"Alcanena!... Assim és..." é um testemunho da vida política e social dos anos 80 e 90 em Alcanena Foto: mediotejo.net

Joaquim Pereira Henriques, 97 anos, apresenta este domingo, 12 de maio, o segundo volume da sua obra “Alcanena!… Assim És… Retalhos da Vida de Alcanena”, desta vez dedicado ao período entre 1997 e 2009. O ex-autarca foi o primeiro presidente da Câmara de Alcanena eleito após o 25 de abril de 1974 e um dos poucos que permanece ainda vivo para narrar os acontecimentos e percalços dos primeiros 45 anos em democracia. Sentiu durante anos que fora esquecido. Mas ainda há, admite, quem o trate por presidente.

Em 2017, em jeito de homenagem, integrou a lista do PS às autárquicas. O mediotejo.net recorda a entrevista que concedeu então ao nosso jornal.

(Texto publicado originalmente em setembro de 2017, no período de campanha para as eleições autárquicas)

É no interior da vila de Alcanena, em arruamentos onde se perfilam lojas fechadas e entabuadas pelo esquecimento, que descobrimos a moradia de Joaquim Pereira Henriques. “Não olhe, a casa tem quase 200 anos”, recebe-nos o autarca.

É certo, o cheiro a madeira e a cedro, um certo odor caraterístico dos velhos edifícios, o longo e estreito corredor não desenganam. As camas com rasgos de arte nova, os móveis clássicos, cheios de contornos e pormenores, as fotografias a preto e branco, lembrando pessoas e um tempo que já não existem. Mesmo que não tivesse dois séculos, a pequena moradia já seria por si um espaço digno de memória, mais não fosse a figura histórica que nela habita e que não hesita em recordar muitos dos episódios que marcaram a sua já longa vida.

Joaquim Henriques pertence ao tempo da revolução, quando a democracia se construía aos solavancos e as instituições se definiam.

Joaquim nasceu em 1922, o oitavo de 10 irmãos e o único que ultrapassou a barreira da primeira década de vida e chegou à idade adulta. O próprio não percebe muito bem como teve tal sorte dentro do drama familiar. Pouco se recorda dos sete irmãos que se lhe antecederam. O nono morreu após uma aparente indigestão, a décima na consequência de um traumatismo craniano, ainda bebé. Na mãe não lhe conheceu outra cor se não o preto. Rodeado de tantas mortes, viveu. E viveu muito. Em número de anos e em experiências de vida.

Joaquim Henriques foi presidente da Câmara de Alcanena. Foto: mediotejo.net

Descreve-se a si próprio como o homem dos sete ofícios. Não fez mais que a instrução primária, a qual completou com 12 anos, lamentando hoje não o terem alertado que podia seguir o seminário sem ir depois efetivamente para padre. A vocação não o chamava e, desconhecedor das realidades da vida, foi trabalhar.

Eu não era filiado, o presidente da concelhia local entendeu que havia de ser ele e foi. E pôs-me de parte, nunca mais existi.

Passou por ajudante de farmácia, caixeiro, empregado de escritório, empregado de armazém, motorista de camiões, gerente de uma bomba de combustível e na tropa foi enfermeiro. Facto inusitado, recorda, resultado de, no tempo da escassez de tudo, quando o mundo se matava na guerra, ter por acaso um pacote de cigarros que entregou a uma alta patente. A passagem pela tropa acabaria assim sem incidentes de maior, como enfermeiro, até voltar a casa.

Vestido de preto, passo não tão lento como seria de esperar, senta-se numa poltrona. O relógio de pêndulo bate as 15h30. A esposa, recorda, morreu há quatro anos e desde então tem vivido sozinho. Um dos filhos leva-o a dar um passeio aos Olhos de Água quase todos os dias. No resto do dia encontra-se brevemente com os amigos, regressa a casa e lê os jornais, vê as notícias. Junto à poltrona amontoa-se por tal uma pilha de jornais regionais, de Santarém e de Coimbra. Bem informado, comenta alguns factos da vida nacional e o aproveitamento político das mortes em Pedrógão Grande. Um dos filhos também é candidato, como cabeça de lista, a uma junta de freguesia nos arredores de Lisboa, mas não consegue precisar o nome da terra.

