Somos o “povo que lavas no rio” embora muitos de nós já não se revejam neste poema. Ainda me lembro, muito lá atrás, de ir à ribeira que atravessa o Castelo (de Mação) com a minha avó Lurdes lavar roupa. Era um processo lindíssimo. Ia-se à ribeira, perto de casa, e lavava-se a roupa com a mais pura das águas. A imagem que me ficou é da roupa a corar ao sol. Sabem, ensaboada e estendida por aquele chão de erva ao sol que tinha, creio, a nobre função de corromper a sujidade das roupas e as devolver à brancura. Passava-se novamente a roupa pela água, corrente e selvagem e ficava perfeita. Como perfeita é esta recordação que me veio amiúde à memória na semana que terminou.
Isto porque tornámos uns dias de férias num roteiro despretensioso de rios e ribeiras. Levámos os nossos filhos ao encontro da água doce, na criação de doces memórias e constatei que ficaram rendidos aos espaços pouco transformados, naturais, como as ribeiras, sem peneiras.
Somos o “povo que lavas no rio” embora muitos de nós já não se revejam neste poema que Amália cantou e eternizou, para que não nos esqueçamos da importância dos rios na nossa história. Acreditem que certos dias foi difícil tirá-los de casa. Mas depois ficaram rendidos. E nós também, o que prova que é muito bom voltarmos onde já fomos felizes.
Em miúda os fins-de-semana no verão eram de rio ou ribeira, mais a manta, a cesta da comida e a geleira da bebida. Depois era estar, nadar, chapinhar. E crescer.
Este ano optámos por ficar, neste interior que tantos procuram e de onde tendemos a sair, para descansar. O que é ilusório, porque voltamos cansados, embora cheios de experiências e memórias novas, que fazem falta. Este ano optámos por ficar porque os espaços onde costumamos ir, as viagens que costumamos fazer, o sair daqui, da nossa “redoma”, não nos suscitou vontade. Ficámos, estivemos e saboreámos de outras formas o nosso interior, Mação e a região.
Fomos às linhas de água que nascem em Mação e que furam a terra desde tempos de que não há memória e correm livres criando quadros perfeitos de água, verde e paz. A mais nova chama-lhes “praias de água preta”, do forro escuro das pedras cheias de tempo, limo e silêncio. Os rapazes cobraram promessas de voltar. Chega a ser estranho, não é? É que está tudo aqui.
Esta semana fomos pelo Tejo, num engenhoso barco movido a energia eólica até Almourol. Viagem bonita, imagem serena, barco silencioso e o Castelo mais a sua história ao fundo. Não ouvimos a lenda mas eu sabia-a e contei-lhes. A mais nova procurou reis e princesas e assumiu que “as princesas estavam escondidas”, as marotas. Já eles pensaram nas guerras ali travadas, se teriam morrido ali homens, naquele chão que pisavam, o espanto.
Quase que custa a crer que os pequenos portos que o Tejo ainda guarda foram em tempos espaços vivos, de comércio, ou que barcos transportavam mercadorias nestes rios hoje tão calmos. Alimenta-se-lhes a imaginação. Já no regresso alimentámos gansos enquanto o Rio, refrescante, nos ajudava a recuperar da tomada de assalto ao Castelo, das histórias e do calor. Vimos milhafres e patos bravos.
Várias pessoas com quem tenho conversado, algumas que tenho entrevistado, espantavam-se quando eu dizia que não conhecia o Castelo de Almourol. Meus amigos, já está. E a verdade é que já o conhecia, só nunca lá tinha estado. E é este exercício, de descoberta de um espaço que habitamos e do qual temos noção, que nos cumpre fazer. Conhecer.
Num outro dia, depois de um almoço de sardinhas divinais, as melhores dos últimos tempos, fomos ao Zêzere ao encontro de um encantador Lago Azul. Imagem perfeita, água quentinha mas demasiadas placas de “acesso exclusivo” que nos desgostaram e até os miúdos torceram o nariz. Ainda assim, tanto rio, tanta cor, tanta margem para crescer, tanto espaço verde, natural. Tudo aqui tão perto.
Este ano não fomos à praia só porque sim, optámos por ficar e foi vê-los, a jeito de “bandos de pardais à solta, os putos”, enquanto lhes oferecemos história, natureza, água doce e o porquê de sermos o “povo que lavas no rio”. Uma semana de descoberta e paz. Se nos cansámos? Bem, um dos rapazes já nos perguntou: “para a semana já vão trabalhar, pois vão”?!…
Somos o “povo que lavas no rio” embora muitos de nós já não se revejam neste poema mas é aos rios e ribeiras que muitos vêm e gozam merecidas férias. Todos sabemos que as aldeias ganham vida, o interior ganha gente, o comércio ganha fôlego e a água devolve paz.
O segredo, juro-vos, é que esta paz não se consegue em mais lugar nenhum. É aqui, no interior, no nosso pedaço de Portugal. Que bom que este ano, apesar dos pesares, optámos por ficar por cá! Uma maravilha!