Maria da Conceição Rosa tem 102 anos, feitos a 23 de fevereiro. Na sua perfeita lucidez, com boa disposição e sempre conversadora, alinhou numa proposta que teve tanto de desafiante como de deliciosa: contou-nos através de videochamada como tem passado estes dias de pandemia, no recato da sua casa e com apoio do Centro de Dia em Aboboreira, no concelho de Mação.
Nada lhe passa despercebido. Sabe que tem de usar máscara, já fez dois testes de despiste que “não custaram nada” e deram sempre negativo. Só a primeira dose da vacina é que a deixou arreliada, porque essa “doeu um bocadinho”. Tem o privilégio de poder contar com o seu filho e três netos e seis bisnetos. Na aldeia só fala com a vizinhança de vez em quando, à distância, porque agora não podem haver as visitas de antigamente. Esta doce centenária conseguiu fintar a covid-19 a par de tantas outras maleitas, e certamente reside no seu bom humor a chave da sua longevidade.
Numa altura em que se assinala um ano de pandemia na região, não podemos esquecer os mais vulneráveis da sociedade a quem o novo coronavírus colocou debaixo de fogo devido ao maior risco de contágio, obrigando a maior isolamento, cuidados e vigilância.
Muitos foram os surtos que assombraram lares e centros de dia no Médio Tejo, e em dezembro de 2020, o Centro de dia de Aboboreira não foi exceção. Viu-se a braços com um surto que entrou de rompante, afetando funcionárias e utentes. Tudo não passou de um susto, e com dedicação e vocação, tudo acabou bem, com os idosos em apoio domiciliário e em segurança, com o devido acompanhamento.
É o presidente da União de Freguesias de Mação, Penhascoso e Aboboreira, também dirigente do Centro de dia de Aboboreira, José Fernando Martins, que nos ajuda a estabelecer contacto. Pela hora de almoço, na visita para entregar bens à Dona Maria da Conceição, liga-nos.
A rede ainda tenta pregar partidas, e a primeira tentativa da chamada não corre bem. À segunda vez surge no ecrã um rosto marcado pela vida, mas onde se conseguem adivinhar quais as rugas que compõem as feições e as que se devem a expressões de alegria.
Do outro lado, ouve-se um “boa tarde, minha senhora”. É Maria da Conceição.

Mostra-se sorridente e entusiasmada, apesar de nunca mais ter saído de casa, desde que a pandemia começou, sendo-lhe assegurado apoio domiciliário.
É uma benção poder estar na sua casa, no seu canto e no seu espaço. “Gosto de cá estar. Estou sozinha mas ainda me vou dirigindo por aqui e arranjando”, explica.
É natural de Louriceira, já ali no limite do concelho de Mação e na fronteira com Vila de Rei. Mudou-se para Aboboreira aos 29 anos, para servir numa casa enquanto doméstica. Além disso, sempre foi trabalhando na agricultura, cuidando das suas terras e vendendo alguns produtos.
A família costuma visitá-la com as devidas precauções. Residem em Abrantes mas mantêm ligações muito próximas à terra. “Quando podem vir, vêm. Quando não podem, não podem!”, diz a centenária, descomplicando estes novos tempos.
Por outro lado, os familiares estão tranquilos, porque sabem que a matriarca está bem entregue aos cuidados do centro de dia, que visita Maria da Conceição entre três a quatro vezes por dia.
“O centro de dia é muito prático! Às horas está cá sempre, seja de manhã, seja à noite, a qualquer hora”, admite, puxando a brasa à sardinha do centro de dia da terra como se de uma embaixadora se tratasse. Afinal, a idade é um posto, e Maria da Conceição é a idosa mais velha que acompanham.
Faz elogios às “rapariguinhas” que trabalham ao domicílio, que diz serem “muito capazes, desenvolvidas”, gente que “sabe fazer as coisas”.
“O sr. Zé sabe bem escolhê-las!”, atira, divertida e ciente do que afirma.
Afiança que raramente se sente sozinha, porque na realidade fica pouco tempo só com os seus botões. “Às vezes as vizinhas vêm ao portão, mas é pouco tempo. E a maior parte do tempo passo-o a dormir”, conclui, com uma risada.

