Na segunda metade do século XX as mulheres partiram do seu país maioritariamente em função de escolhas e projetos que não eram seus – mas dos pais ou dos maridos – em busca de uma vida melhor. A fronteira para as portuguesas, até 1974, foi a mais estreita que se pode conceber, até porque a aventura de correr mundo no feminino era negada. As palavras são de Manuela Aguiar, ex-secretária de Estado das Comunidades no prefácio do livro ‘Menina e Moça me Levaram’, de Aida Baptista, uma professora que adotou Sardoal, embora tenha nascido no concelho de Tabuaço e “levada” para Angola com um ano e meio.
Estamos perante a feminização da migração. As mulheres hoje migram sozinhas, não são levadas por escolhas alheias mas passam, em diferentes contextos geográficos, pelos mesmos processos migratórios, com ganhos e perdas, pelos quais passaram as mulheres emigrantes nos anos 1960. Não obstante a migração contribuiu decisivamente para a emancipação da mulher.
“As mulheres foram confrontadas com países mais evoluídos – não iam sair para viver num país mais pobre –, e na década de 1960 – hoje em dia não sentimos tanto isso, felizmente já não há essas diferenças porque Portugal deu um salto qualitativo muito grande nos últimos anos – a miséria fazia-se sentir muito. Quando essas mulheres foram confrontadas com outro mundo, com outros horizontes e puderam afirmar-se e ganhar independência, souberam muito bem passar esse testemunho aos seus filhos e filhas”, começou por dizer Aida Baptista ao nosso jornal.
Até ao 25 de Abril de 1974, a fronteira portuguesa foi a mais estreita que se pode conceber, até porque a aventura de correr mundo era negada a mulheres. A professora (aposentada) e autora de diversos livros lembra que “as mulheres não podiam sair, tirar passaporte, sem ter autorização do marido, não podiam ter conta bancária sem ter autorização do marido. Portanto, estava fora de questão, a não ser as clandestinas. Tivemos um caso ou outro de mulheres que clandestinamente deram o salto, fugindo à família”.
Considerada uma geração de “triunfadores” aqueles que partiram a ‘salto’, onde se inclui as mulheres, maioritariamente como companheiras de viagem, estas refere Aida Baptista, “são quem maior partido tira da emigração. Primeiro porque o Portugal dessa época não dava voz às mulheres, não trabalhavam, eram submissas dependiam da vontade dos pais, andavam de mão em mão, passavam dos pais para os maridos, ficando viúvas ficavam sujeitas também à família. A emigração deu-lhes isso, a possibilidade de se afirmarem, de terem voz, de decidirem as suas vidas”.
O fio condutor destas mulheres e de qualquer movimento migratório “é sempre a busca de uma vida melhor. Até quando falamos hoje da migração de cérebros, mais não é do que a procura de uma vida melhor: de um melhor emprego, de um emprego bem remunerado, de um reconhecimento do seu trabalho. Em todas as histórias de migrações há sempre um movimento em busca de um futuro, ou para si, ou para aqueles que leva consigo”, explicou. No caso das 44 histórias do livro que publicou em 2021 ‘Menina e Moça me Levaram’, “a maioria dos casos – porque há casos de mulheres que tomaram a iniciativa de sair do país – , eram levadas pelos pais, pelos maridos, às vezes por outros elementos da família. Agora sim, as mulheres têm vontade própria”, constata.
Mas num momento em que a Europa enfrenta uma crise migratória, com milhares de pessoas a cruzar o Mar Mediterrâneo, fugindo da guerra ou da miséria, sendo também aos milhares aquelas que são vítimas em naufrágios no Mediterrâneo, já considerado o maior cemitério do mundo, é fácil concluir as diferenças entre uma migrante europeia e uma migrante africana.
E se “a miséria está sempre subjacente, a busca por um futuro e por melhores condições de vida está sempre subjacente ao movimento migratório” também é verdade que atualmente vivemos uma realidade de “refugiados de guerra, do Médio Oriente, de África e infelizmente esta vaga mais recente da Ucrânia. As guerras também são um motor que faz movimentar as pessoas e as leva para lugares mais seguros”, refere salvaguardando o desvio à regra geral: “o desejo da mudança, de passar por uma outra experiência, o desejo de se enriquecer. Isto também é muito feminino”. A autora indica que no livro ‘Menina e Moça me Levaram’ testemunha uma mulher que vive entre dois regressos.
