Futebol feminino "é mais um passo na afirmação da mulher" - Joana Marchão. Foto: Getty Images

Relembrando a infância, Joana Filipa Gaspar da Silva Marchão diz que brincava muito com bonecas na companhia da sua prima, apesar de andar sempre com a bola debaixo do braço. “A ideia de que as meninas que jogam futebol não brincam com bonecas não é bem assim, pelo menos na minha experiência”, afirma a atleta, que diz ter herdado da família os genes do desporto.

Joana Marchão, hoje com 26 anos e 39 internacionalizações pela seleção nacional, começou a jogar futebol no Sport Abrantes e Benfica, depois passou pelo União de Tomar, ainda muito jovem e onde competia com mulheres feitas, de seguida foi para o Clube Atlético Ouriense (Ourém), onde foi duas vezes campeã nacional. Aos 18 anos assinou pelo Sporting Clube de Portugal onde esteve seis anos. Recebeu convites de Inglaterra, Espanha e França mas acabou por optar pelo Parma, de Itália, onde teve a oportunidade de jogar em 2022, pela primeira vez, no estrangeiro.

Joana Marchão vai representar este ano o Servette FC, da Suíça. Foto: SFC

Antes de ir para o Parma, Joana conquistou 8 títulos no nosso país: quatro campeonatos, duas supertaças e duas taças de Portugal. Foi convocada para a seleção nacional para representar Portugal no Campeonato do Mundo que decorre na Nova Zelândia, e cuja final se disputa este domingo, entre Espanha e Inglaterra.

Fomos falar com Joana Marchão durante um jogo de futebol, no caso masculino, no Pego (Abrantes) onde decorria o XV Torneio Internacional de Iniciados, poucos dias antes de ter assinado contrato com o Servette FC, da Suíça, um segredo bem guardado até ao dia 17 de agosto.

Joana Marchão apadrinhou o arranque do XV Torneio Internacional de Iniciados que decorreu de 11 a 13 de agosto em Abrantes. Créditos: mediotejo.net

Começou a jogar no Sport Abrantes e Benfica mas não esconde o seu sportinguismo, esteve seis anos no Sporting Clube de Portugal. Como foi jogar de leão ao peito?

Foi um sonho tornado realidade. Quando comecei a jogar futebol, em miúda, o Sporting não tinha futebol feminino e era um sonho impensável. Nunca pensei, realmente, que pudesse acontecer. E quando o Sporting abriu portas ao futebol feminino, terem-me convidado para esse projeto foi uma honra enorme. Um sonho. Nem hesitei, disse logo que sim.

Treinou com equipas masculinas até aos 13 anos, na época era a idade limite para as equipas mistas. Como foi essa batalha para fazer carreira no futebol de 11?

Felizmente o cenário alterou-se. A hipótese de formar equipas mistas, que já ocorria nos escalões mais jovens, foi alargada aos juvenis, ou seja sub-17. Na minha altura era até aos 13 anos, houve uma evolução muito grande e ainda bem. Mas a evolução de equipas no futebol feminino é muito virada para as seniores, as meninas pequeninas ainda não têm clubes para jogar com meninas. Essa evolução ainda está a acontecer, há ainda um longo caminho a fazer. A batalha foi dura, felizmente tenho uma família que também nunca desistiu e se hoje estou onde estou e conquistei o que conquistei também é muito por eles. Contra tudo e contra todos, continuámos sempre na luta.

Como foi a experiência quando assinou pelo União de Tomar saltando diretamente dos infantis para o escalão sénior?

Algumas jogadoras tinham idade para serem minha mãe. Foi um grande choque porque até ali jogava com rapazes de 13 anos e passei a jogar com mulheres de 30 anos. Foi uma diferença brutal mas tive sorte com a equipa. Todas me receberam de braços abertos e nunca nenhuma me fez sentir à parte do grupo, mesmo sendo muito mais velhas que eu. Certamente aprendi muito porque homem e mulher, claro que há diferenças, não é a mesma coisa. Na nossa luta pela igualdade; não queremos jogar com os homens, queremos ter as mesmas condições dos homens. Sabemos perfeitamente que, mulheres e homens, é impensável jogarmos no mesmo campo ao mesmo tempo, no entanto queremos jogar no mesmo campo em horas diferentes.

