Na edição de 2020 do Festival de Filosofia de Abrantes, um evento que decorreu totalmente online, as cidades de hoje e as problemáticas do mundo atual foram temas em discussão, nomeadamente, durante a transmissão em direto do Festival com Onésimo Teotónio Almeida e alunos das Escola Dr. Manuel Fernandes e Dr. Solano de Abreu. Os migrantes, o paradoxo da tolerância, a democracia, a liberdade de expressão foram questões colocadas pelos estudantes numa conferência com o mote ‘Quem não é da sua terra não merece ser de parte nenhuma’.
Afinal “os seres humanos levam anos a crescer porque nascem muito incompletos”. A afirmação é de Onésimo Teotónio Almeida durante a única conferência do Festival de Filosofia de Abrantes de 2020 transmitida online que não foi previamente gravada.
Sobre o tema ‘Quem não é da sua terra não merece ser de parte nenhuma’, o filósofo explicou que “o cérebro vai precisar de tempo para inteiramente se expor ao ambiente em que vai habitar. Em linguagem informática, vai deixar-se formatar pelo ambiente que o rodeia: as cores, os cheiros, os sons, tudo vai moldá-lo. Sobretudo até atingir a puberdade, a informação que lhe chega vai marcá-lo fortemente. É assim que a língua usada para comunicar pelas pessoas que a rodeiam numa criança vai passar a ser a sua língua – a língua materna”, disse, notando que “até o seu sotaque vai ficar sendo o sotaque que escutou e aprendeu desde tenra idade e mantê-lo-á igual toda a vida se permanecer sempre no mesmo ambiente e nada fizer para o mudar”.
Onésimo Teotónio Almeida falava perante uma plateia de jovens alunos das escolas abrantinas Dr. Manuel Fernandes e Dr. Solano de Abreu, que se encontravam do outro lado do ecrã e do outro lado do Atlântico, situação com a qual o professor afirmou estar familiarizado.
Contou que há meses dá aulas exclusivamente via Zoom, à semelhança do que agora fez no Festival de Filosofia de Abrantes. “Costumo dizer que vivo num Zoomlógico, e sei bem quão difícil é manter interessados os jovens que estão do outro lado do ecrã, bem longe. Tenho uma aluna num seminário que vive no Tibete, pois este semestre os alunos não foram autorizados a vir para a universidade, e ela acorda às duas e meia da manhã para começar a aula às 3, quando são 3 da tarde nos EUA. Os meus alunos estão espalhados por 12 fusos horários”, relatou.

Mas as suas primeira palavras neste terceira edição do Festival de Filosofia de Abrantes expressaram dificuldade. “Falar de Filosofia a jovens não é nada fácil e muito mais difícil se torna fazê-lo por Zoom, pior ainda quando se trata de uma conversa transatlântica”.
E de facto a conferência com o tema ‘Quem não é da sua terra não merece ser de parte nenhuma’ que teve lugar na quinta-feira no âmbito do Festival de Filosofia de Abrantes, enfrentou várias dificuldades técnicas e, por causa disso, sofreu um atraso de 45 minutos. Apesar das peripécias, a conversa moderada por Francisco Lopes aconteceu.
Nela Onésimo Teotónio Almeida explicou que a organização do Festival de Filosofia de Abrantes lhe havia pedido um título para a sua intervenção, tendo o filósofo enviado cinco opções, um deles o tema escolhido pela organização para falar da importância do local onde nascemos e crescemos na ligação com as problemáticas do mundo atual.
A nossa terra “marca-nos profundamente. Os animais são muito diferentes dos seres humanos. Minutos depois de nascer, um golfinho está a nadar. Em menos de uma hora, uma girafa está a andar. Em dois dias as aves saem voando do ninho. Cada animal repete o modelo de vida dos progenitores”, referiu.
O professor estudou no Seminário de Angra do Heroísmo, bacharelou-se na Universidade Católica de Lisboa. Desde 1972 nos Estados Unidos, fez mestrado e doutoramento em Filosofia na Brown University, onde é catedrático no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, no Wayland Collegium for Liberal Learning Renaissance and Early Modern Studies da mesma universidade, lecionando cursos interdisciplinares sobre valores e história cultural e das ideias.
No seu discurso, Onésimo Teotónio Almeida refere que além de ficarmos marcados “passamos a considerar bom aquilo que temos e somos. Passamos a usar os nossos hábitos como bitola para medir os outros. No fundo, é precisamente o que Protágoras intuitivamente queria dizer com: ‘o homem é a medida de todas as coisas; das que são, que elas são: das que não são, que elas não são’”, ou seja, o lugar em que crescemos cresce em nós.
Confessou a sua hesitação entre cinco títulos: O lugar em que crescemos cresce em nós; Identidade – o carimbo do lugar que nos molda; Eu e a minha circunstância – eu e o meu ambiente circunstante; Crescer como as árvores – os ramos alargam-se, as raízes aprofundam-se; e o escolhido: Quem não é da sua terra não merece ser de parte nenhuma.
Segundo o filósofo “qualquer um deles está dentro do tema que me propuseram: A cidade, termo português que vem do latim – civitas – que é o lugar onde há vida civil, isto é, pessoas de todo o género cruzando-se no dia a dia, diferentemente do mundo rural onde a comunidade é sobretudo literalmente a familiar e aquela com que se está familiarizado”.

