“Acudam, acudam!” Deolinda bem gritava, caída no chão acabado de lavar da sua cozinha, mas os vizinhos, tal como ela já com mais de 80 anos, não a ouviam. Assim que o seu pé patinou no chão molhado percebeu que tinha a vida desgraçada. Ainda se virou para tentar agarrar-se à bancada da cozinha, mas só conseguiu bater com o braço na esquina do mármore antes de aterrar com estrondo. As dores excruciantes diziam-lhe que tinha uma perna partida, e ela bem sabia o que tinha acontecido a tantas outras pessoas da sua idade quando um azar assim lhes bateu à porta. Adeus independência. Ali estendida, deu por si a olhar para cada pormenor da sua casa, até onde a vista alcançava. A loiça lavada sobre a bancada, a fruta acabada de comprar na mercearia, a roupa da neta em cima da máquina de costura, à espera de bainhas novas. Que saudades ia ter da sua casinha. “É modesta, mas minha.”
Começou a perder a força para gritar, chorou até não ter mais lágrimas. Até que ouviu um barulho à sua porta. Era um cão, a farejar. O cão que alguém passeava, e que não lhe largou a porta. “Eu tinha tantas dores que em vez de gemer devia parecer que gania…”, conta, tentando perceber o que chamou o abençoado cão. Encontrou redobradas forças para gritar. “Acudam, acudam!” E o dono do bicho lá a ouviu e chamou o 112.
Deolinda partiu o fémur, viria a confirmar no Hospital de Abrantes. Deram-lhe medicação para as dores e encostaram a sua maca no corredor das Urgências. “Fique aqui sossegadinha que o médico já a vem ver.”
O médico não veio nesse dia. Nem no seguinte. Macas para a frente e para trás naquele corredor das urgências, e ela sempre no mesmo sítio. Ao terceiro dia, uma enfermeira simpática disse-lhe que as filhas tinham estado no hospital, mas que não as deixavam entrar porque nas urgências não são permitidas visitas. “Espere mais um bocadinho que o médico já a vem ver.”
As dores, sempre as dores, aumentavam de dia para dia. Aliviavam com a medicação, depois voltavam com estrondo. Uma tala colocada na perna começava a fazer-lhe ferida. “E o braço, ninguém me vê o braço?”, perguntava aos enfermeiros. Não conseguia mexê-lo, e não lhe fizeram raio-X. “Deixe-se estar sossegadinha, o médico já a vem ver.”
Na maca da frente, outra idosa afogada em ais. Outra perna partida. Na maca de trás, um rapaz com o pé e a perna em pedacinhos, por causa de um acidente de mota.
Foram passando as horas que pareciam dias, os dias que pareciam meses. Ao quinto dia, apareceu o médico. Poucas palavras, tocou-lhe no pé, balbuciou qualquer coisa para uma enfermeira e desapareceu.
No dia seguinte, por insistência da família, o diretor de serviço de ortopedia acedeu a falar com uma das filhas. Explicou que a mãe deveria ter sido operada no mesmo dia da fatura, mas que foi impossível porque os blocos estavam todos ocupados. Que não havia camas na enfermaria e que seria preciso esperar para a deslocar para lá, e que só depois é que ela teria um médico atribuído ao seu caso. E só depois é que seria operada. “Mas quando é que isso vai acontecer?”, perguntou a filha. Não havia previsões.
A família ameaçou fazer queixa mas a resposta do médico deu a entender de que não valeria de muito. “Fazem queixa, a administração do hospital abre um inquérito, enviam as perguntas para os médicos e depois, em vez de estarmos a atender pessoas, estamos a responder a perguntas…”
Deolinda passou 10 dias no corredor das Urgências do Hospital de Abrantes. Subiu à enfermaria na passada segunda-feira, onde ganhou outro conforto (e mais algum sossego) mas a espera pelo médico teria de continuar: “O doutor só passa às quartas-feiras.”
A situação de Deolinda, nome fictício criado para esta paciente de carne e osso (partido) a pedido da família, está longe de ser um lamentável caso isolado. Nas duas últimas semanas cerca de 30 pessoas estiveram em condições semelhantes nas urgências do Hospital de Abrantes, à espera de resposta dos serviços de Ortopedia. O mediotejo.net ouviu o relato de vários pacientes, todos perdidos num mar de dores e de meias palavras, sentindo-se abandonados, dias a fio.
