Ativista social e político, Eurico Heitor Consciência era um homem apaixonado pela liberdade conquistada pela Revolução de abril de 1974. “Só quem passou pela outra coisa é que se apercebe do valor que isto tem. É tão bom! As pessoas gostam de falar e viver em liberdade. A autocensura travava-nos, coibia-nos, fazia-nos engolir sapos com o temor das possíveis consequências”.
O advogado, que trabalhou até ao último dia de vida, acabou traído pelo coração, aos 79 anos de idade, às portas da comemoração do 42º aniversário da Revolução dos Cravos.
Eurico Heitor Consciência faleceu na madrugada de quarta-feira, em Abrantes. Nascido em 1936 em Mêda, rumou a Coimbra em 1954 onde se formou em Direito em 1959. Eurico Consciência estava estabelecido profissionalmente em Abrantes há cerca de 50 anos, tendo falecido em sua casa, durante a noite, vítima de problema cardíacos. O corpo vai estar em câmara ardente na Igreja da Ressurreição, em Alvide, Cascais, onde tinha residência oficial, até às 12:00 desta quinta-feira, hora da missa, ao que seguirá para cremação.

O mediotejo.net recupera hoje duas entrevistas de Eurico Heitor Consciência, à revista de história local Zahara e ao boletim Passos do Concelho, realizadas por ocasião do 30º e 40º aniversário da Revolução do 25 de Abril.
Revista Zahara/30 anos de Abril/Entrevista de José Martinho Gaspar a Eurico Heitor Consciência em abril de 2004

“Foi uma alegria que ninguém saberá descrever. Uma esperança sem limites. Uma crença absoluta – só quebrantada por dezenas de anos de oportunismo e por levadas sucessivas de arrivistas sedentos de dinheiro e de poder”
Eurico Heitor Consciência . Revista Zahara/30 anos de Abril
Existiam, nesta região, importantes estruturas organizadas de oposição ao regime salazarista/marcelista? Quais os momentos/ações mais marcantes da atividade oposicionista?
Não. A actividade oposicionista limitava-se à colaboração nos comícios que se faziam em Abrantes nas campanhas eleitorais e à distribuição das listas para votar.
Entre março de 1974 e junho de 1975, o Dr. Consciência interrompeu as suas funções enquanto diretor do Correio de Abrantes, a que se deveu este interregno? Como encara a ação deste jornal enquanto agente de oposição ao regime salazarista/marcelista?
O tom agressivo, do contra, do jornal começou a preocupar o dono do mesmo, que, sendo só tecnocrata, desempenhava funções importantíssimas (Presidente do Gabinete da Área de Sines), pelo que começou a ponderar os incómodos de manter um jornal “desalinhado”. Uma providencial avaria da linotype na tipografia do jornal fez suspender a sua publicação durante meses – no termo dos quais tive uma surpresa: o diretor era outro. O Correio de Abrantes fez esclarecimento e abertura de mentalidades e foi uma pedrada no charco daquele tempo – como, na altura, foi apontado pelo República e pelo Expresso (pela mão de Marcelo Rebelo de Sousa). Mas não durou muito tempo.
Como decorreu no Largo da Feira (atual Esplanada 1.º de Maio) a organização da manifestação do 1.º de Maio de 1974? Verificaram-se algumas dificuldades no sentido de determinar quem a deveria encabeçar?
Não posso dar informações precisas sobre a organização da manifestação do 1º de Maio de 1974. Tenho a noção de que os activistas da organização foram alunos do Liceu de Abrantes (com o Jorge Lacão e o Mário Semedo à cabeça). Sobre cabeças e encabeçamentos aconteceu o que sempre sucede neste país de pobres: quando surge uma oportunidade de melhorar a vida, todos desatam a esticar o pescoço e há homens com dois metros de pescoço… Mas terá sido consensual, por ser justo, que na cabeça do pelotão fossem os veteranos Dr. Orlando Pereira e Dr. Francisco Semedo.
Que aspetos desta manifestação lhe parecem dignos de maior destaque?
A adesão impressionante de todos os abrantinos. Uns por quererem a revolução, outros por temerem a revolução.
No 1.º de maio de 74, várias figuras abrantinas jantaram no restaurante Vera Cruz. O que aconteceu e a que se destinava este encontro?
O jantar do 1º de maio estava no programa das festas. Não há festança que preste sem janta. O que de notável aconteceu foi ter sido planeado e friamente executado um programa oratório que concertadamente encetou a eliminação da temida concorrência previsível aos lugares e aos tachos.
Que leitura faz hoje dos sentimentos que o invadiam na Primavera de 1974?
Foi uma alegria que ninguém saberá descrever. Uma esperança sem limites. Uma crença absoluta – só quebrantada por dezenas de anos de oportunismo e por levadas sucessivas de arrivistas sedentos de dinheiro e de poder.