Lembrou que os gregos chamaram polis à cidade, “por sinal, a palavra que deu origem ao termo político, pois na verdade é sobretudo na cidade que as questões da vida comum surgem com mais relevância. No mundo rural predominava o regime patriarcal e as normas sociais eram as aprendidas na família durante os anos de formação”.
Hoje “estamos muito longe desse tipo de vida. No mundo moderno, globalizado, achamo-nos, desde o momento em que começamos a atinar com os botões controladores da televisão e do telemóvel, instantaneamente globalizados. Vivemos todos na polis, na civitas, em sociedade, interligados, interconetados; daí estarmos todos sujeitos às normas que regulam a vida em sociedade”.
E neste mundo global, perante os alunos de duas escolas de Abrantes, Onésimo Teotónio Almeida considerou não haver nada de errado “em lutar pela nossa equipa, apoiá-la e fazer com que ela ganhe. Se os outros fizerem o mesmo, estaremos todos a beneficiar pois o esforço de uma equipa leva a outra a esforçar-se igualmente para fazer o seu melhor. É sadio”.
Contudo, sublinhou, “na vida não será preciso – e até nem convém – estarmos sempre competindo. Uma atitude desse tipo teria as consequências nocivas, por exemplo, dos nacionalismos exacerbados e dirigidos para o conflito em vez da coexistência pacífica das diferenças”, nota.
Aliás, a democracia e os extremos foram os principais temas questionados pelos alunos, sendo que cada escola colocou três perguntas ao professor que questionaram sobre os migrantes, os Estados Unidos e Donald Trump, os partidos políticos no assento no Parlamento que colocam em causa a democracia, a liberdade de expressão ou o paradoxo da tolerância.
A esse propósito Onésimo Teotónio Almeida lembrou que um filósofo inglês dizia que “quando somos tolerantes com os intolerantes, os tolerantes perdem”. Ou seja, “a única vez que temos de ser intolerantes é com os intolerantes”, defendeu. Embora a ideia de tolerância atualmente tenha caído em desuso “porque achamos que tolerante é uma atitude demasiado condescendente. Essa ideia hoje está traduzida em direitos”, disse o professor.
Disse ainda que em sociedade, “para que a nossa cidade, o meio em que vivemos, possa beneficiar da interação de todos. Quanto mais cada um de nós se valorizar, mais talentos terá para serem aproveitados pela equipa, pelo coletivo, pela civitas, pela polis. E não há dúvida que quanto mais diversificados forem os talentos dos membros envolvidos, mais rico será o coletivo, a totalidade, a soma das diversas partes. Hoje Portugal voltou a ser um país heterogéneo, como Lisboa foi quando esteve na vanguarda da Europa no século XVI. Há que integrar toda a diversidade que só nos enriquece. A nossa vida comunitária só terá a ganhar com isso. Seremos todos a valorizar-nos”, defendeu.

Ao fim e ao cabo, é a isso que se dá o nome de democracia. “O importante é percebermos que ela não nos cai do céu. Antigamente é que se acreditava no poder divino dos reis. A democracia, pelo contrário, nasce do chão e cultiva-se. Somos nós que a construímos e a mantemos. Os edifícios da cidade podem já existir há séculos, mas a civitas, essa é diariamente construída por nós”, concluiu.
Com o alto patrocínio do Presidente da República, o Festival de Filosofia de Abrantes refletiu nesta edição sobre a “Cidade, árvore que nos abriga e raiz que nos sustenta”, num desafio sobre o que são atualmente as cidades e o que fazemos delas. O Festival de Filosofia de Abrantes é organizado desde 2017 pelo Município de Abrantes. Nesta conferência coube ao vereador da Câmara Municipal com o pelouro da Cultura, Luís Dias, abrir a sessão.
Depois de um ano de interregno, o Festival de Filosofia decorreu num formato diferente das edições anteriores, com o programa concentrado num só dia, devido à situação de pandemia de covid-19, sendo a maioria das comunicações previamente gravadas e transmitidas ‘online’ nos canais digitais do município de Abrantes.