Na tertúlia à volta do livro 'O povo que ainda canta' na Biblioteca Municipal António Botto em Abrantes (da esquerda para a direita) António Tomás, Raúl Grilo, Elisabete Pereira e José Moças.

Nasceu de um caldo de vozes, músicas, rimas, tradições populares, de pessoas e das suas canções. Trata-se de uma edição com a série completa (26 episódios) da RTP2 ‘O Povo que Ainda Canta’ e como extra ‘Cancioneiro Musical’ com filmagens nunca emitidas na RTP. O roteiro das viagens do realizador Tiago Pereira, depois de quatro anos imparáveis em torno da música portuguesa nas suas mais variadas expressões. ‘O Povo que Ainda Canta’ contou com a apresentação de José Moças, diretor da editora Tradisom, esta terça-feira à noite, na Biblioteca Municipal António Botto, em Abrantes. Em tertúlia à volta do livro estiveram ainda António Tomás (Casa do Povo de São Facundo), Elisabete Pereira (Orfeão de Abrantes) e Raúl Grilo (Grupo Etnográfico ‘Os Esparteiros’ de Mouriscas), com apontamentos coreográficos e musicais.

O livro ‘O Povo que Ainda Canta’ tem um pai, o realizador Tiago Pereira, uma ‘mãe’, a obra de levantamento da música tradicional portuguesa levada a cabo por Michel Giacometti nos anos de 1970, e um padrinho, o especialista no estudo, recuperação e edição de fontes históricas de música, José Moças.

Tiago Pereira ao conhecer a obra de Giacometti aventurou-se no terreno “e começou a fazer vídeos” para o projeto ‘A Música Portuguesa a Gostar dela Própria, contou José Moças. O produtor musical, que aposta em edições exclusivas, esteve em Abrantes a apresentar o livro editado pela Tradisom – Produções Culturais, explicando que o trabalho de Tiago Pereira, embora mais contemporâneo, nasce das mesmas raízes de Giacometti, abordando culturas e tradições associadas à música portuguesa, indo às regiões que mantêm cantares típicos.

Tiago Pereira “recolheu uma imagem da região”, refere. E tem quatro páginas com Adélia Garcia, figura incontornável no seu trabalho, que faleceu no dia 31 de dezembro de 2016. Figura igualmente “retratada por Michel Giacometti, talvez uma das mais importantes da música portuguesa, com um repositório incrível” opina José Moças.

Admitindo que “ninguém fica rico a produzir” trabalhos ligados à música tradicional portuguesa, Moças justifica a aposta da Tradisom na preservação cultural. “Esta é a nossa riqueza. Um trabalho de paixão e de gosto, um prazer” sublinha. Sobre a recetividade do público o produtor disse ao mediotejo.net que acontece muito “através das apresentações realizadas por todo o País” tal como aconteceu ontem à noite na Biblioteca Municipal de Abrantes.

O objetivo deste trabalho “é essencialmente de afetos e ligação com as pessoas. O Tiago quando fez estes filmes procurou fazer um registo para preservar a imagem e a cultura dessas pessoas mas também para elevar-lhes a auto-estima. A maior parte não tem noção do valor absolutamente único que têm estas músicas”, diz.

Durante um dos apontamentos musicais da noite na Biblioteca Municipal de Abrantes

Durante a tertúlia à volta do livro, António Tomás sustentou que “a música tradicional tem de ser saboreada. E está sempre ligada aos velhos” contudo em São Facundo há “muita gente nova”. Observa com interesse esses jovens que “não tendo muito contacto com estas melodias, reagem bem”. António Tomás considera “muito importante” a publicação de edições que levem ao público a cultura portuguesa, “não apenas para registar, porque esta coisa de congelar a tradição parece contrariar a própria natureza do que é tradicional, em constante evolução” mas também para captar “ a juventude que não tem aqueles recursos de memória que tinham os nosso avós” sendo “bombardeados” com música anglo-saxónica dita comercial.

Elisabete Pereira explicou que no Orfeão de Abrantes “quer no grupo de música popular quer no coro misto” são cantadas muitas peças “de Michel Giacometti com harmonização de Fernando Lopes-Graça”. O trabalho de divulgação, “de passar oralmente de geração em geração é importantíssimo”, afirma.