Entrevista realizada em abril de 2014/Passos do Concelho/CM Abrantes/
“Diz-se imortal, por ter sobrevivido a 37 anos com Salazar e 40 anos em democracia. Viveu tempos inesquecíveis, em que todos os sonhos pareciam possíveis. Foi um dos fundadores do Partido Socialista em Abrantes, professor por contrato, diretor do Correio de Abrantes, magistrado do Ministério Público e Notário, organizador das Jornadas Culturais de Abrantes. Há dois anos, por ocasião do 40º aniversário da revolução de abril, continuava a ser um defensor acérrimo da Liberdade, embora com uma visão profunda mente pessimista do país. Embora reconhecesse haver gente honrada no “meio disto tudo”, comparou a classe política de então aos protagonistas da Queda de um Anjo e do Conde d’Abranhos”.
Onde estava no 25 de Abril?
Estava em Abrantes. A primeira recordação que tenho, e que nunca mais esqueço, é que ía entrar no escritório e o António Bandos diz-me que há uma revolução. Mas disse-me que era malta da direita, por causa das músicas que estavam a passar na rádio. Estavam a tocar a Grândola e as músicas do Zeca Afonso, e dizia-se que era a direita para disfarçar. Andámos toda a manhã a tentar perceber o que tinha acontecido. Já ninguém trabalhou, ficou tudo alvoraçado. Até que, entretanto, veio o comunicado das forças armadas. E conseguiu-se apanhar o Zé Alberto Marques que estava em Lisboa e tinha assistido a parte daquelas movimentações. Durante muitos dias, a gente nem dormia, nem comia, nem nada. Andávamos todos fora do mundo. Em termos de espanto popular foi uma coisa irrepetível. Representou uma transformação brutal nas nossas vidas e pensávamos que ia correr tudo bem. Em termos de participação de massas, o verdadeiro 25 de Abril foi a 1 de Maio… Foram as forças vivas locais, porque a oposição era uma coisa quase inexistente (embora as pessoas que eram conotadas com a oposição clássica aparecessem no MDP/CDE, era uma oposição branda), e os moços do Liceu, o Geirinhas Rocha, o Lacão… Foi uma coisa meio improvisada, apanharam aquela onda de alegria, de felicidade e foi uma coisa praticamente espontânea e com uma adesão popular enorme. Veio gente da cidade, das aldeias mais perto. Os discursos falavam todos de alegria e liberdade. O sentido de liberdade daqueles dias era uma coisa fantástica.
O que é que mudou nestes 40 anos?
Houve uma coisa formidável e que se mantém, que é a liberdade. Designadamente a liberdade de expressão. O grande problema para nós não era a censura, mas a autocensura que fazíamos com medo da repressão. Embora de facto a repressão se exercesse essencialmente sobre os ativistas comunistas. Só quem passou pela outra coisa é que se apercebe do valor que isto tem. É tão bom! As pessoas gostam de falar e viver em liberdade. A autocensura travava-nos, coibia-nos, fazia-nos engolir sapos com o temor das possíveis consequências.
In Passos do Concelho/Especial 40 anos de Abril/ano 2014
Fotos: Fernando Baio/CM Abrantes
Que Deus o tenha em descanço
Para mim, o melhor professor da EICA.
Descanse em Paz.