É ponto assente que não há direito maior do que o bem comum. E “há uma nova economia que emerge e que tem a natureza no centro das suas preocupações e do seu alinhamento. É um momento crítico em que temos de ser capazes de fazer um alinhamento, de facto, entre a ecologia e a economia”. Este apresenta-se como “um desafio muito complexo”, desafio que, defende Helena Freitas, tem de acontecer. “A alternativa é não conseguirmos manter os sistemas que suportam a vida no planeta”, começou por dizer a antiga coordenadora da Unidade de Missão para a Valorização do Interior.
Sobre a pandemia, observou que “já esquecemos” mas “a verdade é que sentimos que afinal somos mais vulneráveis, ajudou-nos a lembrar a nossa condição biológica”. Referiu igualmente que a pandemia “ajudou-nos a lembrar a nossa condição biológica” mas deu conta que durante o confinamento “quando estivemos todos em casa” a redução de CO2 foi de 7%, no entanto, precisamos de uma redução de 40% até 2030. Defende que o caminho passa por “subsidiar” as soluções do futuro.
Na palestra ‘A Natureza e a Valorização do Território na Economia’ promovida pela Academia Tubuciana de Abrantes, a professora catedrática da Universidade de Coimbra lembrou que “contamos com a natureza para nos fornecer comida, água e abrigo, regular o nosso clima e as doenças, manter os ciclos de nutrientes e a produção de oxigénio, e para nos proporcionar uma realização espiritual, oportunidades de recreação e recuperação, que podem melhorar a nossa saúde e bem-estar”.
Além disso, o planeta ainda nos serve de depósito para os nossos resíduos – dióxido de carbono, plásticos e outras formas de resíduos, notou.
Referindo áreas que são ameaça à biodiversidade e ao desenvolvimento sustentável considerou a poluição “um problema brutal” e exemplificou com o plástico, sublinhando que “vivemos rodeados de plástico. Usamos o plástico de forma insensata. 90% do plástico que está nos oceanos, que destrói as cadeias oceânicas, vem da terra”.

A agricultura intensiva e a perda da agricultura tradicional são outras ameaças à biodiversidade, identificadas por Helena Freitas. O sistema alimentar “foi transformado, manipulado por um setor da economia que começou a produzir de forma desligada dos territórios. A ideia foi sempre produzir intensamente, vender onde quer que seja e sem pensar sequer nas esterilidades deste tipo de produção. Não conseguimos incorporar na economia o custo desta produção”, afirmou, exemplificando com o caso de Almeria, em Espanha, onde existe sobre-exploração de recursos, referindo também “a forma sub-humana como compensamos quem trabalha arduamente” na agricultura intensiva.
Além disso, esta realidade é incompatível com os cuidados de saúde que exige a sociedade atual. “Estamos menos disponíveis para este tipo de realidade que deixámos acontecer e agora temos de desconstruir. Mas não é fácil! É uma novo paradigma agrícola. Este é um dos setores que deixámos ir ao extremo”, fez notar.
Outra realidade inquestionável e desafiadora é que, atualmente, o ser humano é maioritariamente urbano. “Em todos os continentes mais de 50% das pessoas vivem em meio urbano. E podemos mesmo dizer que os territórios rurais são muito mais urbanos do que aquilo que pensamos”.
Ora se a escolha do ser humano foi a cidade, tal “tem implicações tremendas: Quem alimenta? Quem garante bens e serviços? Quem abastece de água? Como retiro todo o lixo? As águas contaminadas? Como consigo introduzir a tal agenda da sustentabilidade”, interroga-se.

Helena Freitas, que atualmente dirige o Parque de Serralves, apontou igualmente a mobilidade. “Não podemos continuar a ter combustíveis fósseis. É a primeira das grandes mudanças, a forma como temos mobilidade e como garantimos que a atmosfera é saudável”, até porque, frisa, as alterações climáticas estão associadas aos cenários que temos e teremos no futuro.
Refere outros fatores “menos conhecidos”, como os ciclos biogeoquímicos, indicando a propósito da agricultura o azoto e o fósforo. “Temos utilizado intensamente azoto para conseguirmos melhor produtividade agrícola e hoje percebemos que tem um custo tremendo. Muitas das doenças que temos hoje do foro oncológico resultarão muito provavelmente desta questão. A média de azoto num solo da Holanda é 150 vezes maior do que no solo agrícola em África”, deu conta, referindo-se à necessidade de regeneração dos sistemas agrícolas devido à “terra contaminada”.
“A economia tem de respeitar, estar dentro das fronteiras planetárias”, afirmou, alertando para o facto de estarmos a “transgredir”.
No entanto, uma das áreas que dá um sinal inequívoco da necessidade de mudança é a já referida questão climática. Em 100 anos, explica Helena Freitas, “aumentámos em 40% os níveis de CO2, que teve implicações no aumento de temperatura do planeta. Aquilo que estamos a viver resulta das atividades humanas”.
A nível global, 2020 foi o segundo ano mais quente de que há registo, com uma temperatura média de 1,2ºC acima da média pré-industrial. Significa que já estamos a quatro quintos do caminho para o nível “seguro” de 1,5ºC, compromisso coletivo para tentar limitar o aquecimento global.
“São as emissões de CO2 da queima de combustíveis fósseis e as alterações de uso do solo que reduzem a capacidade da Terra para reduzir os gases com efeito de estufa. Os resultados já se fazem sentir: aumento da temperatura, degelo, subida do nível do mar, secas extremas, inundações e tempestades em todo o mundo”.