O tempo de espera por uma cirurgia de urgência, além de todos os problemas anímicos que causa – pelas dores, pelo frio, pela solidão, pelo medo, pela falta de sono num local em permanente reboliço – também pode criar ou agravar outras situações clínicas. Um idoso que fica vários dias numa maca num corredor pode desenvolver uma pneumonia; a ansiedade e as dores podem fazer disparar a tensão arterial, o que em pacientes hipertensos pode ter consequências a nível cardiovascular; e se a recuperação óssea na terceira idade já é um desafio, por vezes o trauma ainda é agravado quando chega (finalmente) o momento da cirurgia: não raras vezes os ossos já iniciaram um processo de solidificação, e os médicos têm de partir a perna outra vez.
Contactada pelo nosso jornal, a administração do Centro Hospitalar do Médio Tejo (CHMT) assume o problema, explicando que “à semelhança do que se passa no resto do País, tem-se verificado uma afluência às urgências acima do normal, facto que cria vários constrangimentos e em particular quando se trata de doentes com necessidades de cuidados de ortopedia”. Tal situação, referem, “tem-se verificado em especial, em doentes politraumatizados, sobretudo jovens que tiveram acidentes de viação”.
Por outro lado, acrescentam, “é necessário referir que alguns doentes mais idosos em muitos casos tomam anticoagulantes, sendo necessário deixarem de tomar o medicamento durante pelo menos 5 dias, para evitar riscos de hemorragia. Em outros casos surgem com diversas patologias associadas (diabetes, hipertensão, etc.), que é necessário estabilizar, factos que obrigam a algum adiamento da cirurgia”. As principais situações de doentes idosos internados a aguardar intervenção cirúrgica, indica o CHMT, “são situações de fraturas proximais do fémur”.
Questionada sobre os motivos que não levaram a que alguns destes doentes tivessem sido transferidos para outras unidades de saúde, onde pudessem receber uma resposta mais célere, a administração respondeu que era uma “impossibilidade”, uma vez que “outras unidades do SNS também estão na mesma situação”.
A administração disse ao nosso jornal que “os serviços esperam recuperar rapidamente o tempo de espera destas situações nos próximos dias” e que, “para responder a esta situação excecional, o CHMT já abriu, a 6 de outubro, uma nova sala de Bloco Operatório para trauma, de terça a sexta-feira, das 9h00 às 14h00, o que tem exigido um esforço suplementar das equipas que estão nas urgências”.
Paralelamente, dizem ainda, “o CHMT está a desenvolver todos os esforços para, a curto prazo, reforçar o quadro de Ortopedistas que no momento conta com 7 profissionais do quadro, recorrendo-se a prestadores de serviços em situações de ‘avalanche’ de doentes, como no momento tem estado a acontecer”.
Deolinda já foi operada e está a recuperar. Do trauma físico primeiro, do psicológico só mais tarde se verá. Se conseguir pôr-se de pé novamente já será meio caminho andado para a felicidade.
Ela só quer voltar à sua casinha, poder deixar a loiça a escorrer na bancada, comprar a fruta que pousa sobre a mesa, coser as bainhas da roupa das netas, agradecendo a Deus por mais um dia sempre que o sol mergulha, lá longe, nas águas do Tejo.
Quando os jornalistas alarmistas ficarem com a cabeça partida por os seus desgraçados leitores ter pérfido a paciência com eles, então sim,teremos reportagens veristas,pungentes e cruentas. Quem avisa….
E a incansável, e a dedicação, e a prestimosa atenção e cuidados, do pessoal de enfermagem e auxiliares do serviço de Ortopedia que, apesar das fracas condições dos serviços, escassez de meios humanos e de material aí trabalhando, lutam diariamente para ultrapassar essas carências e em simultâneo conseguir aliviar o sofrimento dos internados por acidente e substituírem-se às famílias ou aos serviços geriatricos do estado nos cuidados a idosos aí depositados…
Por aí passei em Maio deste ano com uma grave fractura do úmero, por acidente. Tive que aguardar quatro penosos dias por uma cirurgia. Aí conheci também pessoas que estiveram doze dias em espera para serem operadas e os horrores de um serviço que deveria ser de Ortopedia transformado em depósito de velhos…por isso também, ou essencialmente não há camas (vagas).
Como já transmiti anteriormente, só quem sabe, só quem esteve, quem presenciou pode falar do trabalho heróico destas pessoas (enfermeiras e auxiliares) no seu esgotante dia a dia para permitir a quem ali “caiu” os cuidados e o conforto possível que as carências de um falido e obsoleto sistema de saúde ainda permitem.
