Foto: Vera Dias António

Primeiro dia de agosto. Dia de muitas coisas para muita gente. O meu começou cedo e em grande. Tive, logo pela manhã, a honra e o prazer de apresentar um livro. Mais um livro. Só um livro. Podem percebê-lo como quiserem. Mas na verdade não é só mais um livro. É um livro que encerra muitas coisas boas. O sonho de quem o escreveu, a Lurdes Vicente. E é mais do que um livro pois permitiu o resgate de histórias, da história de uma aldeia em particular. Queixoperra, concelho de Mação.

O livro da Lurdes foi até onde começou, ainda sem o saber, a escrever, pelo que se intitula “A casa da minha Avó” – Histórias de ontem, contadas hoje, para que vivam amanhã.

Não é um romance, nem um policial ou um livro de mistérios. É um livro de histórias reais pelo que é tudo isto e muito mais. Gosto tanto, mas tanto, quando alguém se atreve a recolher a história da sua terra, do seu sítio, das suas gentes e as eterniza em livro.

A Lurdes Vicente gosta, desde miúda, de ouvir contar coisas aos antigos. Tudo começou em criança, nos serões que se passavam à lareira, antes de outras distrações. Foi ali, muito em casa dos avós, que entrou neste mundo de histórias fantásticas, de medos, bruxas, a própria história da terra. Ficou-lhe este gosto. E aos 61 anos compilou as várias memórias que lhe foram passadas, escreveu outras tantas de pessoas que a marcaram e que recorda da sua infância ali na terra. E deu-lhes vida no seu livro. Mais as curiosidades, os factos interessantes, as bonitas tradições, e até a história das bodas de casamento. Está lá tudo, receitas incluídas.

Que bom seria se todas as aldeias tivessem quem lhes resgatasse a história, para que não se perca, para que os mais novos a conheçam, a história, as histórias, o maravilhoso património imaterial de cada local. Que é sempre único e especial. Foi com esta vontade, de passar estes saberes aos mais novos que a Lurdes dedicou o livro às suas quatro netas. A par da sua mãe e avó.

A Lurdes é uma sonhadora, mas daquelas ávidas em dar forma aos sonhos. E só por isso já teria o meu respeito. Mas a Lurdes tem tido uma vida de luta, de entraves, mas se não pode hoje, amanhã será um novo dia e não se esquece do que quer.

Foi assim com a escola de onde se viu sair após a quarta classe pois já tinha braços de trabalho para ajudar a família. Tinha vontade de mais estudos e o facto é que, ao longo dos anos, quando pode e teve oportunidade, alcançou o 12.º ano. Eu tenho para mim que um dia ainda se atreve na universidade, talvez lá para a reforma. Dos muitos trabalhos que teve, todos os que o campo obriga, mais a recolha da resina e tantos outros, a Lurdes é hoje um dos rostos da Biblioteca Municipal de Mação.

Um dos capítulos é dedicado à associação local onde tem tido um papel importante e uma participação ímpar. Na verdade, o lucro da venda do livro reverte para o Centro Recreativo e Cultural de Queixoperra, por quem a autora nutre grande estima, por tudo o que representa para a Queixoperra. Para que possam fazer mais e melhor.

A Lurdes foi-se fazendo enquanto caminhava. Sempre com foco, com atitude, com determinação. Com o exemplo e a companhia de mulheres fortes, destemidas, bravas, das arrojadas. Sem querer o mal do próximo, mas numa busca pelo seu bem pessoal. E quem tem amor próprio tem maior capacidade de amar o próximo.

Neste modo de ser, moderna, informada, evoluída, vaidosa, cuidada, a Lurdes tem ao mesmo tempo uma alma velha, que guarda o passado, as histórias, as memórias, o saber antigo. Faz parte da Lurdes. Temos em comum o gosto e a vontade de que se preserve o saber antigo e foi muito por aí que a Lurdes me pediu colaboração para montar o seu livro. E foi um enorme prazer.

Tenho esta ideia da Queixoperra, de ser uma terra em que é notório o amor das pessoas ao sítio. E estava lá muita gente para conhecer o livro da Lurdes. Que guardem este livro como um tesouro, parte da alma coletiva local.

A Lurdes, nervosa mas feliz, teve muita gente que tem no coração ali, na apresentação do seu livro, família e amigos. Chamaram-na corajosa, elogiaram-lhe o feito, o exemplo, a dedicação, houve alguma emoção e choro. Porque as pessoas gostam da Lurdes e gostam que tenha atingido este sonho. E gostaram do livro, de certeza absoluta.

O último capítulo do livro foi uma artimanha muito bem montada pois nem a autora o conhecia. Aliás, desconhecia completamente as últimas três páginas do livro. Porque foi uma surpresa que a sua filha Ana lhe quis fazer. Quis dizer ao mundo, a quem ler o livro e à sua mãe Lurdes, o enorme orgulho que tem nela. Aquela dedicatória final fez a Lurdes chorar, comovida, uma surpresa inesperada no seu próprio livro. Um mimo. Que mereceu. Que merece.

Na apresentação do livro, quem o adquiriu recebeu um saquinho de bolos que a Lurdes quis preparar. E muitos não souberam que a Lurdes fez cenário e autografou o seu livro “A casa da minha Avó” numa mesa e 3 cadeiras que resgatou precisamente da casa da sua avó.

A mesa, frágil e desgastada da idade, aguentou ali firme o pulso da Lurdes enquanto dedicou o seu agradecimento, livro a livro. Ao seu lado, sempre as netas, mimosas e orgulhosas. Na plateia os filhos, genro e nora, o seu Armando e tanta gente. Sobre a mesa, as fotografias da sua mãe Lúcia e da sua avó Conceição. Coisa bonita, como o coração da Lurdes!

Vera Dias António

Nasceu em Mação em 1978. Estudou em Abrantes, Lisboa, Bruxelas e voltou a Mação, para trabalhar. Licenciada em Sociologia trabalhou sempre na área da Comunicação, primeiro a social, depois a autárquica.
Resgatar memórias e dar-lhes uma quase eternidade é o seu exercício preferido. Considera que a recolha de memórias passadas das gentes de Mação e o apoio na construção das memórias futuras dos quatro filhos é a melhor definição de equilíbrio, o presente da vida.
Acredita, acima de tudo, que nada sabemos de ninguém até ter uma boa, mas mesmo boa, conversa. Porque o que parece, às vezes, não é. Falta-lhe conteúdo. Apresentará neste espaço quem são as gentes de Mação, sem filtros nem preconceitos, só histórias e essência, o verbo Ser das pessoas.

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