Apesar dos sucessivos acordos – a última Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (COP 27) decorreu em novembro passado no Egito – “não estamos a conseguir. Ainda estamos a aumentar cerca de 1% a 2% quando precisávamos de reduzir cerca de 5% a 7% ao ano. Infelizmente estamos numa trajetória de subida. Não há dúvida que Terra está a aquecer. O primeiro problema que temos de resolver é a transição energética”, insiste.
Falando de política económica, lembrou que “em vários momentos da nossa história, refletimos, invertemos, reduzimos e também na covid-19, naqueles meses que estivemos todos fechados em casa conseguimos uma redução na ordem de 7%. Precisamos até 2030 de reduzir 40%. Parece de facto um desafio inalcançável”, admite, apesar de dar conta de “dados positivos”.
“Teremos de deixar de subsidiar as soluções do passado e passarmos a subsidiar as soluções do futuro. Hoje já temos capacidade cientifica e tecnologia para fazer esse caminho. É mesmo uma questão de rutura com alguns interesses que nos colocam reféns do passado”, afirmou.
Relativamente à biodiversidade, a responsável deu conta de perda ativa de “uma enorme biodiversidade”, em particular alguns grupos, associados àqueles habitats que sofrem maior pressão. “Estamos a perder cem mil vezes mais espécies do que seria o seu padrão evolutivo normal”, garante exemplificando com os peixes de água doce e indicando o desaparecimento de 30% nas últimas décadas.
Ou seja, a influência do ser humano no planeta “é tão profunda” que “foi transformado e configurado” para responder às necessidades humanas “e não teria mal se essa espécie não fosse inteligente o suficiente para respeitar as outras”. Olhando para a biomassa animal na Terra, apenas 4% são mamíferos selvagens.
“Isto já é insustentável”, considera. A transformação dos habitats para responder à produção alimentar ocupa, neste momento, 40% do planeta.
“Se não fizermos a transição alimentar vamos continuar a ir buscar mais habitat que está normalmente disponível para outras espécies. Já não é possível usar mais, mesmo no espaço europeu já não conseguimos aumentar mais a área de produção. Há um desequilíbrio absolutamente inacreditável do nosso sistema alimentar”, considera.

Ora, as florestas integram essa apropriação, e consequentemente desaparece a floresta tropical. Por isso “a comunidade cientifica não tem dúvidas que as situações pandémicas tenderão a ser cada vez maiores e em particular com o desequilíbrio biológico que assistimos com a perda da floresta tropical. Quando desaparecem florestas tropicais, entre outras configurações, o que desaparecem são muitos hospedeiros de vírus, designadamente das comunidades fúngicas. Os fungos são organismos que conhecemos muito mal e vão ser muito importantes até para a produção alimentar”, refere.
Nesta sequência, a economia verde vai tentar trazer uma nova contabilização, nomeadamente questiona quanto vale uma floresta.
As florestas produzem bens privados que se comercializam e bens públicos que são difíceis de estimar. Não há uma contabilidade oficial total. Mas existem estudos que chegam a números aproximados sobre o valor da floresta: a floresta portuguesa produz o equivalente a 1,8 mil milhões de euros por ano. Quase metade refere-se a serviços dos ecossistemas.
Ou seja, a economia verde vai trazer num futuro próximo, para a contabilidade, os serviços que a natureza oferece, desde serviços de provisionamento (comida, madeira, fármacos, energia, fibras); serviços de regulação e manutenção (filtragem da água, decomposição, polinização, regulação do clima, controle de doenças); e até serviços culturais (estético, espiritual, crescimento intelectual, lazer e entretenimento).

