papéis não dessem entrada, não receberia qualquer apoio da Segurança Social – que ainda por cima era apenas de 55% do vencimento, pois na altura a baixa médica era paga como qualquer outra baixa normal.

Sandra notou algumas faltas de cuidado, entendendo que “com o tempo foram aprimorando as coisas, e o funcionamento começou a ser diferente”. Destaca a falta de acompanhamento e a falta de testagem, quer no seu caso em concreto, quer do agregado familiar, e de todas as pessoas com quem esteve em contacto nos dias que antecederam os  seus primeiros sintomas.

A certa altura o filho mais velho perdeu o paladar e o olfato, ficou com tosse bastante irritativa, e tudo leva a crer que teve covid-19. O companheiro sentia muitas dores no corpo. A mais nova nunca teve qualquer tipo de sintoma.

Na semana em que surgiram os sintomas, enquanto membro dos órgãos sociais do clube de ginástica, teve uma reunião com 30 pais, e no dia seguinte rumou a Leiria para outra reunião. Na semana antes desta, levou a comitiva de 16 ginastas até à Maia. Os nomes foram todos adiantados em lista de contactos, ficaram sob vigilância, em isolamento em casa, e nenhum foi testado. “Mesmo os que indicaram sintomas às autoridades de saúde, nunca foram testados. Fazia-se o menor número de testes possível na altura”, estranha.

Quanto ao evento que se crê ter sido a fonte de contágio de Sandra, decorreu no início de março. “Antes de irmos já tínhamos a noção de que nos poderíamos estar a meter numa situação um bocadinho delicada, por se tratar de um encontro grande e internacional”, admite. Vinham muitas comitivas do estrangeiro, mas havia o compromisso da Federação sobre as medidas de segurança. “Havia muitos doseadores de álcool gel, entrávamos em qualquer pavilhão e éramos desinfetados nas mãos. Os cuidados eram muito visíveis. Mas hoje sabemos que não seria suficiente.”

Da comitiva de Sandra fizeram parte alguns pais, e uma mãe chegou a partilhar quarto consigo durante a estadia. Também ficou sob vigilância e em isolamento, mas mesmo tendo estado em contacto direto, não foi testada. “Não havia um fio condutor, uma regra clara a seguir. Estava tudo numa fase de aprendizagem, era tudo muito às apalpadelas”, sublinha.

Os dias passados em isolamento foram “uma grande seca”, confessa. Ainda tentou dedicar-se à leitura, mas o nível de concentração não permitia focar-se nas histórias dos livros. E o sentimento de culpa apoderava-se facilmente desta mãe de coração apertado por estar a castrar a liberdade dos seus filhos – ainda que viesse a tornar-se o ‘novo normal’, durante os confinamentos decretados pelo Governo.

Foto: Pixabay

“O meu filho namora, e todos os dias me questionava quando podia sair de casa. Cada vez que fazia um teste, ficavam a perguntar quando receberia o resultado. Eles também estavam fartos”, recorda. Perguntavam incessantemente ‘quando é que isto acaba?’, ‘porque é que foste para o Porto?’ e ‘porque é que aconteceu contigo?’. Perguntas para as quais Sandra não tinha respostas. “Isto é uma roleta-russa e eu fui a infeliz contemplada”, constata.

Neste último confinamento os miúdos “já não estranharam” tanto ter de ficar em casa, mas quando a mãe esteve doente foi difícil interiorizarem que dependiam de “almas caridosas” para apetrechar a despensa e para repor bens alimentares. “Era viver à espera que alguém se lembrasse de nós”, diz.

Sandra acabou por sentir-se quase esmagada pela culpa e, a certa altura, tentou afastar o restante agregado, libertando-os da saga que os prendia dentro de quatro paredes. “Eu dizia para eles se irem embora, para irem para casa da mãe do meu marido, uma vez que não estavam contaminados, e me deixassem sozinha. Logicamente, não o fizeram. Mas a nós também nos causa mal-estar e desgaste, e estava mais suscetível e melindrada. Se vivesse numa casa de campo… mas nós vivemos num prédio. Eu vinha à janela falar com a polícia, que todos os dias ia verificar se estávamos em casa… Esta foi a minha realidade e de tantas outras pessoas”, assegura.

Outro peso que teimava em recair em cima dos seus ombros, era sobre qual seria a reação das pessoas ao reencontrá-la na rua novamente.

E sem que pedisse ou propusesse, a Delegada de Saúde Pública emitiu um comunicado contra a estigmatização e preconceito que se fazia notar no seio da sociedade perante os casos positivos de covid-19, ainda coisa rara, mas ascendente, na primavera do ano passado.

