Carmelinda, Marília e Hermínia são três das últimas mulheres que ainda conhecem os segredos dos teares tradicionais de Abrantes. Fotografias: mediotejo.net

Não é fácil encontrar tecedeiras no Souto. Uma terra em que, no passado, quase todas as casas guardavam um tear. Resiste um deles, a trabalhar na casa de Marília. Encontrámos outro em Bioucas, e um terceiro em Carreira do Mato. Para encontrar as últimas tecedeiras de Abrantes arriscámos ir às aldeias e fomos perguntando às pessoas que encontrámos na rua ou a mondar nos quintais. Trazíamos algumas referências, é certo. Mas lamentavelmente ouvíamos: “Não. Essa senhora já faleceu!”. Com o desaparecimento das tecedeiras desaparece igualmente a sua forma única de arte, bem como parte da história e identidade deste território.

Sem desistências, restava vaguear pela belíssima geografia com a esperança de encontrar alguém cuja vida fosse um lugar de memória e de informação sobre a arte de tecer.

A tecelagem manual da lã ou do linho, com prática na dobadoura, na urdideira e no tear, era uma arte que unia as mulheres que povoavam as aldeias da região Norte do concelho de Abrantes, e também uma atividade de sobrevivência. Hoje, a tecelagem é uma recordação do passado, embora duas das tecedeiras que encontrámos ainda façam “uns trabalhinhos” para a família.

A aldeia do Souto fica aninhada no arvoredo, encostada ao rio Zêzere. Na principal estrada da aldeia encontramos a casa de Marília Ferreira, 67 anos, de sorriso fácil e surpresa no rosto por alguém manifestar interesse pela tecelagem. “Quer ver o meu tear? Venha daí!”.

Marília aprendeu a tecer jovem, aos 19 anos, mas para aprimorar o saber, já passando dos 40, frequentou uma formação de tecelagem, que decorreu no Souto há mais de de 20 anos, com Ilda Gadelhas, do Pego, tendo como objetivo “dar uma ferramenta de trabalho” a pessoas desempregadas. Contudo, muitas das aprendizes deixaram de tecer quando projeto terminou.

“Aqui era tudo tecedeiras. A minha avó ensinou a minha mãe e nós… como éramos quatro irmãs, uma delas aprendeu com outra senhora e depois ensinou as restantes”, conta Marília.

Sendo uma atividade feminina, tradicionalmente a aprendizagem processava-se sob o olhar da “mestra”, da mãe, da tia ou de outra familiar, começando as aprendizes pelas pequenas tarefas, como por exemplo encher canelas ou cortar trapo para formar os novelos do chamado trapilho. As formandas – para empregar um termo atual – chegavam ao tear por volta dos 15 anos.

A tecedeira Marília. Tecelagem no Souto, em Abrantes. Créditos: mediotejo.net

Numa divisão da casa, concebida para arrumos, o tear aguarda que Marília tenha horas vagas para enrolar a teia de fios de algodão que depois se cruzam com outros fios, formando o tecido onde aparece o desenho. “Isto é mais para me entreter no inverno, que agora tenho as hortas e ainda trabalho no lar”, refere. O tear da avó herdou-o a irmã mais velha e aquele foi comprado posteriormente, a outra tecedeira. Uma particularidade no Souto: as tecedeiras entram no tear por baixo e trabalham em pé.

Ainda sem o desenvolvimento do comércio que chegou algumas décadas depois, a tecelagem era “o ganha pão” das mulheres. Naquele tempo, os homens “trabalhavam fora” e elas nas teias. “Tínhamos muita freguesia. Cheguei ir daqui [do Souto] a pé, levar e buscar teias a Milreu… ainda passávamos para lá. Chegávamos aos Casais da Pereira, corríamos São Domingos, Montalegre, Codes… saíamos de casa às quatro da madrugada carregadas de teias e chegávamos a casa às onze da noite carregadas de novelos. E quando não tínhamos novelos – íamos também para a Chainça, para o Paul –, descíamos à charneca do Vale da Cerejeira e enchíamos a bolsa de pinhas para pensarem que eram novelos”, lembra a rir.

Além do dinheiro que ganhavam para a casa com a venda dos tecidos, se tivessem sorte a “merenda” ainda era boa. Ou seja, os clientes ofereciam “alimentos para a casa, feijão, enchidos, carnes, porque matavam porcos, ali para os lados de Milreu. Aquele enchido era tão bom!”, lembra.

