Varino Amoroso foi construído há quase 100 anos em Barreiras do Tejo, Abrantes, e ainda navega no rio Tejo. Créditos: DR

O varino Amoroso, à semelhança de outras embarcações tradicionais do Tejo, desempenhou um papel de extrema importância para a vida socioeconómica do estuário do maior rio português. Antes da construção das pontes sobre o Tejo, do desenvolvimento de outras vias de comunicação e dos transportes rodoviários, esta embarcação construída na segunda década do século XX, assegurou localmente o transporte de bens e mercadorias. O Amoroso, que já se chamou Eduardo, foi construído em Barreiras do Tejo (Abrantes) e celebra 100 anos no dia 17 deste mês de junho (1921-2021). É a maior embarcação tradicional que ainda navega no rio.

Recuperada em 1980 pela Câmara do Seixal, agora transporta turistas e foi integrado no Ecomuseu Municipal. Por norma, entre abril e outubro de cada ano, realiza passeios que permitem conhecer as técnicas tradicionais de navegação à vela, bem como o património natural e cultural do estuário do Tejo. O mediotejo.net foi conhecer o Amoroso e o seu mestre Hugo Ferrão.

Da nascente até ao mar corre um rio cheio de histórias que já viu maiores caudais, águas sem focos de poluição, e guarda memórias da criatividade que os homens lhe dedicavam, designadamente na arte da pesca e no aproveitamento do seu curso para levar mais abaixo ou mais acima, nas embarcações tradicionais – em varino, bote, canoa, falua ou catraio – o seu modo de vida.

Varino Amoroso foi construído em 1921 em Barreiras do Tejo (Abrantes) e é o mais antigo desta envergadura a navegar nas águas do rio Tejo. Créditos: David Belém Pereira/mediotejo.net

O centenário varino Amoroso é a mais velha embarcação tradicional daquela envergadura ainda a navegar nas águas do rio Tejo. Outrora batizado de Eduardo, “nasceu” em Barreiras do Tejo com a função de transportar mercadorias. Hoje a carga é outra, dedica-se a passeios dialogados com partida da baía do Seixal.

Construído em Abrantes no ano de 1921 – data do seu primeiro registo – foi vendido por um calafate local chamado Manuel Maria Duarte a Eduardo Rodrigues Boto, residente em Lisboa. Atualmente apresenta-se como prova viva e como uma homenagem a um capital técnico e humano notável que o mediotejo.net quis registar.

Varino Amoroso. Outrora batizado de Eduardo, “nasceu” em Barreiras do Tejo, há praticamente um século, com a função de transportar mercadorias. Créditos: DR

VEJA AQUI a cópia digital do primeiro registo da embarcação B-789-TL Eduardo, efetuado na Delegação Marítima do Barreiro em 17 de junho de 1921, apesar de atualmente estar registada naquela Capitania com o 9957LX5 Amoroso.

Durante anos, as embarcações tradicionais do Tejo construíram-se apenas com base na experiência profissional dos mestres de estaleiro que, sem compêndios ou manuais técnicos, transmitiam os seus conhecimentos oralmente, de carpinteiro para aprendiz, de geração em geração.

“Segundo a documentação e os registos mais antigos que temos da embarcação, o varino Amoroso foi construído 1921 por um calafate em Barreiras do Tejo, em Abrantes. Mais tarde foi adquirido por outros proprietários. Inicialmente tinha o nome de Eduardo. Em 1936 passou a ser Eduardo Primeiro. Muitas embarcações tomavam o nome dos proprietários e quando vendidas a um novo proprietário, por vezes eram registadas com um novo nome”, explicou ao mediotejo.net Adelina Domingues, técnica do Ecomuseu Municipal do Seixal.

“Em 1945 foi vendido a um outro proprietário que lhe deu o nome de Amoroso, que mantém até hoje. Foi uma embarcação de transporte de mercadorias, uma das maiores embarcações do Tejo, usada no tráfego fluvial. Um tipo de barco muito importante em todo o território do estuário do Tejo, e transportava sobretudo cargas”, notou Adelina Domingues.

O varino Amoroso é (quase) centenário, a mais velha embarcação tradicional, daquela envergadura, ainda a navegar nas águas do rio Tejo. Foto: David Belém Pereira/mediotejo.net

O primeiro registo foi feito, então, na Delegação Marítima do Barreiro, ficando a embarcação com o número B-789-TL e a designação de Eduardo. Em 1936, o varino foi vendido a Serafim Rodrigues Boto, também residente em Lisboa, que lhe alterou a designação para Eduardo Primeiro.

