Rebuçados, chocolates, frutos secos e bolos entre as oferendas no Dia de Todos os Santos. Créditos: mediotejo.net

Passava pouco mais das 09h30 do Dia de Todos os Santos já as crianças andavam nas ruas de Tubaral, em Alvega, com as bolsas de pano na mão e o coração aos pulos. A tradição de pedir os bolinhos, passada de geração em geração, cumpre-se na aldeia há décadas e a vontade de a manter viva permanece no brilho dos olhos dos pequenitos e na generosidade das gentes.

“Venham cá meus amores que isto é só uma vez por ano”. E assim se cumpria o chamamento, no lugar de Tubaral, em Alvega, no concelho de Abrantes, para mais um dia de tradição de pedir bolinhos em louvor de todos os santinhos, ou pelas vozes das crianças ansiosas, alegres e de sacola na mão: “bolinhos, bolinhos à porta dos santinhos”.

Eram sete crianças no grupo que o mediotejo.net acompanhou, no feriado de Todos os Santos, a bater às portas dos vizinhos. E do outro lado da porta que se abria chegaram sempre sorrisos, palavras carinhosas, rebuçados aos montes, chocolates, linguas-de-gato, beijinhos, gomas, caramelos, amendoins e outros frutos secos e também para gáudio de todos, algumas moedas.

Gracinda tem 83 anos e lembra-se bem de como era pedir os bolinhos na sua infância. “Também era assim!”, afirma, referindo-se ao entusiasmo dos pequenos que em corrida furiosa palmilhavam as ruas do Tubaral com o objetivo de encher a sacola.

Em Dia de Todos os Santos as crianças de Tubaral, em Alvega, cumprem a tradição de pedir os bolinhos em louvor de todos os santinhos

A idosa tinha para oferecer rebuçados e bolinhos comprados que a idade já não dá para grandes demoras na cozinha, mas recorda que antigamente também se comprava algumas guloseimas. Além disso, confecionava-se “broas de milho, dava-se romãs e tremoços” refere. Este ano por razões de calendário, com o feriado a meio da semana “há menos crianças”, constata.

A massa das broas também não passou este ano pelas mãos de Lucília Mourato. Não acendeu o forno a lenha localizado na rua nas traseiras da casa. “Tive medo por causa dos incêndios” devido às altas temperaturas que outubro ainda trouxe e da tragédia que os fogos significaram para as gentes do interior do País. Por isso, da sua casa as crianças levaram chocolates.

As mães mais atrás em companhia e vigilância. “Temos de acompanhar os pequenos que eles podem perder-se” gracejava Susana Rei. Mas a presença de cada uma das mães ia muito além da segurança dos miúdos. Cumpriam a missão de carregar os sacos que 10 ou 12 casas depois começavam a pesar. Algumas, cautelosas, traziam no bolso um saco suplente para despejos cada vez que a carga, ao ombro do pequeno, se tornava insuportável.

“No meu tempo corríamos todos os lugarejos. Íamos a casa despejar o saco e voltávamos à rua para voltar a encher”, explica Susana. Mas eram tempos mais parcos e poupados de oferendas. “Se hoje fosse assim era quase necessário um saco de adubo”, constata uma das mães.

Josefina Maria recorda-se bem dos tempos em que as crianças enchiam as ruas de Tubaral no peditório em dia de Todos os Santos

Da mesma forma Josefina Maria, de 85 anos, guarda boas memórias de quando pedia bolinhos em nome dos santinhos. “Era uma alegria tremenda!” recorda. No seu tempo de meninice e mesmo depois de casada “estas ruas eram cheias. Uns davam dinheiro, outros broas, outros papo-secos e era o dia esperado por todos os cachopos”. Contudo, a tradição de visitar a casa do vizinho não se ficava pelos mais novos. Também “os homens juntavam-se no largo e iam a casa deste e daquele, levavam uma cabaça com aguardente e andavam todo o dia naquilo”. Quando a noite chegava ninguém sabia fazer contas de somar tal era a “bebedeira”, ri. “Um convívio muito bonito, agora é muito diferente porque temos poucas crianças. Só há meia dúzia de anos é que apareceram todos estes meninos” porque naquele lugar chegou-se a contar apenas duas crianças.

Enquanto isso, os miúdos batiam a mais portas embora pouco convictos quanto ao recital do verso, lá iam cantarolando “bolinhos, bolinhos à porta dos santinhos”. Desta vez calhou a Adília de 78 anos, que em vez de broas guardava umas moedinhas para o louvor santificado. “Não posso fazer outra coisa, então junto umas moedas para este dia e vou dando” aos que na sua casa apareciam.

Há quem não perca a tradição de oferecer romãs e o entusiasmo de as receber

As crianças levantaram-se cedo, como habitualmente porque na realidade o dia de pedir bolinhos é apenas uma razão para madrugar, outras há, como a escola, com mais obrigação do que diversão. E para elas tudo o que metem no saco “é bom!”, ainda que as preferências possam andar pelos rebuçados no caso de Laura ou pelos ovos de chocolate com pequenos brinquedos no interior, no caso de Lara.

Percorrer as casas do Tubaral na manhã de 1 de novembro levou mais e hora e meia, e quase na última casa da última rua, transpirados e cansados, alguns miúdos queixavam-se do calor enquanto aproveitavam para repor as energias devorando uns caramelos, diminuindo dessa forma a contabilidade final e o peso da dádiva.

Na última rua mora Felismina Rosa de 86 anos. Apresentou-se à porta vestida de preto, pela morte de um filho que aos 40 anos apareceu a boiar no Tejo, desgraça que lhe roubou o gosto de festejos e bolos. “Já não faço nada, nem broas nem filhoses”, conta. Por isso, contribuiu com rebuçados para logo de seguida ver o grupo descer a rua a correr.

Após algumas casas as bolsas de pano começavam a pesar nas costas das crianças

“São poucas crianças”, observa. No seu tempo de juventude as mulheres não trabalhavam fora de casa, em compensação “faziam searas de milho, trabalhavam na horta, engordavam porcos para matar, criação… os homens é que trabalhavam”. Agora é diferente. “Não há trabalho para os homens, algum trabalho que aparece é para as mulheres, os filhos andam na escola até aos 20 anos, como é possível?” questiona sem terminar a frase, talvez pelo pudor da interrogação que no complemento aludia à ideia de  “fazer filhos”.

“A gente dantes não pagava água, não havia canalizada, não pagava luz, um litro de petróleo dava para alumiar toda a semana, não havia carros para irmos para o trabalho, era a pé, não havia gás era só lenha… as mulheres tinham de acartar lenha lá do diabo para a queimar, e hoje para tudo faz falta dinheiro. Há pouco onde o ganhe e há muito onde o gaste. As pessoas têm de olhar à vida e não os podem estar a criar”, justifica.

Mas a vivência de desgostos ou de dificuldades nunca foram motivo para deixar de cumprir a tradição. “A minha porta nunca se fecha porque também não gostava que a fechassem aos meus”. Os seus filhos sempre pediram os bolinhos no Dia de Todos os Santos, tal como Felismina ainda menina. Por isso, o costume “continua, continua… e é bom que não acabe!”.

E a animação celebrada em ritual coletivo, tendo como auge a alegria da surpresa, chegara ao fim. O resto passava-se entre portas, na casa de cada uma das crianças, preparadas para fazer contas, ainda que a matemática ou a geometria variável não sejam o ponto forte. Agora faltava espalhar os doces sobre a mesa, dividir por categorias e guardar a maioria, com dois ou três no bolso, mesmo que a vontade seja muita que amanhã também é dia.

 

Paula Mourato

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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