Foto: mediotejo.net

33. Sim, diga lá outra vez. Trinta e três. O mote carregado de simbologia para uma apresentação interativa, feita de genuinidade, saberes e, acima de tudo, partilha. Das memórias, das estórias, das terras e das gentes da região. A revista de História Local Zahara, colecionadora de testemunhos, tradições, profissões de outrora, histórias de vida e viagens no tempo, chega agora à edição número 33. Num caminho ininterrupto desde o ano 2003.

O Sr. Chiado, naquele espaço sempre tão aconchegante e literário, apesar de parecer pequeno, tem o poder de sempre acolher, além de todos os que contribuem voluntariamente para fazer nascer a publicação semestral, aqueles que orgulhosamente a folheiam, recordando as suas gentes, outros tempos e contextos.

A apresentação desta publicação composta por doze artigos, da responsabilidade do Centro de Estudos de História Local de Abrantes, da Palha de Abrantes – Associação de Desenvolvimento Cultural, é um hino a todos os que amam a sua terra e que querem eternizá-la no papel e angariar leitores do património, puxando de variados temas, partilhando escritos, documentos, fotografias.

Após um momento introdutório que teve tanto de inesperado quanto de surpreendente, pela voz e peculiaridade da docente Carla Dias, professora de Teatro e Expressão Dramática na Escola Secundária Manuel Fernandes, em Abrantes, hora de dar voz a todos os que quiseram aguçar o interesse sobre os artigos que assinaram neste número 33.

José Martinho Gaspar, historiador e diretor da Zahara, foi cumprindo o “protocolo” do costume, dando a palavra a quem a quer partilhar ativamente, dando do seu tempo e pesquisa, a quem queira ouvir.

Na sala, juntaram-se aos protagonistas do costume outros nomes da região, que integraram a Zahara nº33, compondo o quadro de distribuição geográfica dos artigos compilados.

Começando pela capa, protagonizada por Manuel Infante, provavelmente o último latoeiro de Gavião, que faz a ponte a outros mestres latoeiros uns ainda no ativo e outros já falecidos, mas igualmente mencionados por Teresa Aparício, em mais uma recolha virada para as “Profissões e Vivências em Vias de Extinção”. Lembrou-se ainda o Ti Filipe – homem dos sete ofícios – e o Sr. Borges, de Abrantes, Alfredo da Silva, de Bemposta, e o último latoeiro de Mação, Manuel da Pomba (falecido em 2018), entre outros.

De seguida, José Alves Jana apresenta mais uma entrevista, cumprindo a lavra com que vai habituando os leitores da revista. A partir de um testemunho “precioso” do abrantino Fernando Romeiro, aposentado da Ação Social Escolar da Escola Dr. Manuel Fernandes, filho de ferroviário e leiteira, e que aos 83 anos conta sobre as voltas que a sua vida deu, desde miúdo até à formação da EICA (atual Escola Secundária Dr. Solano de Abreu), a entrada na tropa incorporado na R12 no quartel de Abrantes, a ida para Angola e Moçambique, o amor à esposa Aurora, o 25 de abril de 74, a cheia de 79 que lhes irrompeu pela casa na Arrifana, e a construção do novo lar em Casais de Revelhos, os filhos e os netos, e o gosto pela aprendizagem que o faz integrar aos dias de hoje a Universidade da Terceira Idade de Abrantes.

Tempo ainda para continuar a saber mais sobre o Convento de S. Domingos de Abrantes, pela transcrição de Joaquim Candeias da Silva de um “Precioso Memorial Até Agora Inédito”, com a segunda parte desta temática contida no número anterior da Zahara.

O autor assina ainda um artigo subordinado à elevação de Tancos a vila, corria o ano de 1517, na sequência da Zahara nº 28, datada de dezembro de 2016, onde fora publicado o artigo “Vila Nova da Barquinha: Um concelho onde entroncam muitas memórias” [pp.51-65].

De Sardoal, chega-nos a memória do “Café Progresso”, cujo primeiro proprietário fora Álvaro Passarinho, farmacêutico e presidente de Câmara entre 1969 e 1974. Mas foi a partir da década de 50 que António Jorge, ou “Jorge do Café” ou “Jorginho”, deu fama àquele pólo de desenvolvimento social não só da vila de Sardoal, como da região.

