Carlos Mineiro Aires em Dornes, Ferreira do Zêzere. Créditos: mediotejo.net

Aos 70 anos, Carlos Mineiro Aires alcançou um dos cargos mais importantes no panorama nacional: lidera a Comissão de Acompanhamento que avaliará o trabalho da Comissão Técnica Independente, entidade responsável pela Avaliação Ambiental Estratégica das cinco localizações possíveis para construir o novo aeroporto que servirá a área de Lisboa. Ou seja, “a decisão será sempre política”, como disse ao nosso jornal, mas o estudo para indicar a melhor opção é da responsabilidade da equipa a que preside.

Com a função vem um aumento de notoriedade, apesar da longa carreira com cargos de relevo e de elevada responsabilidade, inclusivamente ter sido Bastonário da Ordem dos Engenheiros durante dois mandados (de 2016 a 2022) e de, atualmente, ser presidente do Conselho Superior de Obras Públicas, após um convite do Governo que o “surpreendeu”.

É ele que dá rosto à equipa que vai indicar a melhor localização para o novo aeroporto de Lisboa. Neste momento, encontram-se em estudo cinco localizações, sendo certo que a Comissão Técnica pode admitir mais ou diferentes soluções “com justificação”, de acordo com a resolução do Conselho de Ministros, datada de 14 de outubro.

“É um desafio irrecusável, daqueles desafios grandes. Espero conseguir levar a missão a bom porto e que no final do próximo ano – o prazo limite – os políticos tenham na mão propostas concretas, com informação financeira concreta e com informação de ordem legal e jurídica concreta. Porque a decisão final não vai ser desta Comissão. A decisão final vai ser sempre política. É para isso que os governos existem”, afirmou ao mediotejo.net.

Carlos Mineiro Aires. Créditos: Ordem dos Engenheiros, Região Sul, Santarém

Carlos Mineiro Aires manifesta-se consciente que tem em mãos uma tarefa “nada fácil, porque o prazo é curto para a quantidade de coisas” a analisar, sublinha. Contudo, considera ser o momento “de ver tudo o que é necessário e mais alguma coisa, de uma forma completamente isenta e transparente”. Para o presidente da Comissão de Acompanhamento, “as soluções que não tiverem pernas para andar devem morrer logo à partida, para não andarmos a perder tempo, e a seguir explorar, dissecar e estudar aprofundadamente as outras soluções”.

Assegura não ter hoje “qualquer opinião”. Mas toda a gente neste País tem uma opinião, como reconhece… “Já tive, era pública, eu era pró Alcochete por uma razão muito simples: era o único estudado. E mal fora se os engenheiros defendessem soluções que não têm estudos!”

Porventura dispensaria tal visibilidade nacional, por ser um engenheiro civil de atitude discreta, apesar de amante dos prazeres mundanos. Durante a entrevista ao nosso jornal, falou de como foi marcante no seu percurso o início de vida de “saltimbanco”, motivado pela profissão do pai, e de a família o ir acompanhando conforme as suas colocações. Aliás, começa por contar ter sido concebido nos Açores, especificamente na ilha Terceira, onde o pai, militar da Força Aérea, havia sido colocado. A família vivia em Angra do Heroísmo, onde nasceu a sua irmã.

Casado com uma engenheira, Manuela, pai de duas filhas, é um homem muito ligado ao seu distrito, Santarém – ademais foi naquela cidade que Carlos fez vários exames escolares –, com orgulho nas suas raízes rurais e confessa ter saudades dos tempos da sua juventude feliz, passada em Tramagal, a terra da mãe, onde está sepultada a sua família e onde quer também repousar eternamente. “Em vida tenho tido pouco tempo para ir” a Tramagal, refere, retorquindo que, não obstante, mantém ali os amigos e que, apesar de viver em Lisboa e das muitas tarefas profissionais, visita a vila sempre que pode.

Carlos Mineiro Aires (à direita) na sua juventude, no conjunto musical Os Órbitas, em Tramagal. Créditos: DR

Carlos Mineiro Aires nasceu a 29 de outubro de 1951 na Casa de Saúde de Abrantes, viveu em Tramagal até à segunda classe, depois viajou até Lourenço Marques, atual Maputo, Moçambique, país do qual saiu com 11 anos para regressar a Tramagal. Nessa época foi estudar para um colégio em Almourol, da Escola Prática de Engenharia, o Externato de Santa Bárbara, onde concluiu o 9º ano. Desse estabelecimento de ensino passou para o Colégio La Salle, em Abrantes, até à conclusão do ensino secundário.