Autarca concorreu em 17º na lista do PS à Câmara Municipal, admitindo ser o mais velho candidato da campanha eleitoral de 2017. Foto: mediotejo.net

Joaquim Henriques pertence ao tempo da revolução, quando a democracia se construía aos solavancos e as instituições se definiam. Sem fundos comunitários, quando as autarquias iam ganhando gradualmente autonomia, avançou com obras estruturais de saneamento, água, ou edifícios necessários à vida do concelho, como o Mercado Municipal. Pensava que a política era para gente rica e com instrução, mas bateram-lhe à porta a convidá-lo a candidatar-se. Não se identificou com os comunistas, mas aceitou o convite dos socialistas. Nunca se filiou. Não pensava que iria efetivamente ganhar.

Folheando velhos jornais e revistas, Joaquim Henriques recorda com orgulho o seu legado, o seu tempo de luta, quando tudo estava ainda por fazer. Sabe de memória o preço total de algumas grandes obras. Mostra satisfeito a placa de homenagem que lhe foi oferecida em 2016 pelo PS, na altura das celebrações dos 40 anos de poder local. Nos 100 anos do concelho, em 2014, a presidente Fernanda Asseiceira também o homenageou, tendo mantido a relação com o ex-presidente.

Com grande fluidez de raciocínio e plenamente consciente, Joaquim Henriques não negava um assento no município se assim fosse necessário. Os tempos mudaram, admite, a politica mudou. As necessidades são outras, os desafios também. Alcanena cresceu.

Fazemos um parêntesis na corrida eleitoral para dar a palavra a Joaquim Henriques. Um capítulo recuperado na História do concelho de Alcanena.

*

Joaquim Henriques a ser cumprimentado pelo ex-Presidente da República, Jorge Sampaio, numa visita a Alcanena. Foto: Arquivo particular de Joaquim Henriques

Como se viveu em Alcanena o 25 de abril?

Joaquim Henriques (JH): Como em todo o país. Com entusiasmo, mas com dúvidas. O PREC é que foi terrível…

Estava a contar-me que entrou na política um pouco sem querer. Ainda se recorda como foram as autárquicas de 1976?

(levanta-se e mostra a placa que o PS lhe ofereceu nos 40 anos do poder local) Um dia estava a jantar e batem à porta. Vem a minha mulher e diz-me: “olha estão ali três rapazes que querem falar contigo”. Até foi ali do lado do quintal…

– “O que é que se passa?”

– “É o seguinte, ontem tivemos uma reunião na cantina escolar, do MDP/CDE” – que albergava todos os partido políticos da oposição – “e ficou lá deliberado convidar o senhor para presidente da comissão administrativa”.

– “Alto aí! Convidar é outra coisa, eu ser não” – porque eram os três comunistas – “Não sou de vocês”.

– “Ah, mas aquilo engloba todos os partidos…”

– “Está bem, mas eu não sou de vocês. Se fosse uma coisa legal, uma eleição, ainda poderia aceder. Agora para um convite que são vocês a decidir não estou cá”.

Quando foi de facto marcado as eleições vieram de novo ter comigo.

– “Olhe, já vêm tarde, porque eu já disse que sim ao Partido Socialista”.

Mas ao Partido Socialista também disse: “vejam se arranjam outro mais capacitado”.

Lá fui atirado para a boca do lobo, como se costuma dizer, e fui eleito.

Estava à espera?

Não estava, em princípio não estava. Porque era muito disperso. Havia o PSD, as pessoas que mandavam, havia o CDS, havia o Partido Comunista e o eu ia ao Partido Socialista. É certo que o Partido Socialista tinha peso, mas nessa altura não tanto como hoje porque andava desorganizado. Lá fui e fui eleito. Lá fui para presidente da Câmara. Nessa altura eram só cinco vereadores, o presidente e mais quatro, porque o concelho era de segunda e os de primeira é que tinham sete. Mas no ano de 1976 o concelho de Alcanena excedeu as décimas ou as centésimas que era preciso de impostos para o Orçamento de Estado. Passou para primeira. Logo no fim desse mandato passou a sete vereadores. Foi uma experiência muito válida.

