O investigador natural de Alcanena contou ao mediotejo.net os pormenores do seu trabalho e de como os nossos hábitos estão a potenciar algumas das grandes doenças do século XXI. FOTO: mediotejo.net

Na biologia humana um sintoma está sempre associado a uma causa. Se está a ficar obeso aumentam as probabilidades de desenvolver a diabetes Tipo 2 ou, dito de outro modo, a resistência à insulina. Porquê? É isto, em termos muito simples, o que o cientista de Alcanena, Paulo Matafome, tem investigado no Instituto de Investigação Biomédica e Ciências da Vida da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e que lhe valeu este ano o Prémio Nacional de Diabetologia. O mediotejo.net falou com ele, em Coimbra, em entrevista que publicamos em pleno Dia da Diabetes.

A alguns quilómetros dos elegantes edifícios do Paço das Escolas, o Pólo III da Universidade de Coimbra emerge como um espaço de modernidade e sofisticação pouco enquadrado na imagem clássica da velha universidade. Menos caos automóvel, uma maior limpeza visual dos edifícios, menos subidas íngremes também. Junto ao Hospital Universitário formam-se os futuros médicos e investigadores que tentarão dar resposta aos inúmeros problemas que a ciência ainda não conseguiu resolver. A diabetes é uma dessas doenças, associada a tantas outras, que cada vez afeta mais a sociedade ocidental.

Porquê? Será que a resposta está apenas no açúcar?

Paulo Matafome, 32 anos, é natural de Alcanena, mas há cerca de uma década que mudou residência para Coimbra, onde desenvolve a sua investigação. É bolseiro de pós-doutoramento do Instituto de Investigação Biomédica e Ciências da Vida da Faculdade de Medicina de Coimbra e professor na Escola Superior de Tecnologia de Saúde do Instituto Politécnico de Coimbra. Já venceu vários prémios no seu campo de investigação, mas o maior e mais significativo foi o da Sociedade Portuguesa de Diabetologia, atribuído em março de 2016.

Para os diabéticos, a entrevista que se segue pode constituir uma esperança na busca de soluções que permitam uma melhor qualidade de vida. Na prática é apenas um alerta sobre os limitações do nosso corpo e de como os investigadores se apercebem cada vez mais dos efeitos dos hábitos sedentários e da má alimentação que a generalidade da população vem assimilando.

E é a história de Paulo Matafome. Um jovem de Alcanena que regressa ocasionalmente à sua terra natal e que, sem saber explicar bem porquê, sempre se interessou por Nutrição.

Como é que se interessou pela sua área da investigação?

É um bocadinho difícil de explicar. Foi uma área que eu sempre quis. Também porque eu sempre quis trabalhar nesta área da diabetes. Eu quando concorri, aqui há uns anos, para o ensino superior, lembro-me que a minha segunda opção não era outra Biologia, mas Nutrição, no Porto. Ou seja, eu sempre tive como objetivo fazer algum tipo de trabalho nesta área. Depois, quando acabei a licenciatura e vim para Coimbra fazer o mestrado, comecei logo a trabalhar nesta área. Portanto é um bocadinho difícil de explicar como isto surgiu, porque eu lembro-me que já desde o meu secundário sempre tive esse interesse. Foi um processo natural. Acho que também é isso que faz com que nós continuemos a trabalhar em algo e que ajuda a ter sucesso: é estarmos a trabalhar naquilo que queremos mesmo fazer e que nos dá prazer fazer. Isso depois nem é trabalho, faz parte de nós.

Explique aos nossos leitores, do que estamos a falar exatamente quando falamos em diabetologia?

Quando falamos em diabetologia falamos em tudo aquilo que tem a ver com a investigação ou a prática clínica na área da diabetes. Nós aqui trabalhamos na área da investigação. Depois há muitas áreas onde se pode desenvolver essa investigação no sentido de melhorar ou o diagnóstico ou o prognóstico.

Em termos de prognóstico, a investigação nesta área da diabetologia pode envolver muitas áreas, relacionadas com as complicações da diabetes. Ou seja, aquelas mais clássicas como sendo a retinopatia diabética, a nefropatia ou o pé diabético. Mas hoje em dia, cada vez mais a investigação tem vindo a demonstrar que a diabetes está associada a muitas outras patologias que inicialmente não eram consideradas complicações da diabetes, não são ainda consideradas oficialmente complicações da diabetes, mas toda a gente já sabe que têm uma relação com essa mesma diabetes.