Desde que fez 100 anos, começou nova contagem. “Dois estão feitos, o outro não sei”, refere, desconfiando sobre se chegará ou não ao 103º aniversário.
Agora admite que já precisa de mais auxílio nas tarefas do dia-a-dia, e o tempo vai passando, “umas vezes bem, outras vezes mal, mas tenho de cá estar”. Entre as conversas com as vizinhas e as sestas, quando consegue ainda dá um pulo ao quintal para arrancar ervas, mas pouco. “Já não há forças!”, confessa.
A mais antiga utente do centro de dia, há quatro ou cinco anos pedia para que lhe arranjassem cebolo e alface para plantar no quintal, cuidar e depois colher para levar para a instituição e lá se consumir. Tinha galinhas e na cesta levava também ovos.
“Sempre foi muito ativa”, diz José Fernando Martins, que a acompanha e ajuda durante a videochamada.
Quanto ao facto de o vírus não lhe ter batido à porta, diz que não quis nada consigo. “É bom não me querer. Eu sou feia! Ele que não venha cá ter (risos)“, e solta outra das suas gargalhadas caraterísticas.
Depois fala sobre os testes à covid-19, que já fez por duas vezes. Não sentiu nada mas sabe que lhe puseram algo no nariz, e aponta as duas narinas.
Há quinze dias, foi levar a vacina a Mação, e essa, sim, doeu. Mas mesmo assim admite que já tem levado outras vacinas que doeram mais.
Sabe que agora tem de seguir procedimentos e estar sob vigilância a cada visita domiciliária, onde as funcionárias tiram a temperatura e examinam Maria da Conceição. “Nunca se esquecem”, salienta.

Quanto ao distanciamento, as medidas foram bem tiradas. “Elas estão do outro lado da rua, eu estou deste lado e ainda tenho um espaço à frente da casa, e estou sempre sossegada e longe. E também tenho aquelas coisas de pôr na boca… As máscaras!”, indica. Mas isso é outra guerra, porque nota dificuldade a usá-las muito tempo, e logo descreve a viagem até Mação para ser vacinada, quando pôs a máscara e lhe fazia impressão. “Opá! Eu nem sabia onde é que eu ia!”, conta.
A resistência já não é muita, mas tem genica para dar e vender, e um espírito jovem que faz inveja a muita gente nova. Aos 99 anos – faltavam três meses para completar 100 primaveras – recebeu um pacemaker, e por isso todos apontam que Maria da Conceição “vai durar, pelo menos, até aos 110”.
“Está a ouvir? Se fosse hoje, parece que já não punha isto. Às vezes dá-me umas picadas… até me falta a fala”, ri-se, fingindo-se queixosa.
Quanto à família, diz que “já não os junta”, pois cada um tem a sua vida, e parte está no estrangeiro. Mas a família de cá vai passando e picando o ponto. Todos os aniversários são celebrados e assinalados, e este ano, sem a habitual festa no salão do centro de dia, sem os companheiros da instituição e só com alguns familiares, não se deixou de cantar os parabéns, com direito a um bolo de ananás.
“Não tenho razão de queixa deles. Vejo-os é poucas vezes”, lamenta.

A conversa já vai longa. “Pensava que vinha ouvir alguma coisa extraordinária?”, pergunta, para depois lamentar e pedir desculpa, não sabe ler e por isso não diz “nada com jeito”.
Olhe, Dona Maria da Conceição, deixe-me que lhe diga: conversar por videochamada, “essas modernices!”, com uma senhora de 102 anos, lúcida, coerente, divertida, um verdadeiro hino à alegria, é, por si só, uma coisa extraordinária.