Já a abrantina Maria de Lourdes Pintasilgo disse certo dia serem “as mulheres das cidades futuras”. Aida Baptista deduz que tal pensamento significasse que “estas mulheres, depois de terem saído, adquiriram um saber. Primeiro ganharam a sua independência, a sua autonomia. As mulheres que saíram nessas vagas migratórias do século XX, a maior parte delas não trabalhava. É fora, para complementar o orçamento do agregado familiar, que começam a trabalhar”. Ou seja, “a geração que estas mulheres criaram, no caso da Europa as filhas do ‘salto’, no caso da emigração para os Estados Unidos, Canadá e outros países além Atlântico também replicaram modelos”.
Aida nota que “por muito depreciativo que se considere ‘a mulher da limpeza’ ou ‘a mulher da fábrica’, a verdade é que tiveram acesso a empregos que lhe permitiram copiar modelos. E isso foi muito importante porque essas mulheres replicaram em casa esses modelos que viam nas patroas e cedo perceberam que era importante ter os filhos a estudar. E esse movimento também partiu maioritariamente das mulheres. Perceberam que o elevador social é a Educação. Portanto, essas tais cidades futuras vão incorporar as mulheres filhas desta geração, mulheres com formação académica, com cursos superiores, com outros objetivos, que lhes foram passados, essencialmente, pelas mães. Normalmente eram as mães que iam às escolas, falar com com os professores. Mesmo quando não dominavam a língua, os filhos serviam de intérpretes”.
Segundo Aida Baptista, “também foram as mulheres que ultrapassaram primeiro a barreira da língua. Se lermos qualquer história de famílias que emigraram são maioritariamente as mulheres quem primeiro domina a língua, e a integração passa pela língua. Elas socializam mais e o facto de verem televisão. Às vezes menosprezamos o papel da televisão, das séries, até das próprias novelas”, dá conta falando do seu próprio exemplo, dos tempos em que viveu na Finlândia.
Sendo certo, que os migrantes hoje recorrem aos tradutores digitais, disponíveis nos telemóveis, para comunicar, “o tradutor Google não permite a aproximação, a linguagem corporal porque o nosso corpo é o maior emissor de mensagens, daí conseguirmos comunicar quando estamos num espaço onde não dominamos nenhuma palavra, mas comunicamos por gestos. O Google é a frieza de um ecrã”.
E se há evolução tecnológica, parece haver regressão humanitária. Em pleno século XXI sente que “já devíamos viver num mundo sem muros. Infelizmente estamos a assistir a xenofobia em Portugal, o país que tradicionalmente sempre emigrou e que não sabe, em alguns casos, lidar com o fenómeno imigratório, aquilo que sempre fomos. Tenho de confessar que me entristece, como portuguesa e como país. Para as mulheres continua a ser mais difícil porque sofrem dupla discriminação; ser migrante e ser mulher. Por outro lado, à mulher cabe, quando tem filhos, a maternidade e tem de conciliar esses dois mundos”.
Voltando a falar da tragédia dos migrantes que morrem na tentativa de atravessar o Mar Mediterrâneo refere que “não há barco nenhum que não traga crianças. Portanto, a preocupação das mães é trazer as crianças mesmo desafiando a morte. Porque querem um futuro para elas. O lugar onde vivem não lhes dá futuro”. Ainda Baptista recorda o Afeganistão, aquando da retirada dos militares dos Estados Unidos do país, após 20 anos, entregando o poder aos taliban. “Vimos mães a entregar os filhos, não importa a quem, queriam salvar os filhos. São imagens que nos marcam, são muito fortes. E aquelas cercas… ver uma criança passar por cima de uma cerca, é um grito de revolta que deve nascer dentro de nós. Como é que ainda temos um mundo assim?”, interroga-se.
