Abrantes, 26 de outubro. Quinta-feira de outono com noite amena. Pelo centro histórico algumas pessoas ocupam mesas de esplanada, outras aprontam os stands da XVI Feira de Doçaria Tradicional que começa no Jardim da República no dia seguinte. Subimos as escadas até à Biblioteca Municipal António Botto e lá dentro encontramos o responsável pelo espaço, Francisco Lopes, e dois médicos, Miguel Miranda e José Falcão Tavares.
Não se trata de uma emergência. Estes profissionais de saúde foram ali para cuidar de outra necessidade do corpo, o gosto pela leitura, e a “receita” prescrita aos que marcaram presença nesta sessão de “Entre Nós e as Palavras” foi o romance “Demasiado Mar para Tantas Dúvidas”, que Miguel Miranda escreveu e José Falcão Tavares apresentou.
A “consulta” durou mais de uma hora com o autor de romances, contos, livros infantis e policiais que celebra 25 anos de carreira literária em 2017. Meio século de letras e histórias reconhecidas pelo público e com o Grande Prémio de Conto da Associação Portuguesa de Escritores, Prémio Caminho de Literatura Policial e Prémio Fialho de Almeida. Foi ainda finalista do Prémio PEN Narrativa 2012 e do Prémio Violeta Negra 2014 (Festival de Literatura Policial de Toulouse).

“Contos à Moda do Porto”, “O Estranho Caso do Cadáver Sorridente”, “A Maldição do Louva-a-Deus”, “O Rei do Volfrâmio”, “Todas as Cores do Vento”, “Dai-lhes, Senhor, o Eterno Repouso” ou “A Princesa Voadora” são apenas algumas das 22 obras que já escreveu, algumas traduzidas para francês e italiano, e antecedem a apresentada esta quinta-feira.
Na capa de “Demasiado Mar para Tantas Dúvidas” diz-se que “O Amor tem Várias Vidas”, levantando um pouco do véu sobre o livro que o médico abrantino José Falcão Tavares caraterizou de “túnel de perda” percorrido pelo casal Martingo e Divone depois do sequestro e morte da filha Íris. A obra com que Miguel Miranda se estreia na Marcador Editora encerra a trilogia dedicada ao “caos do mundo”.

A capital da Venezuela, Caracas, é deixada para trás rumo a Campo de Víboras, em Portugal, a terra natal de Martingo. Uma viagem a dois à procura de serem um só novamente, depois de terem sido três. Um drama familiar sobre o amor que a dor debilita e se torna urgente salvar na localidade portuguesa cujo nome foi escolhido pelo autor antes de saber que, de facto, existia e onde se encontram coisas raras como fósseis gigantes e pedras parideiras, inspirados em Arouca.
Fenómenos reais de um país que Miguel Miranda diz “onde nada se passa, mas onde tudo se pode passar”. O mesmo país onde aprendeu a ler com a ajuda do pai aos quatro anos de idade, se tornou atleta federado de xadrez aos 11, em que fazia crochet nas aulas da universidade para irritar os professores e no qual anseia pelas filas de trânsito para “escrever mentalmente”. Chegado ao destino, as histórias passam da cabeça para as mãos e das mãos para o computador portátil que o acompanha desde que acorda, impreterivelmente, às 06h30.

A conversa fluiu na biblioteca municipal de Abrantes muito depois dessa hora sobre o autor e o romance em que os leitores, segundo José Falcão Tavares, são chamados a ter “um papel ativo”. Miguel Miranda diz que gosta de os “enganar” e defende que devem “ter um bocadinho de trabalho” ao destrinçar a realidade e a ficção. Não só nesta “história de amor contada de forma diferente” que aborda a “transcendência das pessoas às perdas”, mas em todas as suas obras.
Na última é feita uma “reconstrução da vida”, acrescenta, em cenários verosímeis criados sem ter estado fisicamente nos locais e cuja construção exige, tal como a medicina, “uma técnica e uma arte”. O paralelismo fica-se por aí pois os doentes que lhe passam pelos consultórios público e privado onde exerce a profissão principal não se transformam em personagens por uma questão de ética. Se o fizesse, diz, seria “um descritor” e não “um escritor”. No entanto, não deixa de se assumir como “um bom ladrão de nomes e tiques”.