O artista plástico Norberto Nunes coloca a questão: “Quem ousa raptar os clássicos de forma furtiva, ficar com eles durante algum tempo e acabar por devolvê-los com a maior das inocências?” Porventura o próprio, que inaugurou na Casa-Memória de Camões, em Constância, no dia 9 de junho, a exposição ‘E vós, Tágides minhas’ que, até há poucos dias, esteve patente no Museu Nacional dos Coches.
O autor, que pegou na obra de Camões pelo lado mitológico, concebeu e executou um conjunto de pinturas alusivas aos dez cantos de ‘Os Lusíadas’, a que associou esculturas sobre a obra de Luís de Camões, obtendo, assim, um conjunto harmonioso de conteúdos e cor, cuja apresentação “muito orgulha” a Casa-Memória de Camões, agora de “cara lavada” interior e exteriormente, como disse o presidente da direção.

Em declarações ao nosso jornal, Máximo Ferreira, falando das dinâmicas atuais e futuras da Casa-Memória de Camões, definiu “em primeiro lugar ter património visitável, quer dizer, ter bom aspeto para as pessoas terem vontade de visitar”.
A Casa-Memória de Camões foi construída há cerca de duas décadas, lembrou, “com muito esforço e dedicação, com um objetivo que 20 anos depois não pode ser concretizado como foi pensado: os tempos mudaram, a forma de comunicar mudou. Achámos que era o momento” de abertura ao público.
A ideia que reinou durante muitos anos foi a de que a Casa-Memória só abriria ao público quando estivesse toda completa, com a parte do museu criada. O projeto ficou dependente de apoios do Ministério da Cultura, várias promessas foram feitas mas, de governo em governo, tudo foi sendo adiado. “Era de facto um sonho interessante mas que os últimos 20 anos têm mostrado que não é concretizável, pensamos nós”, afirmou Máximo Ferreira ao mediotejo.net quando assumiu em 2022 o cargo de presidente da direção.
E em dia de Pomonas Camonianas foi o momento, quando se aproxima a data dos 500 anos do nascimento de Camões, “de lavar a cara e abrirmos a Casa”, explica, deixando a promessa de “tudo fazer” para prolongar o momento, “com uma exposição extraordinária” e outra “com a ligação ao público, com pessoas que são pais de crianças que estão hoje nas Pomonas Camonianas onde eles também já estiveram”, disse, referindo-se à exposição ‘A memória da tradição’ inaugurada no mesmo dia pelo Agrupamento de Escolas de Constância, sendo representativa do espólio que possui de trajes de época.



A mostra inclui ainda um vídeo com memórias dos últimos anos das Pomonas e os respetivos cartazes, desde 2009 a 2023. No fundo, como explicou a diretora do Agrupamento, Olga Antunes, “uma retrospetiva da memória da Escola em termos de Pomonas Camonianas”. Expostas estão ainda quatro fotografias identificativas da comunidade durante as Pomonas, no sentido de “chamar a atenção para um trabalho que tem sido consecutivo, ao longo dos anos”.
Segundo Máximo Ferreira, Camões apresenta-se assim também como “o veículo” para a valorização do património, literatura, vontade de estar, de aprender independentemente da idade”.
Agradado com a “exposição magnífica” e num edifício renovado, o presidente da Associação Casa-Memória de Camões afirma que tal condição cria “responsabilidade. No futuro temos de manter esta Casa viva, como já temos agora”.
Isto porque a Associação vai colocar em prática, em conjunto com o Agrupamento de Escolas, no próximo ano letivo, os alunos tenham ali alguma “atividade regular”. Além disso, a Associação pretende pedir ao Ministério da Educação – pedido já realizado no passado sem sucesso – que coloque na Casa-Memória “um docente na área de letras que permita a elaboração de alguns textos a partir de documentos que temos aqui, catalogar e produzir algumas coisas” que despertem a curiosidade do público.
Novidades ainda na biblioteca e a garantia da continuidade das tertúlias de poesia. Há igualmente a ligação ao Centro de Ciência Viva de Constância, com o projeto ‘Astronomia dos Lusíadas’ no planetário, onde se simula a viagem de Vasco da Gama. “As ideias são muitas”, embora “poucos” braços para as colocar de pé, manifestando, ainda assim, “vontade” de colocar as ideias em prática.