Ou seja: nós sabemos que um indivíduo diabético tem mais tendência a desenvolver um processo como a doença de Alzheimer, ou até vários tipos de cancro, como o cancro da mama, o cancro do cólon. São cancros associados em grande medida a processos de desregulação metabólica. Há uma multiplicidade de patologias que inicialmente se pensava que não estavam relacionadas com a diabetes e hoje em dia sabe-se que sim. Um indivíduo diabético tem maior prevalência da doença de Alzheimer, outros tipos de demências, há outros estudos que sugerem outro envolvimento na doença de Parkinson. Há para tudo.

Resumindo, muitas das doenças modernas (obesidade, cancro, Alzheimer, Parkinson, AVCs) estão muito ligadas a esta questão da diabetes?

Claro, obviamente. Depois, em termos de investigação, nós podemos falar no outro lado, que é o lado do diagnóstico. Que é: que mecanismos é que estão por detrás do desenvolvimento da doença. E o desenvolvimento da doença aceita duas premissas fundamentais. Uma delas é as células do nosso pâncreas, que têm a função de produzir insulina, deixam de o conseguir fazer nas quantidades que devia e aí estamos falar eminentemente da diabetes Tipo 1, que surge na adolescência. A insulina funciona bem nas nossas células, simplesmente o pâncreas deixa de produzir insulina.

“Quando falamos em diabetologia falamos em tudo aquilo que tem a ver com a investigação ou a prática clínica na área da diabetes. Nós aqui trabalhamos na área da investigação”

É a mais grave?

São diferentes! Depois, a diabete Tipo 2, que é aquela que é mais prevalente – representa mais de 90% dos casos de diabetes e é aquela com que mais nos debruçamos aqui no Laboratório de Fisiologia, sob a coordenação da professora Raquel Seiça, e é aquela que tem mais a ver com este trabalho que nós realizámos – em que basicamente as nossas células deixam de responder corretamente à insulina. Ou seja, desenvolve-se o que nós chamamos um processo de Insulino-Resistência. Esse processo de Insulino-Resistência faz com que o nosso pâncreas tenha que trabalhar numa velocidade muito maior do que aquilo que era suposto. Se nós temos insulina que não funciona bem, a tendência do pâncreas é produzir mais insulina para compensar esse mau funcionamento.

Normalmente essa resistência à insulina acontece na obesidade. Os indivíduos obesos têm por norma maiores resistências à insulina do que o indivíduo normal. Se bem que há indivíduos obesos que não têm, mas isso já lá vamos. Por norma está associado à obesidade e ao excesso de peso.

(…) Há uma altura em que o pâncreas deixa de funcionar como deve ser, entra em sobrecarga, em falência, e acaba o indivíduo por se tornar diabético. Pois de repente a resistência à insulina continua lá, mas o pâncreas já não é capaz de produzir a quantidade de insulina necessária para compensar essa resistência.

Vocês estudam a resistência à insulina. A que se deve essa resistência? É própria do ser humano ou estamos a assistir a um aumento dessa resistência?

Estamos a assistir a um aumento. E esse aumento da Insulino-Resistência deve-se a muitos processos, alguns dos quais ainda não estão bem caracterizados. Nós sabemos que os indivíduos obesos têm um aumento da resistência à insulina, em média. Sabemos que nem todos têm o mesmo aumento. Ou seja, podemos ter indivíduos com um índice de massa corporal de 28, 29, excesso de peso, e que já são insulino-resistentes, e podemos ter indivíduos com um índice de massa corporal de 40, ou acima disso, que é obesidade acima do grau 3, que não o são. Não tem a ver com a quantidade de tecido adiposo, de gordura, que nós temos, tem a ver com a forma como a armazenamos.

O nosso tecido adiposo tem a função de armazenar gordura e é o único tecido na vida adulta que têm a capacidade de expandir quase infinitamente. Portanto, há alguma coisa que faz com que o tecido adiposo nesses indivíduos não seja capaz de expandir corretamente. É precisamente essa a área de investigação que trabalhamos aqui no laboratório! É perceber o que faz com que o tecido adiposo seja capaz de expandir corretamente ou não.

