O mediotejo.net falou com a coreógrafa abrantina em Tramagal, aquando da apresentação da peça ‘O Bom Anfitrião’. Neste projeto trabalhou com quatro artistas de quatro zonas geográficas e são eles os anfitriões de um espetáculo cujo tema incide sobre as alterações climáticas, tendo Filipa Francisco trabalhado numa vertente de intervenção social/cultural, e em projetos, por exemplo, com jovens da Cova da Moura, com reclusos do estabelecimento prisional de Castelo Branco e com diversas comunidades migrantes.
Ligada ao ‘Mundo em Reboliço’, uma associação cultural sem fins lucrativos que Filipa Francisco fundou, esta é uma estrutura de investigação, experimentação, formação, criação e circulação artística que pode estender em breves as suas ramificações ao concelho de Abrantes.
VIDEO/ENTREVISTA:
Filipa Francisco, 51 anos, com uma vasta experiência profissional, procura aproximar a dança de diferentes públicos usando estratégias de envolvimento que passam por utilização de memórias e vivências ou por cruzamentos entre o reportório das danças tradicionais com o contemporâneo.

Na peça apresentada, lembra, o bom anfitrião é aquele que acolhe bem os seus visitantes. Bom anfitrião é aqui, também, aquele que partilha o seu conhecimento e as suas memórias de cada lugar. Através das memórias destes quatro intérpretes propõe-se uma viagem por diversos lugares, por espaços que fundem o real e o fictício, entre a dimensão política e a dimensão poética. Será que a dança pode ser um motor de mudança?

mediotejo.net – “O Bom anfitrião” está em rotação pelo país, numa peça que se centra em torno de uma árvore e dos temas ambientais. Como tem sido a aceitação deste espetáculo?
Filipa Francisco – O “Bom Anfitrião” é uma peça que começou por ser uma investigação sobre as alterações climáticas e depois dessa investigação passou a ser uma coisa que é… que pusemos dentro do corpo e, portanto, é um espetáculo de dança e teatro. E na verdade esta árvore, que é o cenário da peça, construída pelo Pedro Fonseca, é muito importante porque é quase como se fosse uma árvore natural e artificial. E é a contradição que nós queremos apresentar no espetáculo, esta possibilidade de protegermos a natureza e de na maior parte das vezes não conseguirmos. Esta contradição de querermos ser natureza e não conseguirmos, esta questão de cada vez mais nas sociedades estarmos afastados da natureza, ou seja, em vez de respeitarmos a natureza, cada vez se constroem mais parques de estacionamento. E, portanto, a peça, apesar de ser de dança e bastante abstrata, apresenta essa contradição através desta árvore e da viagem desta árvore pelo palco. É também um espetáculo participativo e pede-se ao público que dê as suas ideias para adiar o fim do mundo.
Quem é o bom anfitrião nesta peça de teatro e dança em torno do ambiente?
O bom anfitrião são os artistas que fazem parte da peça, eu incluída, como coreógrafa, e que trouxeram os seus territórios para a pesquisa da peça. Neste caso está aqui um acordeão, no chão, e é do artista de Sesimbra, que é o Nuno Reis, que trouxe a música para a peça e trouxe também imagens das pedreiras, que é o problema de Sesimbra, é a questão ambiental das pedreiras. Por exemplo o Luís, que é de Santarém, trouxe a questão do Tejo e da falta de água e que aqui também chega essa questão, aqui a esta zona. A Isa, que é de Palmela, trouxe a questão dos recentes incêndios de Palmela, que nós filmámos as árvores ardidas e, portanto, trouxe isso para a peça. A Ana Vaz, que neste momento foi substituída pela Mariana, trouxe a questão da água e que a Mariana agora continua essa questão, que é a questão da água e o estado da água. Neste caso aqui, na nossa Barragem de Castelo de Bode e da zona de onde eram os meus avós, Água das Casas, sentimos muito essa água que está a desaparecer e cada vez a Barragem está mais lá ao fundo, mais lá ao fundo…Portanto, cada um dos artistas trouxe algo do seu território sobre questões ambientais e esses são os bons anfitriões.
E como é que tem sido a aceitação por parte do público?
Tem sido boa, principalmente mais da parte das crianças. Primeiro, as crianças não têm vergonha de participar nos espetáculos. Estão abertas para responder a perguntas, para dizer coisas, para desenhar, para escrever. E também acho que é uma questão ambiental, que agora se dá muito nas escolas e ainda bem e, portanto, estão muito sensibilizadas para isso. Depois, tivemos, por exemplo em Torres Vedras, uma comunidade de cegos, de pessoas cegas, com áudio-descrição e acho que foi também muito emocionante o espetáculo. Temos sempre no espetáculo língua gestual portuguesa, é um espetáculo que pretende ser acessível a todos os públicos. E depois, em geral, as pessoas têm-me dito que têm gostado muito, que se sentem muito sensibilizadas, apesar de o espetáculo… dizem-me que às vezes é um murro no estômago, porque não tem um final feliz. Eu acho que nem sequer tem um final, tem um final muito aberto, porque lá está, depois há essa participação ao público que deixa em aberto o que é que poderá ser o futuro.
Esta é a peça que tens levado aos vários palcos do país. O Bom Anfitrião e vai continuar a partir daqui, do Tramagal, e vai para outros lados?
Há já mais dois espaços, portanto serão mais dois teatros que é Alcobaça e Pombal e serão os últimos desta circulação deste ano, que já vai longa, já desde o início de outubro que estamos a circular todos os fins de semana até dezembro, até dia 4 de dezembro. Pronto, há aqui muitas ideias, porque as pessoas têm-nos dito que a peça funcionaria muito bem para escolas, também há uma das bailarinas que é da Guiné-Bissau, que gostaria de levar a peça ao seu país ou ao país dos seus pais, porque ela nasceu em Portugal. E há também ideia de uma instalação, porque esta árvore é muito potente e muito interativa e os vídeos também. Portanto há aqui muitas e muitas ideias, nós temos de nos sentar a uma mesa depois disto tudo acabar e perceber o caminho…
Os seus trabalhos têm incidido nas questões sociais, na inclusão, nas alterações climáticas. É por aqui que te inspiras… intervenção social artística?
Exato, eu tenho um trabalho muito diverso, no entanto, já há muitos anos que eu trabalho com públicos que não são os profissionais das artes ou não são só os trabalhadores das artes. Mas, por exemplo, trabalhei 7 anos num estabelecimento prisional em Castelo Branco em que levava a dança e o teatro para dentro da prisão, trabalhei em bairros sociais como por exemplo a Cova da Moura, em que essa peça circulou, por exemplo, na Palestina, onde também conheci outras companhias e fiz workshops para os bailarinos de lá. Fiz peças com públicos… por exemplo agora, em Almada, estou a fazer um trabalho com públicos migrantes, portanto, pessoas vindas de diversas partes do mundo e há aqui um lado artístico, um lado social, um lado político, um lado poético… são várias dimensões que estão geralmente sempre presentes.