Foto: mediotejo.net

Assumindo “Uma Função Social de Meio Século”, permite traçar a vida social da época e a sua evolução, tendo em conta as vivências e inovações, como sendo a integração do posto público de telefone, a venda de jornais como o Diário de Notícias, o Diário Popular, A Capital e o Diário de Lisboa, mais o “número astronómico de 35 mil exemplares vendidos da Crónica Feminina”.

Funcionou como “centro cultural” e atraiu população, essencialmente jovem, com o seu afamado salão de jogos, com matraquilhos e outros.

De Gavião, surge um levantamento por Carlos Grácio sobre as capelas e ermidas do concelho. Ressalvando o património religioso espalhado pelas freguesias e aldeias, alguns ainda de pé, outros onde ainda se faz culto e outros dessacralizados com o tempo.

José Martinho Gaspar trouxe uma história de um amor e uma vida vivida noutro tempo. A história de João Dias Pereira, natural de Lomba, Santiago de Montalegre (Sardoal) e Emília Rosa Serras, natural de Água das Casas, Fontes (Abrantes). Artigo que deu direito a ouvir na primeira pessoa algumas das peripécias e vivências “em tempos difíceis e duros”, contando com a presença dos entrevistados na sala.

O casal Emília Rosa Serras e João Pereira Dias, cuja história consta do número 33 da Zahara, estiveram presentes na apresentação. Foto: mediotejo.net

As antigas casas da Câmara de Mação também são foco do artigo de Jaime Marques da Silva, apresentando um breve historial.

João de Matos Filipe, natural de Ortiga, concelho de Mação, ficou incumbido de apresentar leves considerações sobre o artigo redigido em conjunto com Jaisson Teixeira Lino, Sara Cura e António Luiz Miranda, destacando a tipicidade das pesqueiras de Ortiga, com técnica de construção de “pedra ao alto” e dando-lhe contextualização histórica, desde os tempos de navegação do Tejo e à ligação afetiva do povo ortiguense ao rio, bem como a importância da pesca naquela localidade banhada aos pés pelo Tejo.

Também de Mação, ali da vila de Cardigos, o professor de História António Manuel Silva escreveu sobre a vivência desportiva na aldeia de Vales de Cardigos, povoação a paredes-meias com o concelho de Proença-a-Nova. Fala-se de futebol, no masculino e feminino, na passagem de geração a geração, e no papel do Centro Recreativo de Vales, cuja criação na década de 60 foi preponderante na construção de infraestruturas desportivas com melhores condições, aliciando a introdução de outras modalidades. A atualidade traz desafios, e é na pouca juventude que por ali resiste, juntamente com os mais velhos, que se luta pela continuidade desta coletividade local.

Manuel Soares Traquina escreve memórias de São Simão, localidade de Sardoal situada entre “montes e pinhais”, lembrando “as casas pequeninas”, “os muros caiados”, as escadarias e os sons, cores e cheiros dos dias passados naquele lugar que era para muitos “um paraíso com defeito”, sendo o único: o isolamento.

E, continuando a viagem por “Tempos Passados”, Manuel Batista Traquina, fala-nos do Souto do norte de Abrantes, terra de serradores, e onde a agricultura e a floresta assumiam papel importante no ganha-pão das gentes.

Lembram-se as parelhas de serradores, que chegavam a levar um suplente, e dormiam na floresta para não terem de perder tempo a carregar pesados equipamentos de trabalho de um lado para o outro. Uma atividade tradicional, que se perdeu com a mudança dos tempos, com a mudança da floresta. E, por outro lado, não se esquecem marcos importantes no desenvolvimento da povoação, como sendo a subida das águas com a construção da barragem e consolidação da albufeira de Castelo do Bode, a criação da Casa do Povo e a chegada da energia elétrica.

Por fim, fecha-se a noite, puxando das emoções que iam cedendo gradualmente à medida que se partilhavam histórias, memórias e conhecimento. Aproveitou-se, já que se estava em espaço onde se louva e muito se produz e divulga sobre a sétima arte, para visionamento de algumas curtas metragens relacionadas com este número 33 da revista de História local.

Assaltou à memória o último mestre calafate de Ortiga, Ti’ Manuel Fontes, enquanto se ouvia e via aquele que era o seu habitat natural: a vida entre a projeção, construção e navegação nos barcos picaretos do Tejo.

