Leonel Mourato Foto: mediotejo.net

Como manter a calma num cerco sanitário, sem contactos sociais e com grandes restrições nas saídas à rua? Com as rotinas alteradas há mais de duas semanas, Leonel Mourato, natural de Ortiga, Mação, vive em Esmoriz, Ovar (concelho que se manterá isolado do resto do país pelo menos até 17 de abril, para conter o surto da doença provocada pelo novo coronavírus) e conta ao mediotejo.net como tem sido a adaptação a esta “estranha forma de vida”.

Comecemos por recordar estas últimas semanas, que parecem tiradas de um filme e reportar tempos longínquos, mas não. Foi há três semanas que tudo começou no norte do país.

O município de Ovar, distrito de Aveiro, viu-se encerrado num cerco sanitário instalado a 18 de março, após declaração do estado de calamidade pública pelo Governo a 17 do mesmo mês, devido à pandemia de covid-19. Foi instituído em Ovar controlo de fronteiras e suspensão de toda a atividade empresarial não afeta a bens de primeira necessidade. Medidas tomadas depois de se verificarem mais de 300 casos de infeção no concelho, onde o número de óbitos causados pelo novo coronavírus chegou a mais de uma dezena.

O ato foi visto por por muitos como castrador e demasiado restritivo, nomeadamente pelas empresas, pelo facto de as fronteiras terem sido encerradas de imediato. De repente, já ninguém entrava ou saía. Uma quarentena geográfica que é vista pela autarquia como uma arma importante nesta guerra contra o vírus, tendo Salvador Malheiro, presidente da Câmara de Ovar, reconhecido que se trata do “maior desafio das nossas vidas”, mas que é preciso “colocar a vida humana em primeiro lugar”.

Assim, tal como os restantes habitantes, Leonel Mourato, que vive em Esmoriz, no concelho de Ovar, começou a ver alterada a sua rotina. Antes, apanhava o comboio até ao Porto para ir trabalhar num banco. Começou a sentir o assustador vazio das carruagens antes atafulhadas de gente e sem lugar para todos, e a conseguir avistar todos os cantos das estações de comboios em plena hora de ponta. O que só de imaginar é já surreal.

Depois de decretado o cerco sanitário, ficou em teletrabalho, tal como a mulher, sempre atento aos números e às notícias, munindo-se de conhecimento e das recomendações das autoridades de saúde sobre como proceder e quais as regras a cumprir para travar a propagação da covid-19.

Leonel vive na cidade de Esmoriz, freguesia do concelho de Ovar, “a terra onde o tempo parou e onde os comboios deixaram de parar”, como apelida por estes dias. “É uma freguesia tão grande como a sede de concelho”, explica em entrevista ao mediotejo.net.

Natural de Ortiga, Leonel trabalha no Porto mas vive em Esmoriz, concelho de Ovar. Todos os dias viajava de comboio para se deslocar para o trabalho e para casa, mas agora diz viver “na terra onde os comboios deixaram de parar”. Foto: Leonel Mourato

“Trabalho no Porto e desde dia 18, dia em que entrou em vigor o cerco sanitário em Ovar, estou em casa em teletrabalho. Para mim era complicado gerir tudo isto. Ia no comboio que vinha de Aveiro, depois tinha que apanhar na Campanhã o comboio que vinha de Braga, ou seja, todas estas passagens entre comboios entre Campanhã e São Bento era complicado”, contou.

Por outro lado, fixou o facto de trabalhar “num edifício que tem cerca de 300 pessoas” e onde já havia um clima de desconforto entre os funcionários. “Entre nós já se estava a tornar um ambiente muito complicado porque sempre que alguém espirrava ou tossia, toda a gente se assustava e ficava desconfortável”.

Assim, o banco onde trabalha, tal como outros, deu oportunidade aos seus trabalhadores de irem para casa em teletrabalho. E a partir daqui, começa a aprendizagem sobre uma nova forma de estar e de repensar prioridades.

Leonel começa então por dar o seu testemunho, na primeira pessoa, sobre a vida diante de uma nova realidade. Em casa, adotaram-se medidas de adaptação.

“Tivemos de nos adaptar ao teletrabalho, cada qual está no seu canto a trabalhar. Depois internamente, dobramos, redobramos e triplicamos toda a nossa higiene, tudo o que são contactos com mãos, pés, a nível de sapatos”, começou por enumerar.

Por outro lado, foi criado à entrada de casa um “recinto” de desinfeção, para quando regressam das idas à rua. “Criámos no hall de entrada uma zona de passagem, em que os sapatos ficam e trocamos para, em casa, só andarmos de chinelos. O hall é desinfetado com lixívia”, afirmou.

“Quando vamos à rua, vamos só um de cada vez. Quando saímos de carro, a primeira coisa que fazemos quando chegamos é lavar as mãos e desinfetar. E de alguma forma esta foi uma rotina que criámos para ultrapassar uma situação muito chata, muito estranha, muito triste…”, foi confidenciando.

A informação é também importante, e Leonel admite que o acompanhamento do que se passa no país e no mundo não é descurado à hora do telejornal.

