Cidade de Cádis Foto: Lugares de Memória

Quando os Fenícios a fundaram, uns 1100 anos antes de Cristo, aquele chão era uma ilha que depois a descida do mar e o efeito das ondas transformaram na península que hoje vemos. Nela se sucederam Gregos e Cartagineses, até que os Romanos a tomaram. Chamaram-lhe de início Gadira e por isso os seus habitantes continuam, ainda agora, a ser conhecidos por gaditanos. Deram-lhe, a seguir, o nome de Julia Augusta Caditana, de onde derivou o nome castelhano Cadiz por que se conhece e a forma portuguesa Cádis que usamos para a nomear.

Caído o império romano e passado o tempo dos chamados Bárbaros, foi cidade muçulmana com a chegada dos Mouros do Norte de África, até que Afonso X de Castela, no século XIII, a tomou para os cristãos. No tempo dos impérios coloniais assumiu um papel de grande importância, sobretudo no século XVIII, como porto do sul da Espanha, virado ao Atlântico, de onde lhe chegavam os navios que vinham das Américas e nele descarregavam as mercadorias que de lá traziam e que dali seguiriam para Sevilha e para Madrid. No tempo das invasões napoleónicas foi temporariamente dominada pelos franceses que reforçaram os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade que a sua ativa, próspera e aberta burguesia vinha perfilhando – e, em consequência, foi nela que, em 1812, no Oratório de São Filipe Néri, as Cortes redigiram e juraram a primeira constituição espanhola, a célebre Constituição de Cádis. Feitas as contas, são mais de 30 séculos de História, caldeada por tão diferentes povos, que sucessivamente lhe foram dando forma até chegar à maravilha que é no nosso tempo.

Em memória da primeira Constituição espanhola. Foto: António Matias Coelho

Cresceu muito a cidade no último século, sendo agora constituída por duas partes bastante diferentes, separadas (ou unidas) pelas monumentais Puertas de Tierra: a cidade antiga para o extremo da península e a cidade nova para o lado do istmo. A cidade nova não tem que ver, a não ser prédios e mais prédios, todos com à volta de dez andares, e a longuíssima praia, ao longo de toda a extensa e estreita língua de terra onde apenas cabem a via rápida, a linha do comboio e, mais recentemente, a ciclovia. Ao invés, a cidade antiga é um verdadeiro encanto, na harmonia do seu desenho urbano de ruas estreitas e construções à escala humana, sejam os palácios da velha nobreza e da burguesia gaditanas, sejam as casas dos bairros populares do Pópulo, o mais antigo de todos, de San Juan ou de Santa María, o espaço do flamenco que exuberantemente se manifesta. Sendo escasso o terreno, são estreitas as ruas que com frequência desembocam em surpreendentes praças de pequena dimensão, mas uma imensa graça: a Candelária, a Mentidero, a Praça das Flores ou a Praça da Catedral.

Homenagem ao flamenco no bairro de Santa Maria.
Foto: António Matias Coelho

Também há, aqui e ali, alguns edifícios de grandes dimensões, sendo a catedral o maior de todos, visível de muito longe para quem de barco se aproxima da cidade ou para os que a observam do lado de lá da baía. Obra do tempo do barroco, imensa e impressionante, é um testemunho que ficou da opulência do século de ouro de Cádis, o de setecentos, quando o porto da cidade recebia, em grandes quantidades, as riquezas que chegavam do outro lado do oceano. Quem visitar Cádis deve reservar uma hora inteira para apreciar a imensidão do interior da catedral, as inúmeras capelas e a cripta que guarda a sepultura de Manuel de Falla, notável compositor e pianista e filho ilustre da cidade.

Não muito longe (na verdade, em Cádis nada é longe…) fica o teatro romano, um dos maiores do império, descoberto apenas há uns 40 anos e só parcialmente escavado porque há edifícios erguidos e habitados sobre parte dele. Mas o que se pode ver dá bem a ideia da dimensão do anfiteatro e, com a ajuda do sugestivo vídeo mostrado aos visitantes, do que seriam os espetáculos apresentados naquele espaço e de como a sua organização espelhava e reforçava a rigorosa estratificação social do tempo do império, com um espaço para as mulheres, outro para os escravos, outro para os homens livres e outro ainda, o mais próximo da orquestra, para a elite local.

Quem vai a Cádis não pode deixar de fazer um passeio pelo Campo del Sur, a marginal virada ao oceano, e, a certa altura, seguir o empedrado que dela leva ao castelo de São Sebastião, águas adentro. À mão esquerda de quem regressa ao passeio, apresenta-se a pequena mas icónica e muito popular praia de La Caleta e logo a seguir surge o sítio ideal para se apreciar o pôr do sol, de uma beleza e uma calma indizíveis, a partir das guaritas do castelo de Santa Catalina.

Pôr-do-sol em Cádis, visto do Forte de Santa Catalina. Foto: António Matias Coelho

Cidade portuária, nela foram sendo erigidas, ao longo dos séculos, torres de várias formas e alturas para, a partir delas, se observar o movimento dos navios que chegavam e partiam. Ainda hoje se conservam várias dezenas. Delas, a mais alta, mais significativa e mais interessante é a Torre Tavira. O nome, dizem, não tem nada a ver com a Tavira do nosso Algarve, mas com o nome do último homem que do alto dela vigiou os navios que demandavam Cádis ou dela zarpavam e que se chamava António Tavira (vá lá saber-se porquê…). No topo dos seus 45 metros há uma câmara escura que mostra aos visitantes imagens reais da vida lá em baixo, 360 graus em redor. E do seu terraço se observa, diretamente, o pulsar da cidade, aconchegada e harmoniosa no escasso espaço que a natureza lhe reservou.

Se se sair de Cádis pela imponente ponte da Constituição, inaugurada há meia dúzia de anos e longa de mais de três quilómetros sobre a baía, poderemos apreciar a cidade à distância, por exemplo das praias de El Puerto de Santa María. Nestes dias de quase primavera, o que veremos e nos encantará, do outro lado das águas calmas, é a pequena mancha branca do casario envolta no azul imenso do céu e do mar.

António Matias Coelho

É ribatejano. De Salvaterra, onde nasceu e cresceu. Da Chamusca onde foi professor de História durante mais de 30 anos. Da Golegã, onde vive há quase outros tantos. E de Constância, a que vem dedicando, há não menos tempo, a sua atenção e o seu trabalho, nas áreas da história, da cultura, do património, do turismo, da memória de Camões, da comunicação, da divulgação, da promoção. É o criador do epíteto Constância, Vila Poema, lançado em 1990 e que o tempo consagrou.
Escreve no mediotejo.net na primeira quarta-feira de cada mês.

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1 Comentário

  1. Sim é um grande Senhor que muito tem feito para dar a conhecer Camões em Constância e não só obrigada por nos ensinar tanto

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