Dulce Maria Cardoso, Manuel João Vieira, Rui Horta, Cláudia Lucas Chéu e Miguel Serras Pereira, no Festival de Filosofia de Abrantes. Créditos: CMA

Há quem defenda que o maior valor da arte é a luta pela liberdade. Aos artistas cabe continuarem a criar, na tensão dialética entre a sua realidade e o contexto social. E foi a interpretação que fizeram da realidade e do contexto social, do papel da arte e da literatura na transformação do mundo que Dulce Maria Cardoso, Cláudia Lucas Chéu, Rui Horta, Manuel João Vieira e Miguel Serras Pereira levaram até ao público presente no auditório do edifício Pirâmide. O último painel do primeiro dia da 4ª edição do Festival de Filosofia de Abrantes teve lugar no Dia Mundial da Filosofia, assinalado na quinta-feira.

Dulce Maria Cardoso escolheu a pandemia de covid-19 para dizer que “as palavras falharam”, quando “só elas poderiam ter-nos salvo da tragédia” ou “de uma tal dimensão da tragédia” da qual resultaram milhares de mortos. A escritora não falava de “palavras mágicas” mas “das que todos conhecemos, as palavras do nosso quotidiano”. A ciência “que organiza o saber com palavras” descobriu aquelas “com que nos explicou que era possível consertarmos o mal que se atravessou nas nossas vidas”.

Foi “o criar as palavras certas para as leis dos Homens e escolher aquelas outras que encontrassem abrigo e aceitação em cada um de nós para assim comandarem os nossos atos”.

Notou, pedindo permissão para ser maniqueísta, que “em períodos complicados, como aquele que atravessamos, pode ajudar-nos a clarificar o pensamento. Quase sempre o mal surge a muitos, não se apresenta a outros, ou não é entendido como mal por esses outros, acontece ser entendido como bem, não é difícil sabermos do mal por que uns e outros estão a passar ou simplesmente não queremos saber […] mas desta vez todos reconhecemos o mal”, que se apresentou quase a todos em simultâneo, disse.

Falou da comunicação, da informação “em direto, ou praticamente em direto, como nunca havia sido possível” em acontecimentos semelhantes. “Ainda assim não fomos capazes de evitar a tragédia”, acrescentou. Considerou também que a comunicação social e os políticos falharam no anúncio de forma credível às populações do surgimento de uma ameaça nova.

4ª edição do Festival de Filosofia de Abrantes. Créditos: mediotejo.net

A escritora referiu também a capacidade de atuação própria do ser humano, quer individual quer coletiva, com “inteligência, sabedoria”. O desconhecido, disse, “nunca nos é completamente desconhecido” e defendeu que a pandemia demonstrou que “vale a pena ser criativo e corajoso”.

Lembra que na mensagem está implícita a promessa que “voltaremos à normalidade” mas “não nos deixam voltar à antiga normalidade”, algo que para Dulce Maria Cardoso “pode não ser mau”.

E deixa uma pergunta: “De que serve a fúria cega do progresso”, se fizermos parte das espécies de animais extintas? Refere ainda o ódio, as redes sociais, aponta o atual período como de “grande vulnerabilidade”, alerta para “a tentadora adesão a regimes repressivos” e propõe um rendimento básico incondicional para os artistas, para que possam “existir autónomos e independentes”.

ÁUDIO | DULCE MARIA CARDOSO:

Por seu lado, Cláudia Lucas Chéu, também escritora, poeta e dramaturga, escolheu um texto de autoficção do qual leu alguns excertos, considerados “mais relevantes” para o contexto do painel “Literatura, Artes e Transformação do Mundo”. Explicou a sua relação com a literatura, primeiro na infância e depois na adolescência, designadamente ao ler Maria Teresa Horta, Henry Miller e Anaïs Nin.