Não é que expandir o tecido adiposo seja bom. Porque isso está associado obviamente à obesidade. Mas, uma vez havendo um processo de ganho de peso, que ele aconteça por expansão do tecido adiposo e não por acumulação de lípidos noutro sítio qualquer. Até porque nós sabemos que quando o tecido adiposo não expande ou não armazena a gordura como deve ser, os lípidos, eles vão-se acumular no fígado. Um dos processos que está associado precisamente à resistência à insulina é a chamada esteatose hepática. Que é o quê? É a acumulação excessiva de lípidos no fígado.

Foi toda esta investigação a nível da diabetes na obesidade que vos levou a ganhar o Prémio Nacional de Diabetologia? 

Foi. Nós desenvolvemos uma técnica, em que colaboração com o Instituto das Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde e com a equipa do Doutor Miguel Castelo Branco, que permite avaliar a irrigação no tecido adiposo. Essa irrigação é fundamental porque as células do tecido adiposo para armazenarem os lípidos são dependentes da irrigação do tecido. Se o tecido não for irrigado os lípidos não vão lá chegar, as células não vão funcionar bem e portanto não vão conseguir armazenar os lípidos de uma forma correta.

“O que nós conseguimos é encontrar aqui no laboratório o que possa efetivamente melhorar a qualidade de vida das pessoa. Mas nós não podemos mudar o comportamento das pessoas. Isso é impossível”

O que vai existir é o processo oposto, que é um processo de libertação dos lípidos já armazenados e esses lípidos sim vão-se armazenar em locais onde não é suposto, nomeadamente no fígado e no músculo. E aí vão fazer com que se desenvolva a tal resistência à insulina, fazendo com que isto depois se propague a nível sistémico e depois dê origem aos processo que acabámos de falar.

O que nós achamos é que – e muitas outras pessoas – este processo começa, ou tem uma forte base, na desregulação da função do tecido adiposo. Ou seja, o tecido adiposo quando não é capaz de armazenar os lípidos em excesso, isso está associado a uma acumulação desses lípidos noutros locais onde eles não deviam acumular-se e isso vai fazer com que se desenvolva um processo de resistência à insulina.

(…) O que nos moveu neste estudo – que também contou com a colaboração da Professora Silvia Conde da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa – era perceber que mecanismos é que estariam subjacentes à desregulação do tecido adiposo antes de haver ou durante o processo desse ganho de peso.

Qual a conclusão?

O que nós concluímos entretanto é que há um tipo de compostos, chamados Produtos Finais da Glicação, que são basicamente compostos que se formam no nosso organismo quando existem grandes quantidades de glicose (açúcar simples). Ou seja, eles existem em grandes quantidades nos diabéticos. O processo de glicação é um processo pelo qual a glicose modifica quimicamente as nossas moléculas do organismo e faz com que elas deixem de funcionar. É aliás um dos principais processos envolvidos precisamente nas complicações da diabetes.

A resistência à insulina, que causa a diabete de Tipo 2, é bastante comum nos obesos. Porquê? FOTO: mediotejo.net
A resistência à insulina, que causa a diabete de Tipo 2, é bastante comum nos obesos. Porquê? FOTO: mediotejo.net

O que nós entretanto percebemos é que estes produtos causam lesões na vasculatura do tecido adiposo e que fazem com que quando nós induzimos um processo de ganho de peso, o tecido adiposo não seja capaz durante esse processo de se adaptar ao aumento dos lípidos. Os lípidos acabam por se ir acumular noutros sítios e isso leva ao processo de resistência à insulina. Que era aquilo que não se sabia: que mecanismos estão envolvidos nessa perda de capacidade do tecido adiposo. Nós demonstrámos que pelo menos estes compostos estão.

Depois surge aqui uma questão, que é: ok, mas se a desregulação do tecido adiposo ocorre antes, como causa da diabetes, qual é a relevância destes produtos que são derivados da glicose, que existem em grandes quantidades nos diabéticos, aumentarem ou causarem a desregulação do tecido adiposo. A questão é que cada vez mais nós ingerimos enormes quantidades de açúcar na alimentação.