Plenamente de acordo, faço das suas palavras as minhas. Muitas vidas vezes tem que se comprar proteces e outros materiais compatíveis também com cada situação clínica, materiais esses que ninguém imagina os valores, e que não se pode ter em stock de armazém, não e fácil para ninguém, claro que todos nós temos direito a um tratamento digno, mas temos que defender os profissionais de saúde, que estiveram e estão sujeitos todos os dias a um grande esforço e ainda nem recuperam da avalanche que foi vê é o Covid19
Aguardo uma consulta de ortopedia no hospital de Abrantes. No dia 10/06 as minhas pernas adormeceram e eu caí, fui levada de ambulância para Abrantes… Foi feito RX 2x pois o hematoma era grande, e o médico escrevendo que o RX era inconclusivo, não deixou marcada consulta porque estava cheio o serviço… “Daqui a 15 dias, lá em casa corte o gesso e pode ir trabalhar” disse o médico na ortopedia do hospital de Abrantes… Não caindo na ideia, fui ao centro de saúde em Tomar onde sou utente, no fim dos ditos 15 dias a médica de família, não passa RX, não passa ecografia, e diz-me que o que quero é ficar em casa, passa me fisioterapia nem olha para o meu pé que ainda tinha dores, estava negro e inflamado…. Graças a Deus, a médica (fisiatria) do hospital de Tomar pediu para fazer todos os exames. RX não tem nada, ecografia só é feita em Julho e tem presença de fragmentos ósseos. É me pedido para fazer uma TAC, que só é feita em Agosto. Assim que é feita, tenho a notícia que o médico que elabora a TAC não pode fazer o relatório pois tem muitas reuniões porque o hospital de Torres Novas e de Abrantes receberam máquinas novas no serviço de imagiologia. É triste saber que tive de esperar mais de um mês para saber o resultado para que fossem tomadas medidas. Em Outubro recebo a notícia que parti o pé em 3 partes e que existe um fragmento de osso. A consulta de ortopedia que foi pedida ainda em junho pela fisiatria, ainda não foi agendada. Agora aguardo com urgência a consulta de ortopedia para saber se retiram o fragmento, e tenho de andar com urgência pois posso ganhar problemas de estar com o pé parado tanto tempo… 4 meses e dias…. Sempre que precisei de uma ambulância para ir para o hospital, devido a efeitos secundários pela toma de medicação mais forte para as dores, apenas tinha linha directa Covid… Infelizmente em Portugal, deixou de haver doenças, e apenas tratamos Covid…
Uma semana e deitada numa maca a dormir durante tres noites.
Olá,estive a ler a notícia,quase me retratei,embora o meu caso tenha um desfecho diferente,no meu caso sofri um entalão na zona do artelho, percebi que estava partido, dirigi-me ao hospital (Abrantes),RX resultado, fractura com desalinhamento ósseo,o médico que me atende(a OLHAR para o RX)espera-se com gesso,resultado após as 6 semanas,tirar gesso e qual é o espanto perdi sensibilidade no pé,uma intervenção para voltar a partir o osso para ser colocado no sitio,ficou impecável,mas a dormência, já não há nada a fazer, é para o resto da vida,o mais engraçado é que a companhia de seguros acha que dormência não é incapacidade,isto tudo poderia ser evitado se no Hospital de Abrantes (o CAVALO que me atendeu)tivesse sido feito trabalho como deve ser, atenção ao estado em que vão ficar quando atendidos a DESPACHAR!
Como o hospital de Abrantes estão outros em igual situação ou pior, doentes que ficam 10 dias a espera de internamento, com camas vagas mas ao serviço de medicos e não do hospital e dos doentes.
Isso devido a politização da saúde e vai ficar pior com as ordens a cargo do Governo….o sistema nacional de saúde em Portugal é perfeito, o que rompe o sistema sãos as pessoas que lá trabalham e o o sistema político…
Por causa da falta de resposta do serviço de ortopedia, perdi a minha mãe… à espera de uma cirurgia devido a uma infeção na prótese da anca! Tanto sofrimento, tantas viagens Lisboa-Abrantes! Tantas faltas ao serviço, porque entretanto tive de levar a minha mãe para a minha casa em Lisboa! O médico era muito simpático, mas devido à Covid, estava tudo parado… mas em Lisboa a funcionar! Tanto pedi outra solução, porque vi a minha mãe a desfalecer, a não aguentar tanto sofrimento! Ninguém quis saber e no dia 5 de setembro a minha mãe faleceu! Fiquei e estou revoltada! Aquilo que tanto pedi, o cheque cirurgia, chega no início de dezembro quando nada já havia a fazer! Escandaloso… só existiu COVID! Tudo parou, graças ao nosso SNS!