Quanto à exposição ‘E vós, Tágides minhas’, fica para já por tempo indeterminado na Casa-Memória de Camões. “Que fique pelo menos até ao próximo ano”, será uma boa notícia para Máximo Ferreira.
Por seu lado, o artista Norberto Nunes afirmou ter sido com “surpresa e muita alegria” que trouxe a exposição a esta Casa. “É o lugar certo! E numa Casa superior àquilo que esperava. Estava à espera de uma casa antiga e afinal está bastante moderna”, confessou, durante a inauguração.
A mostra “ficará o tempo que for necessário, que eu possa deixar ficar e que a Casa-Memória Camões esteja interessada em ficar com ela”.
Independentemente do tempo que fique em Constância, o que faz feliz o artista plástico “é trabalhar para as pessoas verem e agradar com aquilo que consigo fazer”.

Desenhador, ilustrador, realizador e pintor, Norberto Nunes coloca em tudo o que faz a mesma inquietude. Nascido em 1942, na Beira Litoral, acaba por, ao longo da sua vida, viver cidades, países e até continentes diferentes. Hoje, reserva às suas obras a grande vontade de nunca parar e estas, para além de Portugal, têm viajado inúmeras vezes para lugares como Paris, Roma, Madrid, Nova Iorque, Barcelona, Recife, Fortaleza, Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro.
A exposição ‘E vós, Tágides minhas’ nasceu numa homenagem aos 450 anos da primeira edição de ‘Os Lusíadas’ numa explosão de muitas cores, formas e combinações. Uma obra na qual os grandes heróis sussurram segredos a outros mais esquecidos pela mitologia e, mantendo o maior respeito e admiração pela obra mãe, geram milhares de novas conversas. Porque são dez os grandiosos cantos de Camões e são dez vezes dez as pequenas histórias que aqui se contam.




A maior peça – em tamanho – é a soma de dez telas com aos dez cantos de ‘Os Lusíadas’ onde, tal como na obra de Luís de Camões, se começa por invocar o Concílio dos Deuses que decidirão sobre a ajuda aos portugueses na jornada dos Descobrimentos. Estes, que já se encontravam no oceano Índico, no momento, acabam mesmo contra a vontade de Baco a ser ajudados por deus e ninfas que lhes proporcionam ventos brandos e melodias. Já no segundo canto, os mesmos deuses impedem que a frota portuguesa caia nas mãos inimigas dos mouros em Mombaça.
Como se sabe o canto III é dedicado a Inês de Castro, um dos episódios mais marcantes da história nacional. No canto IV, podemos observar o ‘Velho do Restelo’ que simboliza todos aqueles que ainda hoje auguram maus presságios e que surgem sempre que alguém ousa desafiar o desconhecido.
Segue-se o Adamastor, uma personificação do Cabo das Tormentas e da passagem do ocidente para o oriente. É também uma visão, uma superstição, uma alucinação mas acima de tudo uma ode à coragem dos navegadores pois representa o temor do desconhecido. É o triunfo sobre os próprios medos.
Entretanto Vasco da Gama chega à Índia, e surge uma tela sobre encontros e desencontros, conversas com o Samorim de Calcutá bem como de uma análise sobre os objetivos da viagem e das suas verdadeiras motivações.
Por fim a Ilha dos Amores, que representa a recompensa a que todos os heróis têm direito e a narrativa da missão bem sucedida. O X canto encerra o final da epopeia e o regresso à pátria, onde os feitos de todos os navegantes serão assinalados em monumentos eternos.
A exposição conta ainda com outras telas, um jogo de xadrez, dez guitarras portuguesas que à semelhança do painel, cada uma delas tem pintado um canto, um prato em porcelana e três esculturas.

Presente na inauguração, entre outros ilustres convidados, esteve o presidente da Câmara Municipal de Constância, Sérgio Oliveira. “O interior da Casa não parece o mesmo”, reconhece, dizendo ser este evento “o primeiro passo” da abertura da Casa. “Tem valor e é importante, mas merecemos mais atenção por parte da administração central”.
Sendo uma Instituição de Utilidade Pública, teve o seu Interesse Cultural reconhecido em 2019. Sérgio Oliveira considera que o Estado central deve “apoiar a Câmara Municipal e a Associação Casa-Memória, que é proprietária deste edifício, com todas as condições para que possa funcionar”.
Falando na projeção do concelho “em termos de destino turístico, cultural e de estudo da obra camoniana é muito importante para Constância ter a Casa-Memória em funcionamento”, reforça.
Fundada por Manuela de Azevedo em 1977, Associação Casa-Memória Camões tem por objetivo principal consolidar a ancestral relação de Constância com a memória de Camões.
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