Sem que pedisse, a Delegada de Saúde Pública emitiu um comunicado contra a estigmatização e preconceito que se fazia notar no seio da sociedade perante os casos positivos de covid-19, ainda coisa rara, mas ascendente, na primavera do ano passado

O debate instalava-se nas redes sociais. Nas conversas entre vizinhos falava-se na filha de ‘fulano’ e ‘beltrano’. Não havia base que fundamentasse a realidade que começava a viver-se em Portugal e os números assustadores que se conheciam desde a China a Itália ou Espanha conduziam a argumentos exacerbados e instaladores de pânico.

O estigma rondava por perto, e em pequenos detalhes, bem como em perguntas indiscretas e sem grande sensibilidade. Caso das amigas que cedo questionaram se Sandra iria ou não ficar com sequelas. Pergunta desnecessária para alguém que desconhece o poder da doença com que está a lidar, e que mal sabe o que lhe calhou.

Hoje Sandra sabe que era o medo que dominava a atitude das pessoas. E a mãe é exemplo disso, que a contactava sempre muito desgostosa e chorosa.

Talvez por isso nunca tenha ido abaixo, por entender que teria de dar força aos que a rodeavam e que a tinham em pensamento, ao longe. Assumiu uma atitude pedagógica e motivacional. Passou horas e horas em chamadas. Tornou-se dona e senhora da comunicação sobre o seu estado de saúde, qual anfitriã de uma estreia com pormenores fidedignos e em primeira mão para partilhar.

“Era eu que dava força àquelas pessoas. O telemóvel foi o meu maior aliado num processo bastante duro. Fazia questão de entrar em videochamadas para perceberem que estava bem, algo que eu reforçava ao meu pai e à minha mãe”, vai contando.

Foto: Pixabay

O pai de Sandra faz hemodiálise, esteve infetado há pouco tempo, e passou por um processo igual ao da filha: sete semanas de isolamento e dois testes positivos. “Será hereditário ou terá alguma ligação? É curioso, é curioso!”, exclama.

De resto, a boa disposição e alto astral sustentaram esta cruzada, com apoio essencial noutras vertentes. A título profissional, elogia a chefia “sempre disponível e incansável”.

“Até foram deixar-me mimos a casa. São pessoas que correram riscos e foram ao elevador deixar um presente. Naquela altura, foram pequeninos atos que me marcaram para sempre. Uma amiga foi levar-me uma caixa de morangos… Se soubesse o significado que aquela caixa de morangos teve para nós e a importância daquela atitude… outros trouxeram-me pão fresco. Um amigo foi levar um frango assado, porque os meninos tinham saudades mas não podíamos encomendar… como fazíamos para receber e pagar a refeição? São pequeninos gestos que me tocaram, ninguém tem noção”, diz, gabando os corajosos que, no meio da tormenta, fazem com que as pessoas em isolamento se sintam “menos bichos”.

“Uma amiga foi levar-me uma caixa de morangos… Se soubesse o significado que aquela caixa de morangos teve para nós e a importância daquela atitude… são pequeninos gestos, que ninguém tem noção”

Diz não ter sentido algum tipo de ato discriminatório à sua saída do isolamento, tal como a restante família, nomeadamente os filhos, que apenas tiveram de lidar com alguma curiosidade natural dos seus colegas, mas com quem sempre mantiveram contacto através dos telefones e que, por isso, foram sabendo novidades do estado de saúde de Sandra e nunca estranharam a situação.

Também a equipa de trabalho na Câmara Municipal a recebeu “muito bem”, a 21 de abril, quando teve alta. “Já estava fartíssima de estar em casa, queria voltar à minha vida normal. Não notei qualquer tipo de comentário ou atitude sobre o meu regresso. Mas havia muita curiosidade de outros funcionários para saber quem era [a pessoa infetada]. Havia também muita especulação nas ruas”, nomeadamente sobre se já tinha retomado a sua rotina ou não ou se tinha furado o dever de isolamento antes de ter alta.

“Eu tenho uma vantagem: sou uma pessoa muito positiva, de astral sempre para cima. É a minha maneira de estar. O segundo teste positivo foi um balde de água fria, admito, porque não tinha qualquer tipo de sintoma e estava preparada para retomar” a vida normal.

Quando voltou às suas rotinas possíveis e ao trabalho, e por ter sido o primeiro caso covid, confessa “não ter sabido lidar muito bem com todos os cuidados recomendados”, limitações e medidas impostas.

“Tinha noção que estava imune, e aqueles cuidados de desinfetar tudo o que viesse do supermercado, não fui tendo. Lembro-me de falar com a médica de família, e de me recomendar congelar alimentos e pão, e desinfetar as compras. E eu pensava que as pessoas estavam loucas… nunca vivi isto, mesmo mais tarde, quando já visitava a minha mãe para lhe levar compras e dar apoio, eu recomendava o trivial, que lavasse as mãos e se desinfetasse”, enumera.