“Outra coisa que adotámos é não ter as televisões todas ligadas, ao longo do dia ouvimos música. Ligamos na altura dos telejornais, ao meio-dia e às oito da noite, mas não temos as televisões ligadas, como é típico da maioria dos portugueses, com uma ligada no quarto, outra na sala, outra na cozinha, e todas a dar notícias catastróficas. Isso cria um clima ainda pior”.

Acreditando que a chave reside em ter “muita paciência” e considerando que “as pessoas não podem entrar em parafuso só porque têm de ficar fechadas em casa”, o ortiguense contou que lá em casa cada um sai para dar “uma pequena caminhada nas imediações, desde que mantenha distância de segurança”.

As idas ao supermercado fazem-se com manutenção de distância de segurança e com controlo de entradas e saídas, permitindo número restrito no interior da superfície comercial. Foto: Leonel Mourato

Nas idas ao supermercado cumprem com as regras impostas por todo o país. Os supermercados em Esmoriz mantêm a distância de segurança entre clientes e limitam a entrada a 5 ou 6 pessoas, só entrando um quando sair outro. A fila cá fora mantém distância entre clientes de 2 metros.

Ainda assim, Leonel assume que “não tem faltado nada” e que “aquela situação de as pessoas irem ao supermercado, encher os carrinhos de compras com papel higiénico, latas de conserva”, ali não se verifica. “As pessoas têm tido um civismo muito grande e de louvar. Trazem só o essencial para que o próximo possa ter”.

Os próprios supermercados, diz-nos, depois de uma operadora de caixa lho ter confidenciado, têm tido estratégia nesse sentido, colocando quatro ou cinco artigos de cada produto nas prateleiras, repondo-os de seguida à medida que são comprados, para evitar açambarcamento.

No meio de tudo isto, há outro pormenor que se altera das habituais rotinas de Leonel. É amante da natureza, e é praticante de geocaching, e integra o projeto Rotas de Mação que se encontra a instalar e oficializar percursos pedestres homologados a nível nacional. Viu-se privado das suas caminhadas e da prática de ciclismo, nomeadamente ao fim-de-semana. Longe da família, amigos, Ortiga, Mação. Longe da equipa das Rotas com quem tinha encontro marcado ao fim-de-semana ou férias. E isso não foi fácil.

“Nós próprios temos que nos adaptar às circunstâncias. Vivo perto do mar e todos os dias de manhã vou dar um passeio, sozinho, sem contacto, nos passadiços de Esmoriz. De um lado é Espinho, do outro lado é Esmoriz… é triste para mim, ao percorrer os passadiços… E tenho uma cancela”, desabafou.

É ao embater na proibição que tudo ganha mais força. “Estamos numa zona de isolamento, estamos cercados, não podemos ir a Espinho ou Santa Maria da Feira”, aludiu Leonel.

A cancela dos passadiços que ligam Esmoriz a Espinho, onde Leonel habitualmente percorria a sua quota-parte de km nas caminhadas de fim-de-semana. Agora é ali que embate na dura realidade do isolamento perante as comunidades vizinhas e o resto do país. Foto: Leonel Mourato

Recorda o início de tudo, e da forma rápida como o vírus alastrou à comunidade em Ovar, nomeadamente na escola secundária de Santa Maria da Feira, que a sua filha frequenta, e do facto de um professor, uma aluna e a sua mãe terem sido os primeiros casos positivos de covid-19. A filha de Leonel, aluna desse professor infetado, teve de passar pelos 14 dias de quarentena obrigatória, mas revelou-se assintomática.

Tendo em conta o descontrolo inicial e a propagação rápida do vírus no concelho, Leonel é favorável a que se faça testes a toda a gente, mas reconhece e compreende a falta de capacidade para tal. Ainda assim, seria importante perceber quais os infetados antes de apresentarem qualquer sintoma.

As pessoas já se mentalizaram, ao fim destas semanas, que tudo é realmente grave e que o distanciamento social é importante. Ainda assim, assiste-se à solidariedade e bairrismo também aqui, como noutros pontos do país, com os vizinhos a falarem à janela.

“Moro em frente aos bombeiros de Esmoriz, e ouvi uma grande barulheira na rua. Fui ver, pensando que já andasse malta na rua, mas não… Eram as pessoas que estavam à janela. Criou-se aquele cenário de bairro, que tem a sua piada”, disse, reforçando que apesar da dificuldade, as pessoas estão agora a levar o cerco sanitário com tranquilidade e bom senso.

Pessoas a refugiarem-se nas aldeias do Interior do país? “É um erro!”

Apesar de ausente, Leonel não esquece o seu concelho, extremamente envelhecido e deserto, demonstrando preocupação pelas notícias da avalanche de migrantes e emigrantes para as aldeias do interior do país, e em concreto do seu concelho. “Sujeitam-se a levar o vírus para o interior do país, que é deserto, envelhecido, e de alguma forma terão serviços de saúde muito menos capazes que nas grandes cidades. Podem ir afetar as comunidades do interior. O que eu faria, se tivesse poder autárquico, era colocar a Proteção Civil ou as autoridades em contacto com estas pessoas, no sentido de certificar que ficam de quarentena”, referiu.