Por seu lado, o Grupo Etnográfico ‘Os Esparteiros’ de Mouriscas preza “executar as músicas que foram feitas na aldeia” refere Raúl Grilo. “Aquelas que o povo criou nas suas horas livres sem saber que estava a criar aquilo que hoje é o folclore”. Raúl Grilo indicou que as recolhas foram realizadas “quando ainda existiam muitas pessoas a cantar e a tocar.” Sendo as mais de 20 canções interpretadas pelo ‘Os Esparteiros’ “todas genuínas, sem alterações, mesmo populares” garante. “Portugal é um país riquíssimo em tradições e Abrantes o coração de Portugal”.

E se atravessamos uma fase difícil de transição há que “incutir nos  jovens este gosto para não deixar cair em esquecimento aquilo que o nosso povo outrora fez”, acrescentou.

Contrariando um pouco tal temor e dando exemplos de perseverança como o da “viola campaniça” quase extinta há 30 anos e do cante alentejano, José Moças assegura que “há cada vez mais jovens a cantar” e a tocar músicas tradicionais portuguesas.

Apontamento musical durante a apresentação do livro ‘O povo que ainda canta’ na Biblioteca Municipal António Botto, em Abrantes

Além da tertúlia, o evento na Biblioteca Municipal de Abrantes foi coroado com apontamentos musicais levados a cabo pela pequena Maria ao lado de António Tomás e pelo Cant’Abrantes, um grupo de música de raiz tradicional formado no seio da associação de Cultura e Recreio Orfeão de Abrantes.

A série de 26 episódios, produção da ‘Música Portuguesa a Gostar Dela Própria’ (MPAGDP) surge na sequência de um trabalho extenso de realização de documentários que mostram várias facetas da música portuguesa através dos seus protagonistas. De Norte a Sul do País, Tiago Pereira e a equipa da MPAGDP partilharam a criatividade de um povo que não quer ser esquecido. Esta série documental, que é um trabalho de autor, está ligada a um canal de vídeos online que desde há cinco anos divulga práticas expressivas que se mantém vivas, que não pertencem só ao passado e que têm sido registadas nos contextos onde acontecem, sem encenações.

Mogadouro, Dão-Lafões, Gouveia, Baixo Minho, Baixo Alentejo, Douro, Porto, Miranda e claro o Ribatejo, episódio exibido na Biblioteca António Botto, sem esquecer os arquipélagos da Madeira e dos Açores, entre outras regiões, são alguns dos territórios por onde passou a MPAGDP e que são palco dos episódios de ‘O Povo que Ainda Canta’, por entre milhares de quilómetros percorridos com o equipamento na bagagem.

A capa do livro ‘O Povo que Ainda Canta’

Com o livro, o leitor (e ouvinte) conhece fragmentos das vidas de quem se dedica a instrumentos específicos, como as gaitas-de-fole ou os adufes, seja a tocar ou a construí-los, e de quem mantém viva a tradição das danças de matriz rural.

Tem 92 páginas elaboradas como um diário de bordo das gravações, ilustradas por cerca de 300 fotografias, uma entrevista com o realizador e oito dvd’s que contêm 26 episódios da série documental produzida em 2015, mais um conjunto de vídeos editados após o final da série e chamados “Videocancioneiro I e II”.

O livro, que foi lançado em Lisboa a 21 de janeiro, no sexto aniversário do projeto “Música Portuguesa a Gostar Dela Própria”, e está à venda nas livrarias pelo preço de 65 euros. Na noite de terça-feira, em mais uma sessão de divulgação do trabalho, a obra foi vendida na Biblioteca António Botto por 40 euros.

O título da obra remete para o “Povo Que Canta”, um programa televisivo de recolha antológica de música popular portuguesa da RTP, de 1971, nascido de uma parceria entre o realizador Alfredo Tropa, o musicólogo Michel Giacometti e o compositor Fernando Lopes-Graça.

A “Música Portuguesa a Gostar Dela Própria” começou por ser um canal na plataforma Vimeo, em 2011, e seis anos depois é uma associação cultural que tem um portal ‘online’, com cerca de 2600 vídeos, nos quais se podem ver músicas que vão de Sérgio Godinho ao Grupo de Cantares de Sobral do Pinho.

Vencedor do prémio Megafone e fundador do projeto Sampladélicos, o realizador Tiago Pereira assinou filmes como “Porque Não sou o Giacometti do século XXI” (2015), “Não me importava morrer se houvesse guitarras no céu” (2012), “Sinfonia Imaterial” (2011), “Arritmia” (2007) e “11 burros caem no estômago vazio” (2006).

Em 2013 foi o curador do álbum de recolhas “Deem-me duas velhinhas, eu dou-vos o universo”.

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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