A superstição ditava que o chiar do tear significava “uma merenda boa” que viria com aquela teia. “E havia pessoas que davam dinheiro. Sabiam que este trabalho não era muito bem pago e além do que pedíamos davam-nos mais qualquer coisa”.

Antigamente os rebanhos no Souto eram muitos, por isso transformava-se a lã, mais tarde tingida, em fio, com o objetivo de costurar as roupas de vestir. Para o enxoval semeava-se o linho, também aquele, depois de fustigado e amaciado pela água do rio, fiado e trabalhado, era costurado em casa. Dele nasciam lençóis, toalhas, colchas, bem como as ditas vestimentas.

A atividade de tecelagem era por isso artesanal e completamente manual, praticada por mulheres simples, mas notáveis numa arte capaz de exprimir criatividade, alegria, bom gosto, sensibilidade e utilidade. De um tear rudimentar tiravam colchas, mantas, tapetes e outras obras, que eram, na maioria, peças únicas.

“Faziam saias de lã das ovelhas. A minha avó tinha uma saia grande que a tapava até aos pés, que punha pela cabeça para servir de xaile e até de chapéu de chuva. Aquele era um tempo muito pobre. Essa lã também era toda fiada, passada pela roca e tingida. E ainda se vê as saias nos ranchos folclóricos”, garante.

No tear, de pé, apoiando as costas numa tábua colocada na horizontal, designada cédeira, Marília trabalha numa passadeira. Quanto tempo demorará a acabar esta passadeira não sabe dizer – sabe que para cada estrela talvez necessite de uns quinze minutos. Mostra como se faz, com dedos rápidos, movendo os fios, ao mesmo tempo os pés trabalham nos pedais, um de cada vez, passa o fio e bate o pente, repetindo o movimento para nos mostrar, tendo de repetir muitas outras até acabar.

A arte de tecer requer concentração, por ser bastante complexo. O tecido é gerado por fios entrelaçados segundo regras exatas e contagens milimétricas. “Enfiamos 12 fios numa tarqueira, cada 12 fios é um ‘cabestilho’, temos um quadrado no chão com 12 quadradinhos, metemos um novelo em cada quadradinho, enfiamos e passamos para a urdideira”, procura explicar. A peça que vimos teria uns 33 ‘cabestilhos’, mas pode ser feito com 22 num pente mais fino, ou com 42. O pente destina-se à separação uniforme dos fios e a bater a trama contra o tecido entretanto estruturado, dando-lhe densidade.

Tecelagem no Souto, em Abrantes. Fotografia: mediotejo.net

Trabalha num tear com três pedais, que no Souto ganharam o nome de ‘apinhas’. Pressionando um pedal com um pé, descem os fios de um liço – no qual os fios de algodão estão enfiados e ligados aos pedais através de cordas –, abrindo a teia onde Marília introduz o fio da trama, neste caso grosso e colorido. Carregando no outro pedal enrevesam-se os liços e vai dando forma à peça.

A tecedeira passa os fios de um lado para o outro, o algodão enrolado numa canela, inserida numa lançadeira, bate cada fio com o pente até ficar preso ao que já está tecido. A agulha põe em relevo o desenho de uma estrela em cordão de lã. Pelo meio esclarece que ao tecelagem do Souto é diferente das outras da região, assemelhando-se à de Almalaguês, perto de Coimbra.

Naquele espaço de tecer, além de Marília, trabalha o marido ou alguma vizinha, que para montar a urdidura ou teia no tear são necessárias três pessoas: uma sentada no chão a segurar a teia, outra pessoa a puxar para enrolar o pau do órgão e outra a segurar para espalhar o algodão “para não ficar nem muito junto nem muito espalhado”, explica.

Tecelagem no Souto, em Abrantes. Créditos: mediotejo.net

Imagens religiosas como a cruz de Cristo, recordações de Nossa Senhora do Tojo ou a fotografia do Papa João Paulo II estão penduradas nas travessas de madeira do tear, tal como ferraduras que outros tempos calçaram cavalos, como se fossem amuletos para garantir a boa sorte e um trabalho sem grandes enleios ou desmanchos.

Nascida e criada no Souto, Marília nunca deixou de tecer, apesar de ter outras profissões. “Gosto muito deste trabalho, porque no tear distraio a cabeça, mas sempre foi para as horas vagas. Nunca parei por isso nunca esqueci, porque a conta nem sempre é fácil. Mas o mais difícil é o desenho – numa colcha, por exemplo, colocar a cercadura à volta. Os tapetes é sempre a andar”, revela.