Durante a palestra da Academia Tubuciana de Abrantes referiu também o Pacto Ecológico Europeu para lembrar que a Europa trabalhará sobretudo quatro eixos. Energia, Edifícios, Mobilidade e Indústria.
Especificamente no sentido de descarbonizar o sector da energia – 75% das emissões com efeito de estufa na Europa são de produção energética; na renovação dos edifícios porque 40% do consumo de energia tem origem nos edifícios; trabalhará para um transporte público e privado mais ecológico uma vez que 25% das emissões são responsabilidade dos transportes e haverá apoio à inovação das empresas porque a indústria europeia recicla 12% dos materiais. Segundo dados de 2018, a Alemanha é o país com maior quantidade de emissões de gases de efeito de estufa, seguida da Turquia, depois o Reino Unido, em quarto lugar a França, seguida da Itália e da Polónia.
O Pacto Ecológico Europeu “tem também uma agenda fortíssima para a reflorestação. 35% dos fundos europeus já neste quadro estão orientados para a mitigação climática e o próximo quadro vai reforçar isto”, afirmou sabendo do que fala uma vez que Helena Freitas trabalha no novo Programa Europeu para o Risco Climático, que está a ser desenhado para ser tornado público em 2024, e informar o próximo quadro europeu.
Portanto, o investimento “vai todo nesse sentido. A descarbonização da economia tem que acelerar para se atingirem as metas propostas para 2050. É o caminho inteligente e a inteligência acabará por prevalecer. Para transformar os sistemas sociais e económicos e promover a resiliência face aos impactos climáticos, o mundo vai ter que investir em soluções baseadas na natureza”.
Realizada no final de novembro, esta foi a última palestra do ano 2022 realizada pela Academia Tubuciana.

PERFIL:
Helena Freitas doutorou-se em Ecologia pela Universidade de Coimbra, em colaboração com a Universidade de Bielefeld, Alemanha, em 1993, e realizou um pós-doutoramento na Universidade de Stanford, EUA, entre 1994 e 1996. É Professora Catedrática na área da Biodiversidade e Ecologia no Departamento de Ciências da Vida da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra desde 2003, e detentora da Cátedra Unesco em Biodiversidade e Conservação para o Desenvolvimento Sustentável desde 2014. Foi Vice-Reitora da Universidade de Coimbra entre 2011 e 2015, com o pelouro das Relações Institucionais, Museus e Desporto. Entre 23 de outubro de 2015 e 10 de março de 2016 foi deputada e vice-presidente do Grupo Parlamentar do Partido Socialista. Entre 10 de março de 2016 e 18 de julho de 2017 foi Coordenadora da Unidade de Missão para a Valorização do Interior, tendo coordenado o Programa Nacional para a Coesão Territorial. Helena Freitas integrou o Conselho Geral da Universidade de Coimbra (2009-2011), foi Diretora do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra de 2004-2012, tendo elaborado e coordenado o seu programa de requalificação, Presidente da Liga para a Proteção da Natureza (1999 – 2002), primeira Provedora do Ambiente e Qualidade de Vida da cidade de Coimbra (2002 – 2005), fundadora e Presidente da Sociedade Portuguesa de Ecologia (2004 – 2013) e Vice-Presidente da Sociedade Europeia de Ecologia (2009 – 2012). Atualmente, é Coordenadora da unidade de investigação Centre for Functional Ecology – science for people and the planet , Coordenadora científica do FitoLab – Laboratório de Fitossanidade do Instituto Pedro Nunes, e integra o Conselho Científico do Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra. Em julho de 2019 foi selecionada para o Mission Board for Climate Change Adaptation, including Societal Transformation da Comissão Europeia, Programa Horizonte Europa, e em agosto de 2019 foi nomeada Ponto Focal de Portugal para o IPBES – Intergovernmental Platform for Biodiversity and Ecosystem Services (ONU). É Diretora do Parque de Serralves. As áreas científicas de especialidade relacionam-se com: Ecologia; Ecossistemas Mediterrânicos; Floresta e Agricultura; Ecologia e Gestão de espécies exóticas e invasoras; Conservação da Natureza, Biodiversidade; Fisiologia da árvore; Diversidade de Plantas e Fungos; Tolerância ao Stress e Bioremediação; Política ambiental; Bioenergia; Conservação da Natureza; Ecologia microbiana; Ecologia e Sociedade. Foi coordenadora ou participante em vários projetos e consórcios nacionais e internacionais, incluindo o Millennium Ecosystem Assessment. Orientou ou coorientou 20 dissertações de mestrado e 34 teses de doutoramento. É autora em mais de 300 publicações científicas internacionais indexadas e várias obras de promoção e divulgação da ciência. Publica regularmente na imprensa nacional e regional, em particular sobre ambiente, territórios e sociedade, planeamento e políticas de desenvolvimento com base no conhecimento. Em março de 2000 foi-lhe atribuída o grau de Comendador na Ordem do Infante D. Henrique pelo Presidente da República, Jorge Sampaio.