Grupo de Montalvo do projeto de solidariedade "Sorriso Entre Letras", está a criar flores para decorar, em conjunto com o grupo do mesmo projeto de Santa Margarida da Coutada, uma das ruas da vila nas Festas de Constância 2022. Imagem: Ana Rita Cristóvão | mediotejo.net

À passagem pela antiga Escola Primária de Montalvo, tudo parece sossegado em mais um dia comum. Espreitamos por detrás do conhecido sobreiro da freguesia e avistamos o Parque Infantil Adães Bermudes, sem crianças à vista. Em mais uma mirada, desperta-nos a atenção a porta semiaberta da antiga escola.

À medida que nos aproximamos, um burburinho vai crescendo e a chuva que nos apanhou de surpresa leva-nos a entrar. Lá dentro, vive um extasiante cenário de cor, vivacidade e sorrisos, com mãos que trabalham freneticamente: de um lado, uma senhora faz moldes em folhas de plástico com uma base de um vaso; do outro, mais duas cortam ondinhas para recriar as pétalas de uma flor; ao fundo, as senhoras mais antigas agrafam argolas coloridas; e à nossa beira está Conceição Rafael, com a tarefa mais complicada – atar a flor ao arame.

“É a parte mais difícil é o arame. Atar isto custa um bocado”, diz-nos sem hesitar, enquanto demonstra como se faz. Mais conhecida por São, dizem as senhoras do grupo que é a chefe, competência que a própria nega, admitindo que aqui trabalham todos para o mesmo. “Elas dizem que eu sou a chefe mas não sou, somos todas iguais. Eu sozinha sem elas não faço nada”, admite. “E nós sem ti nada fazemos”, responde uma das senhoras ao fundo.

Desde o início de março que o grupo se juntou para preparar as flores, laços e argolas para decorar uma das ruas da vila. Imagem: Ana Rita Cristóvão | mediotejo.net

Conceição e as cerca de 20 senhoras (às quais se juntam também nesta altura alguns jovens) reunidas na antiga Escola Primária Adães Bermudes pertencem ao grupo de Montalvo do projeto de solidariedade “Sorrisos Entre Letras”. Duas vezes por semana, à segunda e à quinta-feira, juntam-se no mesmo espaço para tricotar brinquedos, cachecóis, gorros em croché ou lã com o objetivo de os doar às crianças internadas nos serviços oncológicos do IPO Lisboa e, mais recentemente, também aos serviços de Maternidade e Pediatria do Centro Hospitalar do Médio Tejo.

Um projeto que é dinamizado pela Câmara Municipal de Constância, através da Biblioteca Municipal, e pelas Juntas de Freguesia, e que atualmente existe em todo o concelho, com a adesão recente da freguesia de Constância ao projeto em março deste ano.

Mas nos últimos tempos o croché foi colocado em stand-by para dar resposta a um desafio maior: o de decorar uma das ruas da vila para as Festas do Concelho e da Nossa Senhora da Boa Viagem.

Uma senhora de 80 anos faz argolas coloridas que irão decorar uma das ruas da vila. Imagem: Ana Rita Cristóvão | mediotejo.net

“Elas têm muito boa vontade, são muito bem-dispostas (…) Havia uma rua que não tinha quem a enfeitasse, o Largo do Olival, então sugerimos a estas senhoras que fizessem as florzinhas para enfeitar. Juntaram-se estas senhoras de Montalvo com a mesma iniciativa que existe em Santa Margarida e estão todas a fazer flores para enfeitar esse largo. Pela mostra, vamos enfeitar provavelmente o Largo do Olival e a Rua do Olival também, porque estão fartas de trabalhar e provavelmente vão sobrar flores”, diz-nos com um sorriso no rosto Helena Roxo, vice-presidente da Câmara Municipal de Constância.

A acompanhar de perto o processo, e tendo já inclusive metido também a mão nas flores, a responsável da autarquia assume que o trabalho feito pelas voluntárias tem superado as expectativas. “Completamente. Sinceramente, já estava à espera que elas dessem tudo e mais um bocadinho delas. Está lindíssimo!”, exclama, constatando que a população está “ávida de festa e de sair de conviver”.