Como era o concelho nessa altura?

Como é que a menina o pensava? Por acaso até era um concelho avançado em relação a outros. Havia umas organizações do tempo da outra senhora, entre elas a Federação dos Municípios do Ribatejo, que era só de eletricidade, e Alcanena estava quase todo eletrificada. Por causa disso Alcanena tinha o cargo de vice-presidente (nessa instituição).

(disserta sobre a época e as instituições)

Comemorações do 25 de abril de 1977 em Alcanena. Foto: Arquivo particular de Joaquim Henriques

A verdadeira autonomia das Câmaras não foi as eleições. As eleições criaram o poder local, mas dependente do Governo. Com a entrada em vigor da lei das finanças locais é que nós ganhámos autonomia verdadeira.

A minha preocupação principal foi levar qualidade de vida onde ela não existia. Foi água, foi esgotos, foi eletricidade, foi caminhos. E no fim de satisfeitas essas necessidades primordiais, segui para o supérfluo, se é que é supérfluo: umas piscinas, o mercado. Não só na sede do concelho como também para outros lados.

E como é que consegui isto?

Exato, como conseguiu fazer tudo isso?

Era saber orientar o dinheiro que vinha. Às freguesias, no poder que estava instituído, dava-se cinco contos por ano para expediente. Eu criei um fundo para eles terem um homem para trabalhar no cemitério e para varrer as ruas. Se nós Câmara passámos a ter autonomia, tínhamos que a dar à junta de freguesia. E toca de começar a dar. E a partir daí as coisas desenvolveram-se até ao dia de hoje.

Gostou de ser presidente da Câmara?

Gostei. Foi uma experiência muito boa. Mas em homenagem à memória da minha mulher, ela não gostava. Eu estava à frente da casa do pai e ela pensava que eu iria descuidar-me. Mas dei volta às duas coisas.

Porque saiu em 1986?

Sabe que mesmo dentro dos partidos… Eu não era filiado, o presidente da concelhia local entendeu que havia de ser ele e foi. E pôs-me de parte, nunca mais existi. Mas esta senhora (atual presidente da Câmara, Fernanda Asseiceira, do PS) chamou-me. E eu sempre que me chamaram estive presente.

Mas a minha obra foi grande, porque foi a desbravar e a arranjar bases para outros em seguida fazerem.

O que é que não fez que gostaria de ter feito como presidente?

(risos) Hoje já pouco falta fazer. No entanto gostaria de ter feito mais. Porque os que se seguiram a mim alguma coisa mais fizeram. E nunca está tudo feito.

Como se deu esse episódio de ter sido juiz?

Consegui trazer para Alcanena o tribunal. Depois era preciso quadros e o juiz esteve muito tempo sem vir. A conservadora entretanto também tirou a licença de gravidez. Então (por inerência do cargo de presidente da Câmara) por alguns meses fui juiz. Mas eram coisas só de expediente, o chefe da secretaria é que orientava tudo.

Qual a obra que mais se orgulha de ter concretizado?

São todas. Porque todas as que fiz trouxeram uma melhoria de vida às populações. E as pessoas precisam dessas melhorias. Eu dou valor a isso porque fui criado numa casa térrea, sem água.

Depois de sair da presidência, o que foi fazer?

Por acaso fui ser avaliador nas Finanças. Convidaram-me também para a direção do Centro de Bem Estar Social de Alcanena. Fui vice-presidente, estive lá 10 ou 12 anos, nem sei bem. Saí com 64 anos da Câmara.

A minha preocupação principal foi levar qualidade de vida onde ela não existia. Foi água, foi esgotos, foi eletricidade, foi caminhos. E no fim de satisfeitas essas necessidades primordiais, segui para o supérfluo, se é que é supérfluo: umas piscinas, o mercado.

Envolveu-se em mais alguma associação?

Em moço fiz parte de um grupo que era a “Malta Brava”. Um grupo que um padre formou. Tínhamos teatro, futebol, ciclismo, excursões, tudo isso. Joguei futebol também (risos), fui atleta do Atlético Clube Alcanenense.