Agora, não há quem queira aprender. A tecelagem para “dar alguma coisa” obriga a muitas horas de isolamento no tear “e esta gente nova se calhar não quer estar fechada… é mais telemóveis para as horas vagas”, atira. Além do mais, os materiais são muito caros. “A lã dos novelos é cara, a dos Arraiolos também é muito cara, mas gosto mais desta, que é mais macia. O algodão… já nem sei se há à venda, na altura tínhamos a fábrica de Torres Novas aberta. E depois é preciso espaço para montar os teares… imagine para montar 10 ou 12 teares… nem sei se há aqui espaço para isso”, observa lamentando a perda da arte.

As tecedeiras trabalhavam por encomenda, muito por não terem o tear como um trabalho regular, tendo de trabalhar no campo, designadamente nas vindimas, onde o resultado da jornada era mais generoso. Atravessavam a pé os campos até chegar ao Zêzere, passavam para a outra margem de barco para trazer algodão, levar encomendas aos clientes fixos e receber outras.

Em Bioucas encontrámos Carmelinda Natálio. Toda a vida foi tecedeira, aprendeu com a mãe, e tinha 15 anos quando iniciou a aprendizagem no tear. “Não se podia ir aprender muito cedo porque exige esforço”, justifica. Hoje tem 83 anos e já não tece.

Mas teceu muito, de dia e de noite, vendeu muitas peças para além do rio Zêzere, para os lados da serra de Tomar, caminhavam com as mantas à cabeça. O seu tear, embora montado, encontra-se parado. A coluna não permite que se dobre, naquela ginástica de entrar no tear por baixo. Além disso, os dedos ganharam nova forma, que impede a insistência na tecelagem. Hoje dedica-se à orquídeas que florescem no quintal.

A tecedeira Carmelinda. Tecelagem em Bioucas, Abrantes. Créditos: mediotejo.net

Normalmente os carpinteiros aptos a construir teares escolhiam nogueira, choupo ou cerejeira, sendo a primeira madeira a eleita, graças à resistência que apresentava perante o esforço exigido. O de Carmelinda é muito antigo, talvez com uns 130 anos. Do que se lembra, todas as mulheres teciam, “era uma maneira de viverem, de governarem a vida”. E antigamente “as pessoas aproveitavam tudo, até dos trapinhos velhos faziam mantas para as camas, passadeiras. Praticamente todas as casas tinham um tear”, recorda.

Se é uma atividade difícil? A tecelagem “tem as suas regras”, por isso a aprendizagem demorava pelo menos um ano, iniciando “nas mantas lisas, passavam para o tecido da moda e por fim os bordados à agulha. Aprender a urdir, a apeirar, era preciso fazer contas para ter tudo centrado no tear”.

A tecedeira Idalina. Tecelagem em Bioucas, Abrantes. Créditos: mediotejo.net

Também em Bioucas, Idalina da Conceição António tem o tear montado para nele trabalhar uma senhora amiga. A mãe e as tias eram todas tecedeiras. Idalina, em criança, quando a mãe saía do tear metia-se lá, e de lá não saiu durante 70 anos. Agora tem 85 anos.

“Aos 13 já eu tecia. E se via hoje uma coisa, amanhã era capaz de a fazer. Hoje já não consigo mas ainda fiz 9 metros e meio de renda para uma toalha. Ainda tenho olhos para isso, uso óculos mas leio muitas coisa sem eles”.

Lamenta não ter contabilizado, ao longo do tempo, o número de mantas que teceu. “Mantas de cordão, de algodão branco. Lindas! Já estiveram em exposição. No tear fiz de tudo: naperons, toalhas, tudo o que as pessoas queriam a gente fazia”. As obras de qualidade, para uma clientela também atraída pelo que o tecer irradia de popular.

Tudo por encomenda, incluindo para construtores civis. “Lembra-se do J. Pimenta?”, pergunta, referindo-se ao grande construtor da segunda metade do século XX, que ergueu muitos dos bairros que fizeram a “Grande Lisboa”, e que era natural do Souto. “As mulheres do Souto teciam colchas para ele. Vendia os andares mobilados com as colchas. Ele comprava os trapos numa fábrica na Amadora e as tecedeiras faziam as colchas”, conta.