Vaso de flores feitas pelas senhoras do “Sorriso Entre Letras” para decorar a vila. Imagem: Ana Rita Cristóvão | mediotejo.net

“É muita azáfama mas quando se trabalha por gosto não cansa, e é verdade. Queremos é que isto, não só para nós como para os outros, seja bem visto e possam usufruir do nosso trabalho”, acrescenta a vice-presidente da autarquia constanciense.

O desafio foi recebido pelas senhoras do projeto de braços abertos, e os momentos de convívio e boa disposição compensam as dores de braços que se fazem querer sentir. Sonhos, rabanadas e demais fritos, chá, café ou vinho do Porto, cada uma traz um petisco e quando a chefe manda todas param para recarregar energias, dar dois dedos de conversa e umas gargalhadas.

“Juntamo-nos aqui, fazemos sempre uma paródia, trazemos um bolinho, um chazinho, uma garrafinha do vinho do porto, é um convívio”, conta-nos Conceição Rafael.

“Em casa é que é para trabalhar, aqui é só para a brincadeira e para comer”, acrescenta uma das senhoras do grupo, Susana Milagaia, que em tom de brincadeira confessa que a melhor parte “é a da comida”. “Eu hoje só saio daqui quando isto estiver tudo despachado de cima da mesa”, afirma, soltando risos por toda a sala.

Convívio, boa disposição e comida não falta durante a confeção das flores. Imagem: Ana Rita Cristóvão | mediotejo.net

Mas depois da pausa, é hora de voltar ao trabalho – que muitas vezes ainda sobra para levar para casa. Desde o início de março, altura em que começaram a fazer as decorações, até ao fechar do mês, foram cerca de 800 as flores feitas, às quais se junta mais um laços extra que vão servir para decorar a ponte junto à Câmara Municipal.

A tradição manda que sejam de papel mas este ano, à semelhança do que já aconteceu em anos passados, as decorações estão a ser feitas maioritariamente em plástico, e Helena Roxo explica-nos o porquê: “Há muitas coisas que tinham sido compradas para 2020 e que não tinham sido utilizadas, portanto tentámos comprar o menos possível. Havia muito plástico e este ano tentou-se recuperar tudo o que havia. A ideia é no futuro voltar ao tradicional, ao papel”.

A ideia agrada a Balbina Lopes, a senhora mais crescida que existe no grupo de Montalvo, de 82 anos. “Gosto mais de fazer em papel, mas o plástico é melhor para a chuva”, constata.

É uma das duas senhoras que está a fazer argolas coloridas, estas em papel. Fazer decorações para as festas está-lhe no sangue, não tivesse sido ela a responsável por fazer as flores da responsabilidade da Casa do Povo de Montalvo durante mais de três décadas. “Quando havia festas eu sempre é que enfeitava sozinha”, diz-nos.

Balbina Lopes tem 82 anos e junta-se ao grupo de Montalvo do projeto “Sorriso Entre Letras” para ajudar na confeção das decorações. Imagem: Ana Rita Cristóvão | mediotejo.net

Hoje, já com a vista cansada e com os braços a quererem dar parte fraca, Balbina continua a esforçar-se por participar na tradição, e não esconde a paixão por fazer flores, mas flores “pequeninas”.

Desta vez, calhou-lhe fazer argolas, e a senhora fá-las com a mesma dedicação e compromisso com que faria uma flor, porque aquilo que a move, como a todo o grupo, é a alegria de poder voltar a ver as ruas floridas e bem aprontadas para ver passar a procissão de Nossa Senhora da Boa Viagem e para ver a reação dos visitantes que, com o espanto no olhar, apreciarão embevecidos esta tão única tradição.

Descubra um pouco mais sobre o ambiente que se vive na preparação das decorações para uma rua florida nesta fotogaleria

Abrantina com uma costela maçaense, rumou a Lisboa para se formar em Jornalismo. Foi aí que descobriu a rádio e a magia de contar histórias ao ouvido. Acredita que com mais compreensão, abraços e chocolate o mundo seria um lugar mais feliz.

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