“Quando saímos à rua e nos deparámos com a realidade, porque estivemos sete semanas sem vir à rua, não sabíamos viver nesta nova dimensão, de luvas postas nos supermercados, de desinfeção das embalagens das compras…”

A primeira coisa que fez quando teve alta, mantendo as devidas distâncias, foi visitar a mãe. “Fartámo-nos de chorar, mas é o momento em que uma mãe põe os olhos na filha e vê que está bem. É uma saudade imensa, porque estamos isolados do mundo. Se não fossem as novas tecnologias, então… Devido à pandemia, e a minha mãe tem 70 anos, tivemos de lhe comprar um tablet para ela poder estar em contacto com os filhos. Aprendeu a fazer videochamadas para nos ver, porque falar sabia a pouco”.

Diz nunca ter sentido repulsa ou incómodo de ninguém ao se cruzar consigo na rua ou no supermercado, e mesmo no seu serviço, que é de atendimento ao público, nunca sentiu algum receio ou incómodo dos frequentadores.

Nunca se quis expor diretamente, mas tinha noção de que pertencia a “uma grande família” com cerca de 170 ginastas a cargo, e sendo uma dirigente ativa e presente, levantou preocupações junto dos pais e crianças e jovens que frequentam o clube.

“Optámos por manter a nossa comunidade a par da evolução do meu estado de saúde através de comunicados institucionais, também para tranquilizar as famílias”, diz.

Sem ser o pai, que é frequentador de hospitais e clínicas devido à necessidade de fazer hemodiálise e que contraiu covid-19 um ano após Sandra ter testado positivo, não mais se verificaram casos na família. Algo com que Sandra se regozija, torcendo para que assim se mantenha.

Hoje em dia, diz crer que continua muito presente na comunidade o pensamento de que o vírus “bate é a porta do vizinho” e que se “anda a brincar com a vida”, numa altura em que o novo coronavírus afeta pessoas cada vez mais jovens, ao contrário do que acontecia inicialmente, quando afetava mais gravemente as faixas etárias dos idosos.

Foto: iStock

Sempre foi uma mulher saudável e ativa, sem qualquer problema de saúde, mas a covid-19, ao que tudo indica, parece ter deixado sequelas a nível muscular.

Mesmo durante o isolamento, Sandra foi fazendo aulas de ginásio online, por Zoom. “Estive sempre em movimento também para exercitar, mas tenho sequelas. Digo muitas vezes que não sei se é do vírus ou da idade, porque os anos vão pesando (risos), mas tenho dores anormais nos ossos e muitas dores musculares. E mesmo as enxaquecas, volta e meia, fazem lembrar aquelas dores de cabeça intensas…”, revela, soltando um grande suspiro.

Com a persistência das dores, e quando se sentiu um pouco mais em baixo de forma, pediu uma consulta, em setembro de 2020. A consulta aconteceu por telefone. “Ninguém nos quer ver”, considera.

Do centro de saúde não houve qualquer tipo de contacto na sequência da consulta, mesmo tendo a médica de família passado análises e novos testes covid. “Não me enviou medicação nenhuma, nem sei quais foram os resultados das análises… Até hoje, da parte da médica de família não tenho qualquer tipo de contacto. Por isso, acredito que hajam muitas mortes por falta de acompanhamento”, frisa, lembrando a dor da perda de um amigo próximo durante a pandemia, que diz ter sido por falta de acompanhamento médico e negligência.

Foto: Freepik

O retomar as rotinas e voltar ao trabalho foi o clique necessário para se sentir de volta à “normalidade possível, dentro da anormalidade que se vive”.

Por isso evita a todo o custo a exposição mediática e quer, acima de tudo, proteger a sua família e os seus filhos.

De tudo o que mudou na sua vida com a covid-19, não tem dúvida de que o mais importante foi ter-lhe colocado de novo “o mundo à frente”. Hoje valoriza as pequenas coisas de outra forma e procura viver sem os condicionalismos anteriores, com maior clarividência. “Sou grata à vida.”

Joana Rita Santos

Formada em Jornalismo, faz da vida uma compilação de pequenos prazeres, onde não falta a escrita, a leitura, a fotografia, a música. Viciada no verbo Ir, nada supera o gozo de partir à descoberta das terras, das gentes, dos trilhos e da natureza... também por isto continua a crer no jornalismo de proximidade. Já esteve mais longe de forrar as paredes de casa com estantes de livros. Não troca a paz da consciência tranquila e a gargalhada dos seus por nada deste mundo.

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