Sendo natural de Abrantes, com afinidades familiares em Água das Casas, uma pequena aldeia no norte do concelho, o teu projeto de futuro passa, em boa medida, pela internacionalização, pela descentralização da cultura, do teatro e dos teus trabalhos, mas também por um regresso às origens, e a partir de Água das Casas levar a cultura a todo o território de Abrantes e da região envolvente. Qual é esse projeto?
Eu nasci em Abrantes, os meus avós são de Água das Casas e eu sempre passei as minhas grandes férias de verão em Água das Casas, portanto tenho memórias muito boas desta aldeia. E realmente eu tive de me afastar da aldeia para ser bailarina, não havendo infraestruturas de dança para eu poder continuar, fazer o meu sonho da dança. Agora que sou bailarina e coreógrafa, na verdade já tenho eu meios de voltar a sítios mais pequenos, incluindo a aldeia de Água das Casas, para levar a dança às populações, em diferentes formatos, quer as pessoas participem ou só vejam espetáculos. Portanto, o meu grande sonho realmente é (re)construir a casa dos meus avós, é ter um espaço de trabalho dentro de Água das Casas, é ligar a ecologia, a terra às artes e depois temos assim aqui dois anos com apoio da DGArtes, e com a minha associação, em que possivelmente conseguimos realmente estabelecer aqui uma ligação mais profunda e mais continuada com Abrantes, com a Câmara Municipal de Abrantes, com escolas… E um grande projeto que eu acho muito bonito e divertido que é viajar numa carrinha, a peça ou o projeto chama-se “Bens essenciais” e levar, tal como as bibliotecas levavam os livros às aldeias, no tempo da Gulbenkian fazia isso, e agora parece-me que também existe, levar a dança e o teatro a essas aldeias e porque não até descobrir talentos dessas aldeias que possam participar nesses espetáculos. Portanto estes são os sonhos de futuro.
A partir do próximo ano? Num futuro próximo?
Exatamente, ou seja, dois anos, 2023 e 2024.