Basicamente todos nós estamos em risco de nos tornarmos diabéticos…

Cada vez mais. Porque o processo de perda de peso, que supostamente diminuiria esse risco, é conseguido através de coisas como os bons hábitos alimentares e o exercício físico que cada vez menos pessoas fazem (risos). Agora as pessoas, acho, estão a ganhar um pouco de consciência, mas durante muito tempo era algo que as pessoas não faziam e os maus hábitos alimentarem têm vindo a agravar-se cada vez mais.

Mas, para pensarmos um bocadinho nisto, se nós formos ali pegar num iogurte líquido, de qualquer marcar, facilmente tem 20 gramas de açúcar. Um pacote de sumos daqueles pequeninos, daqueles néctares, terá entre 18 a 20 gramas de açúcar também. Isso pode ser facilmente comprovado. Aliás, não é à toa que agora o Governo aprovou a “Fat Tax”, que é a taxa para os produtos açucarados. Porque os refrigerantes então, estamos a falar de valores 10 vezes superiores a isto (um refrigerante de lata equivale a 25% dos açúcares que devemos consumir num dia inteiro).

“A questão é que cada vez mais nós ingerimos enormes quantidades de açúcar na alimentação”

Tem diabetes na família ou teve esse tipo de experiência ao longo da vida?

Eu tive uma avó que tinha diabetes Tipo 2, mas não me lembro de ter sido isso.

Até onde gostava de ir nesta área?

Bem…isso é um bocadinho difícil de responder. Se falar com alguém que faça investigação as pessoas vão-lhe sempre dizer: eu quero encontrar a cura para qualquer coisa. E nós temos que ser um bocadinho mais modestos e perceber que isso não é possível. Ou seja, nós podemos encontrar caminhos para. Podemos, como estamos a fazer aqui, demonstrar aos outros, ou tentar explicar aos outros, que se calhar não estão tão informados sobre o tema, como as coisas acontecem. O que nós conseguimos é encontrar aqui no laboratório o que possa efetivamente melhorar a qualidade de vida das pessoa.

Mas nós não podemos mudar o comportamento das pessoas. Isso é impossível. Há determinado tipo de doenças que as pessoas associam como um risco imediato de vida. Ou seja, uma pessoa tem um AVC, é-lhe diagnosticado um tumor e as pessoas associam àquilo: a minha vida está em risco! Portanto vão fazer tudo aquilo que lhes dizem para fazer e vão cumprir estritamente as ordens que lhes dão. Neste caso as pessoas não associam risco de vida, ou pré-iminente. Não percebem que o facto de serem obesas acarreta maior risco de doenças cardiovasculares…

Mas pelo que entendi da investigação vocês podem estar na pista de uma cura ou de uma solução preventiva…

Podemos estar no caminho para isso. Nós desenvolvemos uma técnica que permite avaliar essa irrigação. Identificámos compostos derivados dos açúcares da alimentação que estão envolvidos nesse processo. Mas não podemos obrigar as pessoas a não comer aquilo. Por isso é que a esmagadora maioria da investigação se faz no tratamento, ou seja, após doença. E gastam-se milhões e milhões de euros por esse mundo fora a investigar medicamentos para curar. É mais fácil tomar um comprimido no fim e esperar que nos cure do que fazer alguma coisa para prevenir antes de acontecer.

Por isso é que a esmagadora maioria da investigação se faz no tratamento, ou seja, após a doença. E gastam-se milhões e milhões de euros por esse mundo fora a investigar medicamentos para curar.

Ficou surpreendido com o voto de louvor da Câmara de Alcanena?

Fiquei, não estava nada à espera. Fiquei obviamente agradecido e reconhecido e surpreendido também (risos). Tive oportunidade depois de entregar em mãos uma carta de reconhecimento à presidência da Câmara Municipal e tive oportunidade de ter uma conversa com a vice-presidente. É obviamente um grande orgulho.

 

Cláudia Gameiro

Cláudia Gameiro, 32 anos, há nove a tentar entender o mundo com o olhar de jornalista. Navegando entre dois distritos, sempre com Fátima no horizonte, à descoberta de novos lugares. Não lhe peçam que fale, desenrasca-se melhor na escrita

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