Porque é que aceitou integrar agora a lista da Fernanda Asseiceira (candidata do PS às autárquicas)?

Aceitei dentro do princípio que a senhora presidente me apresentou: um representava o passado e sem o passado não havia o futuro. Como o Partido Socialista me tinha considerado (aponta para a placa dos 40 anos do poder local), eu entendi que devia. Não fui à procura de nada, sou o último da lista.

Ainda gostava de poder fazer alguma coisa?

Pois gostava. Mas sabe, com 95 anos sou bom é para estar sossegado, “sopas num testo”.

Como vê estes últimos anos do concelho, os dois mandatos de Fernanda Asseiceira?

Sabe, ela alguma coisa tem feito. Porque encontrou as necessidades básicas feitas. O maior trabalho dela está no equilíbrio das finanças. O trabalho tem sido positivo dentro das possibilidades. (…) Ela é pessoa competente, se não fosse eu não a apoiava.

Ainda o tratam por presidente?

Às vezes tratam. Alguns tratam por presidente, mas eu digo que não sou presidente. O que vou dizer é a verdade: há aqui uma freguesia que é muito importante no concelho, que é Minde. Minde é uma terra que tem praticamente as mesmas necessidades que Alcanena. Em Minde, sinto isso, quando me vêem respeitam-me como se ainda fosse presidente.

Inauguração do quartel dos Bombeiros de Alcanena em 1984. Foto: Arquivo particular de Joaquim Henrique

O que pensa destas uniões de freguesias?

Sou contra isso. Vai acabar um bocado com o apego da população à sua terra. Em Alcanena houve três freguesias que se uniram (Malhou, Louriceira e Espinheiro). Mas todas elas têm sedes. Onde será a sede principal?

Na sua altura já se falava na poluição?

A poluição sempre existirá. Agora desde que fizeram a remodelação (da rede de coletores) houve aí uns meses que não houve cheiro, mas tornou a voltar um pouco.

Tem ideia se é o candidato mais velho do país?

Talvez seja, não sei. Eu penso que sim. Já tenho trocado essas impressões. O que hei-de dizer… Se fosse preciso ainda iria sentar-me à mesa do (executivo) e iria consciente daquilo que ia para lá fazer. Não ia como velho, como homem usado. Julgo que sou o mais velho autarca vivo.

O que pensa de Gabriel Feitor, o candidato do movimento independente Cidadãos por Alcanena, que tem 23 anos?

Não chega para se ser presidente da Câmara ter só um curso, é preciso ter-se mais alguma coisa. Talvez eu hoje não fosse capaz de desempenhar o lugar, porque hoje as tecnologias… (o mundo é mais complexo). O rapaz tem um curso de historiador e anda a tirar um mestrado. Mas ele deve ter sido atirado… O PSD e o CDS morreram, não sei porquê…

O PSD está a apoiar os independentes.

Pois está. (…) Mas o rapaz vai ser eleito vereador, vai começar a praticar. Oxalá que tenha sucesso.

Na sua altura, em 1976, era mais fácil ser presidente da Câmara?

Era mais fácil num aspeto: porque não havia talvez tanta burocracia. Mas era mais difícil porque não havia nada feito e era preciso fazer. E agora está praticamente tudo feito, há as requalificações.

Em Minde, sinto isso, quando me vêem respeitam-me como se ainda fosse presidente

O que mais o preocupa no país?

JH: A demagogia dos políticos. Porque eles sabem bem TODOS que quem entra no poder muitas vezes as coisas não se resolvem de maneira que gostaríamos de resolver. Porque há sempre terceiros que o impedem. Isto serve na política do país, na política local, na nossa casa. A demagogia é terrível.

Dia 1 de outubro vai votar?

Se for vivo, vou votar em mim próprio!

centro da vila de Alcanena, junto aos Paços do Concelho, em meados do século XX. Foto: D.R.

Cláudia Gameiro, 32 anos, há nove a tentar entender o mundo com o olhar de jornalista. Navegando entre dois distritos, sempre com Fátima no horizonte, à descoberta de novos lugares. Não lhe peçam que fale, desenrasca-se melhor na escrita

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