Por outro lado, o Ti’Filipe, da Rua da Sardinha, também foi lembrado. Aquele que era “o guardião da rua”, com uma carrada de filhos, netos e bisnetos e por aí fora, dedicava-se à produção de alguma latoaria, era também funileiro e outras lides o distinguiam.

Foto: mediotejo.net

Era bonecreiro, e com auxílio da esposa, corria feiras com os bonecos produzidos na oficina, cenários e peças pensadas, e com a sua partida, restou o baú em sua memória, que, pensa-se, esteja na posse dos seus descendentes, mas que muitos lembrarão com nostalgia das engraçadas vozes e perícia na manipulação dos bonecos.

No final, e ainda que palavras não sejam necessárias, pois as publicadas nesta revista semestral chegam e bastam, o mediotejo.net falou com José Martinho Gaspar sobre os desafios e o espírito voluntário que reveste este projeto do CEHLA.

“Quando fazemos a apresentação da revista, sobretudo aqueles artigos que contêm testemunhos ou memórias, quando é possível tentamos trazer essas pessoas que colaboraram, muitas vezes já relativamente idosas, para que possam estar aqui e possam elas próprias sentir como são acarinhadas as memórias que têm e como aqui são valorizadas”, disse o historiador, referindo que ainda existe alguma desvalorização por parte das pessoas quando se pretender contar a sua história. Mas depois de alguma exploração e pesquisa, percebe-se que, afinal, aquele contributo tem importância e merece ser partilhado.

Por outro lado, em termos globais, a população ainda resiste a conhecer e comprar esta publicação feita de e sobre a história local, algo que o CEHLA quer combater.

“Creio que os artigos têm sido simples e o formato da revista é apelativo. Quanto à divulgação temos um handicap, por não termos conseguido chegar a muito mais gente, mas estamos a trabalhar nesse sentido e temos a ideia de fazer junto das Câmaras Municipais, deste municípios por onde a Zahara se movimenta e chega, alguma sensibilização para que possamos fazer chegar a publicação a algumas instituições locais e para que as pessoas a possam conhecer melhor”, assumiu.

“Vamos chegando onde podemos, há concelhos dos quais gostaríamos de ter mais artigos, caso de Vila de Rei, em que no início tínhamos uma colaboração bastante grande de algumas pessoas, mas relativamente idosas, e se calhar por esse motivo acabaram por se perder. Mas outros têm vindo a aumentar a colaboração com a revista, e temos conseguido manter. Ultimamente temos incluído publicações referentes ao concelho de Vila Nova da Barquinha, área que ainda não tínhamos explorado”, disse José Martinho Gaspar.

Foto: mediotejo.net

A revista semestral, que é recetiva ao contributo de todos desde que os trabalhos se enquadrem nas temáticas que a envolvem, sai normalmente entre junho/julho e em novembro (por ocasião das Jornadas de História Local, em Abrantes), sendo pensada uma data limite para entrega de trabalhos para quem quiser colaborar com trabalhos ligados à antropologia, história local, sociologia, quotidiano e etnografia.

Quanto aos colaboradores “da casa”, “já se habituaram a este tipo de trabalho, e depois há outras pessoas que conhecem, sabem que a revista existe e a recebem”, explicou, acrescentando que daqui surgem colaborações esporádicas, mediante um contexto temporal ou histórico, ou mesmo por “sensibilidade que as pessoas têm para determinados temas”.

Para o futuro, esperam-se mais três (vá, pelo menos mais trinta e três!) números desta “guardiã” do património local, afinal – dizem – “é a conta que Deus fez”.

A revista Zahara pode ser adquirida nos pontos de venda habituais, nomeadamente no edifício Sr. Chiado, junto dos membros do CEHLA, na Biblioteca Municipal de Abrantes e no Espaço ‘Cá da Terra’ em Sardoal.

Formada em Jornalismo, faz da vida uma compilação de pequenos prazeres, onde não falta a escrita, a leitura, a fotografia, a música. Viciada no verbo Ir, nada supera o gozo de partir à descoberta das terras, das gentes, dos trilhos e da natureza... também por isto continua a crer no jornalismo de proximidade. Já esteve mais longe de forrar as paredes de casa com estantes de livros. Não troca a paz da consciência tranquila e a gargalhada dos seus por nada deste mundo.

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