À semelhança das outras mulheres, também Idalina trabalhou no campo. No arroz, na Parrada; na vindima, durante 14 anos, em Tramagal; na azeitona, em Constância; lavou roupa em Lisboa; e até fez pão. Como tecedeira, Idalina conta ter trabalhado mais para a freguesia de Martinchel. As encomendas, como também lembram as outras tecedeiras, eram transportadas à cabeça. “Íamos levar umas e trazíamos outras, por aquelas casas. Era assim antigamente. Agora, se quisessem tinham de vir buscar e levar porque o mundo mudou”, diz a rir.

Sobrinhas tem seis e nenhuma quis aprender. “Agora já ninguém se interessa por isto. De vez em quando encontra-se no lixo roupa tecida no tear. As famílias deitam fora, não dão valor nenhum! Mas o dia de amanhã não se viu”, adverte.

Na Carreira do Mato encontrámos Hermínia Brás Antunes, que começou a aprendizagem, à semelhança das outras artesãs, aos 15 anos, em Tremoçal, na casa de uma senhora com quatro filhas, todas tecedeiras. Foi ali a sua escola durante dois anos.

Passado esse tempo, regressou a casa da mãe, que mandou construir o tear atualmente instalado na casa de Hermínia, num espaço luminoso, junto a uma janela, ao lado da urdideira fixa à parede. Viveu 38 anos na Damaia, indo à terra aos fins-de-semana e no verão, ocasiões em que continuava a tecer.

“Vou fazendo as minhas coisinhas, como entendo, daquilo que me lembro”, e ajudando o marido na horta, paralelamente com as tarefas domésticas.

A tecedeira Hermínia. Tecelagem em Carreira do Mato, Abrantes. Créditos: mediotejo.net

Na juventude viveu da tecelagem, aceitava encomendas. Os clientes compravam a lã e o algodão, e Hermínia tecia até estar o trabalho pronto, para depois transportar até Aldeia do Mato. “Fiz muitas mantas para lá, para compor os enxovais, e mandavam fazer mantas de trapos porque se usava. Era tudo só batido. Agora ninguém as quer. É bom para fazer um piquenique, para pôr no chão…”, nota.

No regresso a Carreira do Mato, há cerca de 15 anos, foi aperfeiçoando a arte e faz tapetes, passadeiras e o que calha. “Mas fazia tudo”, afirma enquanto nos mostra o “arranhado” trabalhado com três pés e “com agulha é só com dois”.

A tecedeira Hermínia. Tecelagem em Carreira do Mato, Abrantes. Créditos: mediotejo.net

“Gosto muito disto. Mas entretenho-me em qualquer coisa… com renda, com malha, com trapos. Antigamente a minha sogra é que os cortava. Agora os meus filhos trazem as t-shirts que não querem usar e eu arranjo. Com a tesoura faço tiras, que é o trapilho que habitualmente se compra. Eu não compro, vou aproveitando”. Tal como aproveitava os restos de uma fábrica de tecidos que tinha perto de casa. Certa vez aproveitou 16 quilos de algodão branco, conta.

Hermínia gosta de tudo na arte de tecer, mas particularmente do rigor e da ordem. Ali nenhum fio pode falhar senão estraga a obra. Nessas etapas obrigatórias antes de iniciar a tecelagem propriamente dita, o marido ajuda e a vizinha ou a irmã também, para manterem a teia e a trama bem esticada. “Tem de ser tudo direitinho, tudo contado, se falhamos um fio já não pode ser”. A tecedeira, com 80 anos, é a ultima de Carreira do Mato.

Talvez pela razão de financeiramente não ser um trabalho “compensador”. Na verdade, nunca foi, assegura. “Quando apanhava trabalho ao dia – para acartar mato, lenhas, mondar o trigo –, ia sempre, porque sabia que chegava ao final do dia e tinha o meu salário, e no tear não”.

Atualmente tece para a família, até pela dificuldade de encontrar algodão. No passado era fácil de comprar em Sardoal, numa casa que a modernidade fechou. Quando regressou a Carreira do Mato conseguiu algodão através de ofertas de pessoas amigas que ainda guardavam em casa. “Uma prima minha deu-me três quilos de algodão”, o que lhe tem permitido continuar a dar asas à criatividade. “As vizinhas diziam que já tinham saudades de ouvir o meu tear”.

Das teias saem peças brancas ou coloridas, com desenhos de flores, estrelas ou figuras geométricas, espelhando a sensibilidade das artesãs e a mestria de uma época distante. Uma arte com futuro incerto, ameaçada por um real risco de extinção.

Paula Mourato

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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