No ano de 1945, foi adquirido por vários proprietários de Lisboa – Maria Gomes dos Santos, Américo de Jesus, António Barbosa e Manuel Gomes Leite, tendo-lhe sido dada a designação que mantém atualmente.

Adelina Domingues em entrevista ao mediotejo.net sobre o varino Amoroso. Créditos: David Belém Pereira/mediotejo.net

Tal como em Abrantes “no Seixal este tipo de embarcações – varinos, fragatas e botes de fragata – foram muito importantes também para o transporte de mercadorias de empresas que se instalaram sobretudo no início do século XX” no Seixal explica Adelina.

Barcos “importantíssimos para o transporte quer das matérias primas que chegavam aqui e que eram depois transformadas nas fábricas como depois o próprio escoamento dos produtos, como a fábrica de cortiça Mundet. Produzia produtos de cortiça e muitos deles eram exportados por estas embarcações. As fábricas quase todas tinham cais nas proximidades e estes barcos transportavam as mercadorias sobretudo para o porto de Lisboa. Muitas dessas cargas eram embarcadas em navios para exportação” indica.

Em 1963, o Amoroso foi vendido a um importante armador: Carnot da Cruz Durão. E na década seguinte, mais precisamente em 1977, tornou-se propriedade da Transpormar – Sociedade Cooperativa de Transportes Marítimos E.P. , à qual foi finalmente adquirido pela Câmara Municipal do Seixal, juntamente com uma fragata, em 1981, sendo integrado na estrutura museológica municipal à data da sua criação, em 1982.

Com o apoio da Região de Turismo de Setúbal foi recuperado, em 1982, no estaleiro de mestre Jaime Costa, em Sarilhos Pequenos, para ser reutilizado como embarcação de recreio e, como tal registado, a partir de 1995.

“Segundo a documentação e os registos mais antigos que temos da embarcação, o varino Amoroso foi construído em 1921 por um calafate em Barreiras do Tejo, em Abrantes. Créditos: David Belém Pereira/mediotejo.net

O Amoroso apresenta um comprimento de 24,25 metros, com uma boca de 6,22, metros e um pontal de 2,40 metros. Possui uma armação de vela latina quadrangular e estai, numa área vélica de 197,84 metros quadrados, um varino de 76,30 toneladas, para uma tripulação de arrais e três marinheiros. Transporta 82 passageiros em lotação máxima e hoje já conta com um motor auxiliar.

O varino abrantino é uma embarcação de fundo chato, popa de painel e proa curva. Casco com um bordo livre de grandes dimensões, protegido por duas cintas em cada bordo. No arranjo interior, a embarcação é de boca aberta, ocupando o poço destinado à carga cerca de dois terços do seu comprimento. O interior foi minimamente adaptado à realização de passeios com passageiros, tendo sido colocado um passadiço para a circulação dos mesmos. A ré situa-se a casa das máquinas e a vante existe um compartimento para arrumação e acomodação, assim como uma casa de banho.

O mestre do barco, Hugo Ferrão, tem 38 anos mas desde os cinco que navega nas águas do Tejo. “Desde pequenino, comecei na Associação Náutica do Seixal a andar à vela e nesta embarcação trabalho há 20 anos. Aprendi com os mais velhos claro, com o meu antigo mestre Zé Palhinhas, e dei continuidade” conta. Atualmente como mestre do Amoroso tenta ensinar aos turistas aquilo que aprendeu. As embarcações, enquanto bem cultural, continuam a ser usadas para divulgar também o património imaterial, o “saber fazer”.

Navegar no estuário do Tejo implica ter em conta fatores tão diversos como a morfologia dos fundos e das margens, as marés, os ventos e as condições atmosféricas em geral.

Varino Amoroso. Créditos: David Belém Pereira

Hugo Ferrão assegura haver ainda “quem se interesse pela navegação. É preciso tempo para aprender a andar com um barco destes, mesmo para o tripular, não só os mestres mas bargueiras também têm de ser ensinados”.

O varino Amoroso integra o acervo do Ecomuseu Municipal do Seixal, como “importante meio de valorização do património náutico do estuário do Tejo”. Durante o período entre a primavera e o outono de cada ano, as embarcações do Ecomuseu são utilizáveis pelo público efetuando passeios no Tejo recorrendo às técnicas tradicionais de navegação à vela. A sua utilização procura conciliar objetivos educativos e de lazer e contribuir para o conhecimento e a interpretação do vasto património flúvio-marítimo do estuário do Tejo.