Apreciador voraz de música, na sua juventude integrou conjuntos musicais – como ‘Os Órbitas’, de Tramagal, onde era viola ritmo, e a ‘1880 Village Band’ – e ainda hoje dá uns toques nas suas violas elétricas – tem 11, como confessa.

“Gosto muito de música e daquilo que é bom. Começando pelo grupo que mudou a música, os Beatles, Pink Floyd, Chicago, Emerson, Lake & Palmer, Simon & Garfunkel… é tão difícil encontrar música má naquela época. Era aquela altura em que comprávamos um disco e tínhamos 12 músicas boas, agora descarrega-se uma música… É diferente!”, lamenta.

Das memórias de infância em Tramagal, diz ter muito presente a caça aos pássaros. “Quando éramos miúdos vivíamos para três coisas: jogar à bola, matar pássaros e roubar fruta. Sendo que todos tinham fruta em casa… isto é o mais engraçado. Ninguém roubava fruta por necessidade. Era uma prática ‘desportiva’ que havia; saltar muros e roubar fruta. Era como nós nos divertíamos.”

Revela ter “muitas saudades” desses tempos. “No Tramagal, tínhamos a sorte de haver a Metalúrgica Duarte Ferreira, os filhos eram da nossa idade, convivíamos todos uns com os outros, eu e os meus amigos passávamos grande parte dos dias na casa deles. Tínhamos acesso a tudo o que era bom. Recordo com saudade aquela abertura e amizade que sempre houve com os filhos do engenheiro Octávio Duarte Ferreira. Lá na terra havia respeito pela família mas eles tinham as portas abertas. Ainda hoje sou amigo deles.”

Carlos Mineiro Aires. Créditos: Ordem dos Engenheiros, Região Sul, Santarém

Com o final de ciclo juvenil chegou a “aptidão às universidades”, ou seja, concorreu a três profissões distintas: “à Academia Militar, a Medicina e a Engenharia. Mas na altura estava convicto de que iria ser médico”, revela. Contudo, decidiu-se pela Engenharia Civil. “Hoje tenho alguma ponta de arrependimento em relação a isso”, confessa. Esse desvio na convicção deve-a à vox populli, ou à voz de um vizinho, se quisermos ser mais precisos. “Traçaram-me um cenário completamente negro do que é ser médico. Tinha um vizinho que trabalhava nos bancos hospitalares e disse-me: ‘Ah, menino Carlos, nem faz ideia onde se vai meter! Aquilo é um mar de sangue’. Mal sabia eu que na vida iria ter de lidar com ‘mares de sangue’ e com tanta coisa… o sangue é o que menos me impressiona! O que mais me impressiona é não ser capaz de ajudar as pessoas quando estão em dificuldades”, diz.

Iniciou a universidade no momento que começaram as agitações académicas em 1968, e como o pai havia sido colocado em Luanda (Angola), Carlos, então com 17 anos, decidiu ir também, ficando por África até aos 21 anos. “Foi das experiências mais ricas que tive. A universidade de Luanda era muito boa, o melhor computador do País estava lá, os professores eram todos de excelência, quase todos de cá. Para não irem para a frente da Guerra [Colonial], faziam uma comissão a dar aulas. Tinha laboratórios, não faltava nada e criaram-se grandes amizades. Coincidiu com a proximidade do 25 de Abril e na universidade já havia grande agitação. Em Angola havia os alunos confortáveis e alguns que tinham alguma consciência política e outra forma de ver as coisas. Começamos a despertar para situações, que achávamos normal, que deixaram de ser normal. Não foi com surpresa nenhuma que assisti ao 25 de Abril”, recorda.

O engenheiro conta que assistiu à chegada do MPLA a Luanda e que estava convencido ser angolano porque “me vendiam a conversa do internacionalismo proletário, que estávamos lá para nos ajudar uns aos outros. Era mentira! Uma vez um indivíduo negro, com quem me dava bem, disse-me que eu nem sequer tinha nascido em Angola e ainda por cima não era da mesma cor. Estava a discutir não a ‘angolinização’ dos quadros, mas a ‘negratização’ dos quadros. Apercebi-me, pela primeira vez, de racismo contra mim, uma coisa que nunca tinha feito em relação aos outros. Aquele individuo pôs em causa a cor da minha pele e, por causa disso, não podia ajudar Angola. Foi marcante!”, lamenta. No dia seguinte estava no aeroporto e regressou a Portugal.

Em Lisboa, terminou o curso no Instituto Superior Técnico, iniciando depois trabalho na área do saneamento básico. “Na altura deu-me grande gozo fazer abastecimentos de água e redes de esgotos. Fui colocado em Setúbal, corria o Alentejo todo. Depois a recompensa que nos davam era uma festa, matava-se um borrego, era engraçado!”, lembra.