“Pensei em falar mais da transformação do mundo, essa utopia que é real também. Como começou comigo, a literatura e a transformação do meu mundo”. E lembrou-se de um artigo que escreveu para a revista “Mamute”, intitulado “Papéis Lascivos”, há cerca de um ano, onde em forma de ficção relatou a sua primeira experiência sexual.

ÁUDIO | CLÁUDIA LUCAS SHÉU:

Seguiu-se Rui Horta, coreógrafo reconhecido como um dos mais influentes da sua geração, tendo durante anos dirigido SOAP, a companhia residente do Mousonturm em Frankfurt. O seu trabalho tem sido apresentado em todo o mundo, nos mais importantes teatros e festivais, como no Theatre de la Ville in Paris, the Joyce em New York ou no Spyral Hall em Tokyo, estando no repertório de dezenas de companhias de dança internacionais.

Viveu em Nova Iorque, depois um pouco por todo o mundo, mas escolheu fixar-se em Montemor-o-Novo. Essa sua experiência de viver numa pequena cidade do interior esteve na sua intervenção sobre utopia, “uma base invisível que serviu de força ao longo da minha vida”, nomeadamente sobre “a grande solidão de ter vivido muitos anos fora” do país, começou por afirmar.

Há cerca de 20 anos em Montemor-o-Novo diz que “despentear a minha cidade foi uma coisa que fiz ao longo dos anos”. A ideia passou por “incubar qualquer coisa coisa que fosse estranha […] fizemos coisas loucas mas obrigou-nos a ter uma relação com a comunidade”.

4ª edição do Festival de Filosofia de Abrantes. Créditos: mediotejo.net

Referia-se à Associação Cultural Espaço do Tempo, no Convento da Saudação, fundada em agosto de 2000. Ao longo do seu percurso foi-se desenvolvendo, sendo hoje o maior centro de produção e residências artísticas no País, acolhendo anualmente cerca de 70 residências e inúmeros projetos.

Para Rui Horta “o conhecimento é muito importante, mas já não chega”. É preciso criatividade e a arte “é mesmo importante no desenvolvimento da criatividade”.

Considera que vivemos uma época em que só há dois caminhos: “Ou vamos para a utopia ou para a distopia”. Há que escolher, mas acredita que o futuro “é o coletivo”. Já a arte, “tem um papel enorme”, também “como locomotiva” numa cidade como Abrantes.

ÁUDIO | RUI HORTA:

Depois a intervenção do músico e pintor Manuel João Vieira, apresentando um discurso classificado por si próprio de “completamente caótico”, provocando risos na plateia. Lembrou que já tinha sugerido “alcatifar o país sem ser com eucaliptos”, considerou que “somos fortemente suicidas” e “estamos a criar condições de morte na Terra” o que, reforçou, “não parece uma coisa muito esperta”. Leu ainda um poema e descreveu uma pintura.

“O surrealismo não está perdido. Ele está em toda a parte”, afirmou, antes de dizer que “as tragédias gregas são piadas de urinol comparadas com as piadas portuguesas de urinol”. Por fim, escusou-se ler 20 páginas da lista telefónica de 1983.

ÁUDIO | MANUEL JOÃO VIEIRA:

O último orador, Miguel Serras Pereira, apresentado por Francisco Lopes que moderava o painel, como um dos melhores tradutores portugueses, leu um texto no qual citou por diversas vezes Sophia de Mello Breyner Andresen, na “busca de um país liberto, uma vida limpa e um tempo justo”. No fundo, falou sobre uma condição prévia: a conquista da cidadania democrática.

Sendo também poeta, explicou que para falar de poesia, de liberdade e da cidade democrática, a melhor maneira que encontrou foi partir da leitura de outro poeta, propondo uma breve reflexão sobre as condições da poesia respondendo à exigência de dar conta da razão do poeta na cidade.

4ª edição do Festival de Filosofia de Abrantes. Créditos: mediotejo.net

Começou pelas condições iniciais da poesia para, de seguida, “tentar elucidar algumas outras condições em que o encontro com o tempo se transforma nesse encontro de liberdade”, disse.