E é nesse sentido que o mestre Hugo Ferrão leva “as pessoas em passeios… atualmente o barco até tem andado a época toda, verão e inverno, há dias bons de inverno” como era o caso no dia da reportagem do mediotejo.net. Na semana seguinte navegou, com passageiros, até à Feira Internacional de Lisboa.

“A minha intenção é também que os passageiros aprendam um bocadinho do ofício. O que é andar com uma embarcação destas. Tento pôr as pessoas a içar vela, os mais novos a andar ao leme. O que fizeram comigo tento fazer com os outros” conta.

O mestre Hugo Ferrão no varino Amoroso. Créditos: David Belém Pereira

Hugo Ferrão orgulha-se de ser mestre do maior barco típico do País. Gosta do que faz. “Se não gostasse já não estava cá há tantos anos”, nota.

“É tudo antigo, pouco tem a mais do que tem de origem”, garante, e exemplifica: “Tem as casas de banho – que são obrigatórias – os passadiços e o motor”. Sobre este último auxílio explica que “tem de ser!” principalmente devido “ao rio estar cheio de barcos e antigamente não estava. Hoje temos de ter motor e até para cumprir horários, com os passageiros. Antigamente era só vela e barcos a remos, a puxar 77 toneladas em braços, varas. Os marítimos punham-se em cima dos alcatrates com varas ao ombro, andavam em sítios baixos para as varas chegarem ao fundo, sentava e o barco andava… quando não havia vento, claro. Quanto ao resto era sempre à vela”.

A diversidade e riqueza náutica das embarcações que navegaram e, ao longo dos séculos, foram instrumentos de trabalho no estuário do Tejo, conferem-lhes um lugar relevante no património marítimo português.

Até meados do século XX, antes da construção das pontes sobre o Tejo e do desenvolvimento das vias de comunicação e dos transportes rodoviários, o tráfego fluvial desempenhou um papel de extrema importância para a vida socioeconómica das localidades do estuário do Tejo. Distinguem-se as embarcações de tráfego local – de transporte de bens, mercadorias e pessoas – e as embarcações de pesca, dentro do estuário e fora da barra.

“A industrialização das terras localizadas no estuário do Tejo e o desenvolvimento económico de Lisboa levou ao aumento do tráfego fluvial, obrigando à adequação das estruturas portuárias e cais e ao advento de embarcações de rio de grande tonelagem e de pequeno calado, capazes de aceder a esteiros, praias, portos e cais privativos. Entre as embarcações empregues preferencialmente nos trabalhos de carga e descarga da frota de navios fundeada no Tejo encontravam-se as fragatas e os varinos, com motor à vela, utilizados de acordo com preferências de navegação, tonelagem e acessos” lê-se no livro “Estaleiro Naval de Sarilhos Pequenos” numa edição da Câmara Municipal da Moita.

O varino Amoroso, à semelhança de outras embarcações tradicionais do Tejo, desempenhou um papel de extrema importância para a vida socioeconómica do estuário do maior rio português. Foto: David Belém Pereira/mediotejo.net

“Este tipo de barcos foi, de facto, muito importante, porque nessa altura ainda não existiam as pontes sobre o Tejo e portanto todo o tráfego era feito através do rio, a principal via de comunicação, para transporte de mercadorias mas também de pessoas” explica Adelina Domingues.

Na década de 1970, sobretudo a partir da construção das pontes sobre o rio Tejo, “houve um desenvolvimento muito grande dos transportes por via terrestre e os barcos perderam a importância que tinham. A partir da década de 70/80 muitas destas embarcações foram abandonadas outras desmanteladas. Nessa altura no Seixal, alguns investigadores fizeram estudos e recolhas sobre este património e a Câmara Municipal adquiriu então, em 1991, quatro embarcações; uma delas foi o varino Amoroso” relata.

Embarcações em mau estado de conservação, sem qualquer tipo de utilização, grande parte encontrava-se acostada. “Foram reconstituídas, algumas no Seixal onde existiram diversos estaleiros de construção naval em madeiras, e outros também na Moita tal como existiram em Abrantes. O varino Amoroso foi então reconstruído. A partir de 1995 começou a fazer passeios no Tejo. A Câmara conservou estas embarcações, recuperou-as, integrou-as. No Ecomuseu Municipal do Seixal é património, está inventariado, está documentado e foi reconvertido em embarcação de recreio. Ou seja, é um objeto de museu mas navegante. Património flutuante porque é usado no rio realizando passeios” explica.

Aquando da reconstrução “tentou-se manter todos os aspetos históricos mais importantes mas para a tornar mais funcional e para poder realizar estes passeios foi-lhe adaptado um motor” por ser uma embarcação à vela e a remos, acrescenta Adelina.