Cerimónia de homenagem ao engenheiro Carlos Mineiro Aires, acompanhado pela sua esposa, Manuela, e por João Carvalho da Delegação Distrital de Santarém da Ordem dos Engenheiros . Créditos: Ordem dos Engenheiros, Região Sul, Santarém

Saiu de Setúbal, onde permaneceu durante uns anos, para Lisboa, especificamente para os serviços hidráulicos, mais tarde Instituto da Água, onde chegou a presidente. “Fiz coisas interessantes, o planeamento, os recursos hídricos, planos de ordenamento de albufeiras, tanta coisa. Foram anos muito ricos”.

Foi técnico e diretor do Gabinete de Saneamento Básico da Costa do Estoril, presidente do conselho de administração da SIMTEJO, grupo Águas de Portugal, empresa de saneamento da região de Lisboa. Entretanto foi convidado para assumir a função de presidente do conselho de administração da Metropolitano de Lisboa. Em 2006 voltou a Setúbal assumindo o cargo de presidente da comissão executiva do conselho de administração da SIMARSUL, também do grupo Águas de Portugal. Nessa época Carlos Mineiro Aires já era presidente do conselho diretivo da região sul da Ordem dos Engenheiros, tendo depois sido eleito bastonário por duas vezes, exercendo o cargo de 2016 a 2022.

Depois recebeu o convite do Governo para presidir ao Conselho Superior de Obras Públicas, o que o deixou surpreendido. “Nunca fui propriamente mole, e como bastonário até era conhecido pela assertividade das coisas que dizia, mas para surpresa minha convidaram-me para presidente do Conselho Superior de Obras Públicas, onde estou hoje, como aposentado, não recebo nada, uma coisa de que me orgulho muito, porque prefiro ter a minha liberdade do que estar a dizer que me pagam”, afirma.

Mas é uma situação que considera “injusta, porque no privado isso não se passaria”, ou seja, ter de abdicar da reforma para receber uma remuneração pelo cargo que desempenha. “Mas quem corre por gosto não cansa e eu gosto muito do que faço e para mim foi prestigiante o convite”, acrescenta o engenheiro.

Cerimónia de homenagem ao engenheiro Carlos Mineiro Aires, em Dornes, Ferreira do Zêzere. Créditos: Ordem dos Engenheiros, Região Sul, Santarém

Carlos Mineiro Aires foi homenageado pela Ordem dos Engenheiros (Região Sul/ Santarém), naquele que foi o Dia Distrital do Engenheiro, no passado sábado, 15 de outubro, em Dornes, Ferreira do Zêzere.

“Tenho uma proximidade grande a Santarém, à Delegação Distrital de Santarém e aos engenheiros que têm sido eleitos. Sou frequentador assíduo das festas que aqui se fazem. E como fiz dois mandatos como bastonário, é natural que quisessem homenagear o primeiro bastonário ribatejano”, referiu ao nosso jornal momentos depois da cerimónia.

No seu currículo constam ainda outros altos cargos, como presidente da Comissão Nacional Portuguesa das Grandes Barragens, da Comissão de Avaliação dos Impactes Ambientais da Barragem do Alqueva, ou presidente e vice-presidente do Instituto da Água (INAG). Quando o INAG foi extinto, passou a integrar os quadros da Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Foi igualmente diretor do Projeto de Controle de Cheias da Região de Lisboa, e é, desde 2020, conselheiro do Comité Económico e Social Europeu.

Carlos Mineiro Aires. Créditos: mediotejo.net

Questionado sobre o trabalho de que mais se orgulha no seu percurso profissional, responde ser aquele “que está para vir”. No entanto, refere como especial o saneamento básico na Costa do Estoril. “Passar de praias maravilhosas onde não se podia tomar banho, porque as águas estavam completamente contaminadas (e adoecia-se), e ver as praias a voltarem a ter águas de qualidade, foi realmente uma coisa fantástica. Foram anos com boas equipas.” Do Metropolitano de Lisboa também tem boas recordações, gostou de deixar a sua marca na construção de muitas linhas. “Houve alguém que certo dia disse com graça: ‘Um Mineiro no Metro, não me parece mal!’”.

Este Mineiro segue agora outros voos. Durante a cerimónia de homenagem em Ferreira do Zêzere, Luís Machado, presidente do conselho diretivo da Ordem dos Engenheiros da região Sul, frisou que o homenageado será “nos próximos tempos, o homem mais importante do País”, referindo-se ao papel que terá no futuro aeroporto de Lisboa – que em 50 anos teve 17 localizações possíveis mas nenhuma decisão concreta. Em 2023, talvez um Aires faça a obra do Aeroporto descolar.

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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