Futebol feminino “é mais um passo na afirmação da mulher” – Joana Marchão

O futebol sempre foi o seu mundo. Está-lhe no sangue ou deve-se ao reconhecido papel que a sua família desempenhou no desenvolvimento do futebol no concelho, desde logo o seu avô, o seu pai, o seu irmão?

Sim. Não conheço outra coisa senão o mundo do futebol. O meu avô jogava futebol, aqui no concelho de Abrantes, o meu pai, o meu irmão e outros familiares como tios e primos… aliás, a minha tia, irmã do meu pai, jogou futebol na juventude. É genético. Não tinha como não ser assim.

Joana Marchão. Foto: :DR

Ainda jogou futsal em Mação mas pelo que é público, não gostou. Disse na altura que “falta o cheiro a relva”. Se não fosse jogadora de futebol o que é que poderia ter sido profissionalmente?

Naquela época, quando andávamos a tentar perceber se desistia do futebol ou se continuava, surgiu a oportunidade de experimentar o futsal. Fui duas ou três vezes aos treinos mas disse “não!”. Faltava-me o futebol, o campo aberto, a relva, as chuteiras, tudo aquilo a que estava habituada. Apesar de ser igualmente uma bola, é muito diferente. Se não fosse jogadora de futebol… é uma pergunta muito difícil, porque a minha vida sempre foi o futebol e a partir do momento em que se tornou uma realidade, em que poderia fazer do futebol a minha carreira, tudo o resto ficou para trás e nem sequer penso sobre isso. A minha vida é o futebol, sempre foi e sempre será, pelo menos até as pernas aguentarem.

Na adolescência, o craque argentino Leonel Messi era o seu jogador preferido. Ainda é?

O Messi é o jogador que é. Mas agora, crescida, a minha admiração vai mais para o Cristiano Ronaldo. É trabalho. Talento obviamente… quem diz que o Cristiano não tem talento também não diz certo, mas crescendo e dando valor a outras coisas fora do campo, acho que o Cristiano é o maior dos exemplos que existe no futebol, que sempre houve, e duvido que haja alguém para bater isso. Mais que a vocação, o trabalho é fundamental. Podemos ter muito talento mas sem trabalho não vamos a lado nenhum.

Neste Campeonato do Mundo, que ainda decorre, Portugal perde com os Estados Unidos e a seleção nacional volta para casa. Passados estes dias, e passada a tristeza inicial, como comenta esta experiência de ter ido até à Nova Zelândia?

Foi uma experiência incrível. Nunca nos meus sonhos pensei representar Portugal num Mundial. No futebol, é a maior competição de todas e nós fomos com a consciência que era a nossa primeira vez, que éramos a equipa menos favorita, no entanto, saímos muito tristes mas com a sensação que poderíamos ter chegado mais longe porque fizemos um torneio incrível! Jogámos de olhos nos olhos com as vice-campeãs do mundo e com as bicampeãs do mundo. Foi por aí que ficámos com aquela desilusão, do que poderíamos ter feito, mas ao mesmo tempo muito orgulhosas de tudo o que fizemos. Foi o poste! Ainda hoje custa.

Joana Marchão no Pego (Abrantes) aquando do XV Torneio Internacional de Iniciados. Créditos: CMA

Tinha a noção que, em Portugal, as pessoas acordavam cedo para ver a seleção jogar e debatiam depois o jogo, durante o dia, nas redes sociais?