Uma relação das embarcações de tráfego fluvial registada como novas (varinos, fragatas ou outras em madeira, acima de 20 toneladas) nos livros da delegação Marítima do Barreiro, desde 1914 até 1936, permite-nos compreender o negócio da construção naval das embarcações tradicionais do Tejo. O varino Amoroso também consta desses registos sem no entanto constar o preço, mas o mesmo construtor, Manuel Maria Duarte, de Barreiras do Tejo, construiu em 1920 o varino António, mais pequeno nas suas 35 toneladas, que vendeu pelo preço de 2700 escudos (cerca de 13 euros).

O Amoroso apresenta um comprimento de 24,25 metros, com uma boca de 6,22, metros e um pontal de 2,40 metros. Possui uma armação de vela latina quadrangular e estai, numa área vélica de 197,84 metros quadrados. Um varino que pesa 76,30 toneladas. Créditos: David Belém Pereira

Nos dias de hoje, a manutenção de estaleiros “com plano inclinado ou meramente instalados sobre as areias das praias da zona ribeirinha do concelho da Moita constitui reflexo de uma economia marítima que se alargou excecionalmente no tempo, muito para além do que seria expectável em termos de viabilidade económica. Os últimos estaleiros a funcionar acabam também por resultar, muitas das vezes, nos últimos portos de abrigo e simultaneamente em cemitérios das carcaças das embarcações centenárias, que fizeram a história do Tejo e dos lugares do Tejo. Os que resistem, como o estaleiro de mestre Jaime, transformaram-se em museus vivos de uma arte de trabalho em extinção” descreve ainda o mesmo livro.

Para além disso, verificou-se outra mudança significativa, ou seja, a substituição das embarcações de madeira pelas de ferro e aço. Estes fatores contribuíram para o encerramento de vários estaleiros de construção em madeira, subsistindo na atualidade aqueles que reconverteram a sua atividade para a utilização de novos materiais.

Adelina Domingues indica que, em tempos, a conservação e manutenção das embarcações decorreu em estaleiros navais do Seixal “enquanto existiram. Não havendo tem sido sobretudo no estaleiro da Moita, o Estaleiro Jaime Costa, apesar das fases difíceis, mas ainda faz manutenção deste tipo de embarcações”.

Varino Amoroso. Créditos: David Belém Pereira

O estaleiro de Sarilhos Pequenos tem recebido a quase totalidade de embarcações tradicionais que compõem a frota marítima de parte das autarquias que confinam com o Tejo, como é o caso do varino Amoroso.

No Seixal, ainda existe o estaleiro Naval Tagus “mas mais dedicado a outros materiais que não a madeira” diz Adelina. Contudo assegura “uma parte da manutenção”.

A técnica confirma ainda que a conservação de uma embarcação tradicional “é bastante onerosa. Nas últimas décadas correu-se o risco do desaparecimento de todos os estaleiros navais que trabalham em madeira. Uma das dificuldades que a Câmara tem enfrentado ao longo destas décadas” dá conta.

Varino Amoroso. Créditos: DR

Assim, um passeio no Amoroso assemelha-se a uma viagem no tempo, num museu vivo, embora com itinerários previamente estabelecidos. Pelo estuário do rio Tejo navega-se com motor, mas por momentos à vela com recurso às tais técnicas tradicionais.

“As pessoas gostam dos passeios, algumas ficam fascinadas. É muito agradável! A certa altura o mestre pára o motor e o momento em que se navega só à vela, é único” assegura Adelina Domingues.

Registe-se que apesar de ir celebrar 100 anos, o barco abrantino que se passeia pelo Seixal, a nossa equipa de reportagem observou uma outra embarcação mais antiga que também navega no Tejo. Um bote de fragata portanto mais pequeno. O Baía do Seixal conta 125 anos, tem o seu primeiro registo datado de 1895… mas não é abrantino.

A embarcação Baía do Seixal. Créditos: David Belém Pereira

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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1 Comentário

  1. BOM TRABALHO É DE ELOGIAR. PRECISA SER MAIS DIVULGADOS OS PASSEIOS DESATAS MARAVILHAS FLUTUANTES. PATRIMÓNIO PORTUGUÊS INCOMPARÁVEL. POSSO FAZER LIVROS DIGITAIS SOBRE A HISTÓRIA DESTAS EMBARCAÇÕES. ESTOU AO VOSSO DISPOR. DESEJO-VOS O MAIO SUCESSO.

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