No regresso dos emigrantes a Portugal, “normalmente as mulheres não querem voltar. Quem toma a iniciativa de voltar maioritariamente são os homens porque elas passaram a ter uma voz ativa. Não tinham voz quando saíram de Portugal”, relembra.
Aida Baptista cita o caso de uma jovem mulher que quando quis ir estudar para os Estados Unidos o pai disse-lhe: “Nem pensar! Tu aqui de casa só sais casada ou morta. Era a sentença da época. E ela só estuda 20 anos depois, ou seja, primeiro casa, para poder sair de casa, educa os filhos e quando os filhos vão estudar para a universidade ela vai estudar também”.
São portanto, mulheres com chegadas e partidas, em que se fazem e desfazem de casas, de convívios afetuosos, saem da sua zona de conforto, tornando-se mulheres desenraizadas. “O desenraizamento não contempla só aquela chamada emigração convencional. Não é por acaso que no livro tenho o depoimento de duas embaixatrizes e uma filha de um diplomata porque acabei por perceber que essas pessoas, pese embora algum conforto que à partida a missão garante, chegamos à conclusão que a nível dos afetos, da ruturas, dos cortes, sentem exatamente a mesma coisa e o mesmo se passa com os filhos. No caso desta filha, anda por vários países mas é em Portugal que se sente emigrante, fora do seu espaço, é em Portugal que estranha ter todos os colegas de escola a falar português. Portanto, a questão das ruturas, dos cortes afetivos, deixar amigos, família, deixar uma memória que está sempre presente, passa-se com qualquer tipo de migração tenha ela a raiz que tiver”.
Considera que “afirmamos muito mais a nossa identidade na diferença. Só quando se está fora do país se entende a portugalidade. Temos necessidade de dizer que somos portugueses, esse tipo de sentimento é transversal, temos saudades daquilo que é genuinamente português. A perda de identidade é um problema que não se põe”.
Tendo lidados com comunidades portuguesas na diáspora diz que “às vezes pasmamos. É como se as pessoas tivessem saído na véspera, às vezes usam um vocabulário que já nem usamos, certas manifestações culturais, as músicas, as orações, as ladainhas, como se tivéssemos parado no tempo”.
Um processo para mitigar a dor da distância. Mas “é também para quem fica, ficam vazios por preencher. E no caso de crianças que ficaram porque os pais acharam sensato que ficassem por exemplo com os avós, a ausência dos pais marcou-os muito”, assegura.
A professora refere ainda a questão da cultura, dos comportamentos “uma série de variáveis que pesam e são outros códigos”, afirma recordando o momento, em 1989, em que foi trabalhar para a Finlândia, diziam-lhe: “aquilo não é bem Europa. E somos todos europeus”.
À migração está igualmente subjacente a questão da relação de pertença. “Uma vez emigrante tem-se um identidade indefinida, há sempre aquela interrogação: a que lugar é que eu pertenço? Quando regressam, seja de férias, aqui é que se sentem marginalizados, e o processo inverso também se passa. As pessoas estão sempre entre lugares. Portanto, aquilo que sentiram primeiro no país para onde foram depois voltam a sentir quando cá vêm, ou de regresso definitivo ou de férias”, refere a professora.
Quanto às 44 histórias de mulheres migrantes contadas na primeira pessoa, mulheres das mais diversas origens, profissões e faixas etárias, são todas elas “histórias de sucesso”, havendo casos de mulheres estrangeiras a viver em Portugal. Aida confessa que gostaria de ter mais histórias mas reconhece a dificuldade porque “temos de pegar em todas as nossas emoções e colocá-las no papel. E nem sempre queremos, às vezes doí, às vezes são memórias que não queremos reviver mas tive a sorte de conseguir estas 44. Como tinha uma data limitada… porque queríamos fazer o lançamento no mês da mulher, em março, tive de apressar um bocadinho e fiquei muito feliz”.
Em resumo: Para as mulheres (e homens) desenraizadas, ainda que felizes na sua condição de migrante, “nunca se tem uma só casa a partir do momento em que se sai. Por fora é só uma, a casa física, mas depois temos estes mundos interiores a povoar essas casas”.