“Vamos imaginar que há uma família que se desloca para o Interior, por qualquer motivo tem casos de infeção, e transporta consigo o vírus. Pode estar a colocar em risco familiares, vizinhos, mesmo com contacto mínimos e bem intencionados ou de solidariedade. Não estou a condenar as pessoas que foram para as aldeias em Mação, nomeadamente tenho um amigo que me disse que em Aboboreira estava imensa gente que até nem é de lá, nem são filhos da terra, mas que optaram por sair da cidade e refugiar-se ali. Mas essas pessoas devem ficar em quarentena”, fez notar.

Apesar de tudo, mantém a esperança no bom senso e civismo das pessoas e diz ter “orgulho em ser português”, com fé de que tudo será ultrapassado no seu devido tempo. O certo é que nada será como dantes.

Durante as curtas caminhadas nas imediações de casa, perto dos Bombeiros de Esmoriz, dá para se perceber a imensidão do vazio nas ruas e o cumprimento do isolamento social que Leonel crê já ter sido aceite e interiorizado pela população. Foto: Leonel Mourato

“Depois de tudo isto passar, nada será igual. Eu trabalho na banca, e nós criamos cenários para futuro. Vivemos uma crise sanitária, após a qual iremos ultrapassar uma crise económica. Não será tão longa como a de 2008, será mais profunda, mas de alguma forma há esperança que seja mais rápida de recuperar. A crise de 2008 incidiu sobre a banca e levou anos a recuperar. Esta é uma que envolve o mundo inteiro, e eu acredito que quando ela passar, a recuperação será muito mais rápida”, explicou.

Por fim, Leonel quis deixar a sua “admiração e profundo agradecimento a todos os profissionais que estão na linha da frente”, sublinhando que está “profundamente admirado e agradecido por todos os que trabalham no terreno em prol do próximo”.

A mensagem que quer passar é de tranquilidade e calma às pessoas. “A situação é grave mas o mundo não vai acabar, não vale a pena entrar em pânico.”

“Creio que em Portugal somos muito mais conscientes que noutros países, não quer dizer que não haja pessoas que estão a levar isto de outra forma, mas… Eu estou extremamente contente pela organização que as autoridades de saúde está a implementar nos hospitais, forças de segurança no terreno e tudo mais. Tenho fé e esperança que nunca chegará a Portugal o que está a acontecer lá fora, como em Itália e Espanha. Acredito que conseguimos, em devido tempo, travar o pior. Tenho muita confiança mesmo”, concluiu.

Em Ovar, foi confirmado que iria ser prolongado, até 17 de abril, o cerco sanitário, na sequência do alargamento do estado de emergência a nível nacional. Tudo continuará como até aqui, com o autarca Salvador Malheiro a concordar, em declarações à Lusa, com as medidas tomadas no sentido de proibir as deslocações para fora do concelho de residência durante a Páscoa, entre 9 e 13 de abril.

O presidente de Câmara de Ovar defende a tomada de medidas “arrojadas” e crê que o esforço da sua comunidade, “maior do que noutros concelhos”, possa permitir “sair mais cedo desta crise, reerguer a economia mais depressa e assim ajudar o país”.

Atualmente, além de Ovar, estão também os seis concelhos da ilha de São Miguel, nos Açores, sujeitos a cerco sanitário para conter a pandemia de covid-19.

*Com Lusa

Joana Rita Santos

Formada em Jornalismo, faz da vida uma compilação de pequenos prazeres, onde não falta a escrita, a leitura, a fotografia, a música. Viciada no verbo Ir, nada supera o gozo de partir à descoberta das terras, das gentes, dos trilhos e da natureza... também por isto continua a crer no jornalismo de proximidade. Já esteve mais longe de forrar as paredes de casa com estantes de livros. Não troca a paz da consciência tranquila e a gargalhada dos seus por nada deste mundo.

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1 Comentário

  1. (Porque também eu opto por Ficar em Casa tenho mais tempo para olhar os número que me dão a conhecer)
    “(…) Medidas tomadas depois de se verificarem mais de 300 casos de infeção no concelho (…)”. No site onde diariamente são apresentados os números da DGS diz, hoje (4 de abril) pelas 11:53, que Ovar tem 220 casos! Porquê esta diferença nos números…. No concelho do Porto, quando também se falou em “cerco sanitário” tinha bem mais casos que os 606 que o mesmo site, agora, apresenta. Para o Médio Tejo os dados apresentados indicam que há 17 casos positivos (Ourém [10], Tomar [4] e Torres Novas [3]), na imprensa local, ontem (3/4/2020), para o mesmo Médio Tejo diz-se, segundo a Autoridade de Saúde local (ACES), que há 61 casos de COVID-19… Alguém me explica estas contas?

    Mesmo com números “estranhos”: Cuide de si, dos seus e #FiqueEmCasa.

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