Comentámos isso na Nova Zelândia. Com a diferença horária, 11 horas, não tínhamos a noção real do que se estava a passar em Portugal. Porque o jogo para nós era de noite e acabando o jogo íamos dormir. E em Portugal era de manhã, ainda tinham o dia todo para digerir o jogo, para falar do jogo. Lá não chegava essa perceção. Mas sentimos todo o apoio e mais algum de pessoas que todos os dias nos mandavam mensagens, que nos desejavam boa sorte e que diziam estar super orgulhosas de nós. Isso sentimos sempre.

Sente que a seleção tem evoluído a cada jogo que passa?

Claro. Se formos olhar para trás, para o nosso percurso, há quatro, cinco anos fomos aos Estados Unidos e não tínhamos hipóteses de jogar olhos nos olhos com elas e agora viu-se que, sendo elas bicampeãs do mundo, nós estivemos por cima o jogo todo. E isso é fruto de toda a evolução, de todo o trabalho da Federação, dos clubes, da jogadora portuguesa, dos treinadores, e está à vista no Mundial que fizemos.

Joana Marchão foi homenageada este mês pela Câmara de Abrantes pela sua participação no Mundial de Futebol Feminino. Foto: CMA

Quando é que acha que Portugal começou a ganhar o respeito de outras seleções?

Provavelmente há dois ou três anos. Quando fizemos o apuramento para o Europeu, infelizmente perdemos no play off e fomos por motivos não muito agradáveis. Mas todo esse apuramento foi um salto enorme para a nossa seleção porque batemos recordes internos e foi um salto também de motivação. Cada vez mais as seleções olham para nós com: ‘cuidado, elas não são aquele Portugal de há 8 anos. São um Portugal muito competitivo, muito competente que não vai dar o jogo de mão beijada’.

Portanto, as coisas estão a mudar. Mas há algumas prioridades?

Há um caminho ainda a ser percorrido mas as coisas estão no caminho certo. Claro, há coisas que faltam, como em tudo, mas o caminho está a ser feito e vamos lá chegar.

Enquanto mulher quão importante foi a participação desta seleção no Campeonato do Mundo?

Foi importantíssimo! A quantidade de meninas pequenas que nos abordam na rua, que nos mandam mensagens, os pais que dizem que as filhas querem ir para o futebol, a minha filha não pára de falar de futebol. É fantástico! Espero que seja cada vez mais, é sinal que cada vez mais meninas vão jogar futebol, sem medo, e têm lugar no futebol. É também uma ajuda no salto que a mulher vai dar na sociedade, ou seja, mais um passo na afirmação da mulher.

Como vê a comparação que o público faz do futebol feminino com o masculino? Porque é o mesmo jogo, são as mesmas regras mas nem sempre as mesmas condições, e há uma desproporção no reconhecimento… porventura até no salário.

Sim, há. Como disse anteriormente queremos igualdade de condições de trabalho, não queremos jogar com eles, e é futebol, é igual. O futebol joga-se de 11 para 11, uma bola, o campo é igual, as dimensões são iguais, a baliza é igual. A condição física não é igual, certamente, porque homem e mulher não são iguais, mas a nossa luta é pelas condições de trabalho.

Trocou o Sporting pelo Parma, como foi essa experiência em Itália?

Podia ter corrido melhor. Foi a primeira vez que estive fora, sozinha. Lá está outra diferença, um jogador sai fora do país, tem possibilidade de levar a família, levar quem quiser, nós vamos sempre sozinhas para todo o lado. São realidades diferentes, uma experiência enriquecedora a nível pessoal e profissional mas agora espero que o próximo corra melhor.

E o futuro?

O tempo o dirá. Ainda não posso desvendar nada. Está no segredo dos deuses.

Sabemos agora que a lateral esquerdo vai representar o Servette FC, da Suíça, clube que vai disputar a Liga do Campeões, tendo assinado um contrato válido para as duas próximas épocas. Joana Marchão assinou contrato com o clube helvético até 2025, deixando o Parma, de Itália, onde atuava de desde a época passada, depois de se ter transferido do Sporting CP, tendo a jogadora confirmado a transferência com um “Allez @servettefccf“!

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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