“É o encontro do tempo com a liberdade que torna possível a Sophia fazer do poema a minha explicação do Universo”.

ÁUDIO | MIGUEL SERRAS PEREIRA:

O programa do Festival de Filosofia integra painéis que, até este sábado, e a partir do tema central, abordarão várias temáticas, como a arte, política e sociedade, literatura e a transformação do mundo, educação e compromisso comunitário, cuidar, expor e emocionar, ou a arte da paisagem e do jardim.

Na sexta-feira, dia 19, durante a tarde debateu-se a “Arte, educação e compromisso comunitário”, tendo como oradores Paulo Pires do Vale, Comissário do Plano Nacional das Artes, ensaísta e curador, Marta Martins, gestora cultural e diretora executiva da Artemrede, e Emília Ferreira, diretora do Museu Nacional de Arte Contemporânea / Museu do Chiado.

À noite decorreu o painel “Cuidar, expor e emocionar: a arte e os museus”, com Luiz Oosterbeek, professor e coordenador do Instituto Politécnico de Tomar, presidente do Conselho Internacional de Filosofia e Ciências Humanas e diretor do Museu de Mação; Luís Raposo, arqueólogo, presidente do ICOM Europa; e João Silvério, mestre em Estudos Curatoriais, curador associado da coleção de arte contemporânea da Fundação PLMJ, curador e tutor no projeto RAMA Residências para Artistas (Maceira). A moderação é de Margarida Moleiro.

A par dos painéis, o programa inclui a realização de sessões de filosofia para as escolas, com Joana Rita Sousa, filósofa e mestre em filosofia para crianças, na Biblioteca Municipal António Boto, onde está a decorrer uma feira do livro de Filosofia.

4ª edição do Festival de Filosofia de Abrantes. Créditos: mediotejo.net

PROGRAMA
Sábado
20 novembro
Edifício Pirâmide

10h00 – Filosofia e arte da paisagem e do jardim
Oradores: Adriana Veríssimo Serrão – Professora no Departamento de Filosofia da Universidade de Lisboa; Mário Fortes – Licenciado em Arquitetura Paisagista, Investigador;
Comunicação livre A ideia de cultura e de arte como expulsão e hospitalidade
Orador: José Eduardo Franco – Historiador, Professor catedrático, Membro da Academia Portuguesa da História; Moderação: José Manuel Heleno.

15h30 – Arte, urbanismo e transformação social
Oradores: Carlos Dias Coelho – Presidente da Faculdade de Arquitetura de Lisboa;
Álvaro Domingues – Geógrafo, Investigador; Fernando António Batista Pereira – Historiador de arte e Museólogo, Presidente da Faculdade das Belas-Artes; Sofia Marques de Aguiar – Arquiteta e Artista plástica.
Moderação: Jorge Costa.

18h00 – Arte, cultura, território e comunicação
Oradores: Carlos Coelho – Especialista em desenvolvimento de marcas; José Maçãs de Carvalho – Artista Plástico e Professor universitário; Sofia Nunes – Crítica de arte e Professora universitária; João Dias – Artista visual, Fundador e Diretor-Artístico da Saguão – Galeria Experimental (Viseu); Marta Aguiar – Autora de projetos e obras de arquitetura, design e transformação territorial;
Moderação: José Carlos Vasconcelos

21h30 – Para atravessar contigo o deserto do mundo
Espetáculo de poesia com Pedro Lamares e Lúcia Moniz
(Caminhos Literários)
Na Biblioteca Municipal António Botto

Em paralelo:
16 a 20 de novembro
FEIRA DO LIVRO DE FILOSOFIA
Biblioteca Municipal António Botto e Edifício Pirâmide
FILOSOFIA COM CRIANÇAS
Com Joana Rita Sousa, Filósofa e mestre em filosofia para crianças
Biblioteca Municipal António Botto, com as escolas do concelho

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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