Fotografia de Eurico Heitor Consciência com Zeca Afonso, nas Jornadas Culturais de Abrantes (maio de 1970). Foto cedida por José Martinho Gaspar e incluída na Zahara n.º 14.

‘Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo’
Sophia de Mello Breyner

A revolução arrancou na madrugada de 25 de abril de 1974 quando, vinte e nove minutos depois da meia noite, a Rádio Renascença difundiu a senha, a música Grândola Vila Morena, de Zeca Afonso. As unidades militares envolvidas abandonaram os quartéis e avançaram em direção aos alvos que deveriam ocupar. As estações de rádio, a televisão, o aeroporto e os ministérios foram rapidamente controlados pelas forças revolucionárias. O comando das operações do golpe encetado pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) esteve a cargo de Major Otelo Saraiva de Carvalho.

O chefe do governo, Marcelo Caetano, e outros membros do executivo procuraram refúgio no quartel-general da GNR, no Largo do Carmo, em Lisboa. Na sequência do cerco efetuado pelas tropas do Capitão Salgueiro Maia, Marcelo Caetano acabou por se render.

A população portuguesa reagiu com entusiasmo à revolução. Embora aconselhados pela televisão e pelos jornais a permanecerem em suas casas, muitas pessoas juntaram-se, nas ruas, aos soldados. Algumas mulheres começaram a distribuir cravos vermelhos pelos soldados, que os colocaram nos canos das espingardas, e rapidamente esta flor transformou-se no símbolo da revolução, da Revolução dos Cravos.

Num registo quase telegráfico, é assim que se pode contar o que aconteceu no dia 25 de abril de 1974, a que há que juntar as primeiras transformações que o país sentiu. Libertados os presos políticos, foram suprimidas as principais instituições do Estado Novo (PIDE/DGS, Legião Portuguesa, Ação Nacional Popular, Mocidade Portuguesa e Censura/Exame Prévio), abrindo-se espaço para a instauração de um regime democrático e pluripartidário.

Os anos de 1974 e 1975 ficaram ainda marcados pela independência das ex-colónias portuguesas em África e pelo regresso de mais de meio milhão de portugueses, os “retornados”.

A contestação ao Estado Novo vinha de longe, ainda que o Movimento de Unidade Democrática (MUD), nas legislativas de 1945, e o General Norton de Matos, nas presidenciais de 1949, tenham recuado com as suas candidaturas, por não disporem de condições de igualdade face aos candidatos do regime.

As eleições presidenciais de 1958, com uma dinâmica extraordinária em torno da figura do General Humberto Delgado, a ação de intelectuais e artistas de várias áreas e a contestação estudantil, a par da ação do Partido Comunista na clandestinidade, despertaram consciências num país que vivia adormentado.

Com a substituição de Salazar por Marcelo Caetano, em 1968, a “Evolução na Continuidade” fez-se “Primavera Marcelista” e, depois de criar espaço para alguma abertura, com a eleição de deputados da Ala Liberal nas listas da Ação Nacional Popular (ANP) ou com o regresso do exílio de D. António Ferreira Gomes, fez-se “Liberalização Bloqueada”.

A par de todas as restrições das liberdades, o prolongamento dos conflitos coloniais e a manifesta incapacidade para uma vitória militar, reconhecida em fevereiro de 1974 pelo General António de Spínola em Portugal e o Futuro, legitimaram a saída das tropas para a rua na noite de 24 para 25 de abril de 1974.

Fotografia de Eurico Heitor Consciência com Zeca Afonso, nas Jornadas Culturais de Abrantes (maio de 1970). Foto cedida por José Martinho Gaspar e incluída na Zahara n.º 14.

O DESPERTAR DE ABRANTES

A realidade abrantina, apesar de bastante fechada, rural e conservadora, viveu, desde finais dos anos sessenta, alguns rasgos de mudança. A instalação de novos estabelecimentos de ensino, nomeadamente da Secção do Liceu Nacional de Santarém, em 1967, e, muito especialmente, do Ciclo Preparatório, em 1968, fizeram chegar à cidade jovens professores, com consciência política e com a noção de que, através da sua ação poderiam, pela via pedagógica ou cultural, criar uma nova dinâmica local.

Alguns destes jovens docentes estiveram entre os fundadores, em 1969, o Cineclube de Abrantes e este, conjuntamente com uma multiplicidade de entidades locais, por proposta da Associação para o desenvolvimento da Região de Abrantes (A.R.A.), organizaram as Jornadas Culturais, em 1970 e 1971.

A primeira edição das Jornadas Culturais, com centenas de voluntários entre os organizadores, revelou-se particularmente rica e teve o condão de chamar a atenção do país para a cidade de Abrantes, colocando-a nas páginas dos jornais nacionais, na rádio e na televisão.

Na programação de 1970 surgiu um conjunto de atividades, como a presença de Zeca Afonso ou uma instalação (cemitério, em alusão às guerras coloniais) de Manuel Granjeio Crespo e Luiz Pacheco, no Jardim da República, que podem enquadrar-se numa dinâmica de oposição ao regime vigente.

Ainda que a oposição não se encontrasse organizada, existia um conjunto de personalidades que colaborava em comícios, campanhas eleitorais e auxiliava na distribuição de listas para votar, que tiveram, com a chegada do Dr. Eurico Heitor Consciência a diretor do jornal Correio de Abrantes, um novo meio para chegar à opinião pública.

O Correio de Abrantes fez esclarecimento e abertura de mentalidades e foi uma pedrada no charco daquele tempo – como, na altura, foi apontado pelo República e pelo Expresso (pela mão de Marcelo Rebelo de Sousa). Esta atitude, porém, levaria, em março de 1974, ao afastamento do seu diretor.

Também os Jogos Juvenis, com edições sucessivas entre 1970 e 1973, e as conversas de alguns mais politizados com jovens estudantes na biblioteca, terão contribuído para uma sucessiva consciencialização política dos mais novos.

Não é, pois, de estranhar que, em outubro de 1973, aquando da campanha para as legislativas, tenham ocorrido, em simultâneo, sessões de propaganda da ANP, no Cine-Teatro S. Pedro, e da CDE (Comissão Democrática Eleitoral), no Cine-Teatro de Alferrarede, com esta a ser vigiada por forte aparato policial.

*Especial Passos do Concelho 40 anos do 25 de Abril 2015

Texto de José Martinho Gaspar

José Martinho Gaspar nasceu em Água das Casas (Abrantes), na década de 60 do século XX, e vive em Abrantes. É Professor de História e Mestre em História Contemporânea. Desenvolve a sua ação entre aulas, atividades associativas (Palha de Abrantes e CEHLA/Zahara, mas também CSCRD de Água das Casas), leitura e escrita, tanto de História como de ficção, sendo autor de vários artigos e livros. Apaixonado por desporto, já não vai em futebóis, mas continua a dar as suas voltas de bicicleta. Afinal, diz, "viver é como andar de bicicleta: não se pode deixar de pedalar e quando surge um cruzamento escolhe-se o nosso caminho".

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