Tradição de cantar Os Reis em Rio de Moinhos. Grupo da Filarmónica Riomoinhense. Créditos: David Belém Pereira

Pensa que cantar Os Reis é o mesmo que cantar As Janeiras? Desengane-se. Não é! Em Rio de Moinhos (Abrantes) a tradição repetiu-se mais uma vez pelas vozes dos populares e pelos instrumentos da Casa do Povo daquela aldeia e ainda pela Sociedade Filarmónica Riomoinhense. Em véspera de Dia de Reis celebrou-se a alegria manifestada pela canção em grupo, de porta em porta, reforçando o espírito de comunidade, anunciando o nascimento do Menino Jesus… e, já agora, a esperança renovada num novo ano. O mediotejo.net enfrentou a noite fria e foi conhecer de perto a tradição.

Todos os anos, a noite de cinco de janeiro em Rio de Moinhos é sagrada, onde só há uma única regra na tradição de cantar Os Reis: “com sentimento!”, grita José Eduardo Martins aos dois grupos que lhe entram porta adentro. Uma das duas casas, no caso a da Avó numa espécie de casa museu, que religiosamente encontramos de portas abertas para receber quem queira entrar e partilhar amizade.

Porque, acima de tudo, inclusive da epifania, é disso que se trata. “A noite de cantar Os Reis é dos amigos. O Natal é a festa da família e os Reis a dos amigos”, acrescenta José Eduardo ao mediotejo.net olhando em redor o pátio da sua casa onde já juntou simultaneamente 100 pessoas em noite de Reis.

A tradição de cantar Os Reis, em Rio de Moinhos, continua de pedra e cal, a combinar com muitas casas daquela pequena aldeia do concelho de Abrantes com os pés no rio Tejo e o coração nas tradições. Sendo certo que a tradição, em números, encolheu ao longo dos tempos, atualmente apenas duas casas particulares abrem as suas portas para receber os cantantes e quem nelas quiser entrar, de locais a forasteiros, em espírito de confraternização.

O convívio mantém-se pela vontade também de João Garrafão que naquela noite mantém as portas de sua casa abertas para receber com alegria, fraternidade, boa disposição, música, quadras populares escritas pelos antigos, petiscos e muita bebida.

Tradição de cantar Os Reis em Rio de Moinhos. João Garrafão (à esquerda) e José Eduardo Martins (à direita). Créditos: David Pereira

José Eduardo Martins lembra que na sua infância – hoje tem 56 anos – a noite dos Reis “era também um ritual de iniciação” dos jovens às bebidas alcoólicas, até porque em tempos não muito distantes, “há 40 anos as mulheres não cantavam Os Reis!” era exclusivo dos homens que de porta em porta, de rua em rua entoavam o cancioneiro riomoinhense próprio da noite de Reis.

Assim, ao fim da tarde, os cantantes agrupam-se em circulo batendo às portas, de gorros ou bonés na cabeça para enganar o frio que a noite é sempre longa, sem horas para terminar mas por costume perde-se madrugada dentro.

Alguns alojam-se debaixo de um capote alentejano apesar de estarmos no Ribatejo, instrumentos musicais nas mãos e ganas na voz. Em conjunto entoam cânticos ao Menino Jesus como se faz há décadas, talvez até há séculos, herdando dos bisavós os mesmos versos, cantados ao som da mesma melodia:

“Cá me vem ao pensamento,
Uma lembrança Divina,
Que a Virgem Nossa Senhora
Há-de ser nossa madrinha

Que nos queira acompanhar
Vem na nossa companhia,
Nós vimos cantar Os Reis
Cantemos com alegria

Ó minha rica senhora
Os versos estão a acabar,
Venha dar a sua esmola
Em louvor do Cristo nado

P’ró ano cá voltaremos
Melhorado acharemos,
Melhorado na saúde
É o que mais desejamos
Igualmente no dinheiro
e na carne do fumeiro”

São assim algumas das quadras que chegaram a ser 24, mas como nem todos as retinham na lembrança, ficaram as atuais 17 e desse número voltaram a diminuir para 9 que homens, mulheres e crianças de Rio de Moinhos cantam na noite de cinco de janeiro, sendo recebidos pelo dono da casa, abrindo-lhes então as portas como um convite à partilha.

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A memória da celebração permanece desde a infância. “Reuníamo-nos para cantar Os Reis, para ganhar uns trocos, para depois fazermos uma brincadeira”, leia-se um jantar ou um almoço, conta João Garrafão. “Fomos crescendo e aprendendo que isto afinal de contas é uma tradição, a qual havia de dar continuidade. Hoje já não vou cantar, o prazer passa por receber as pessoas, saber acolhe-las para se manter a tradição”, refere.

João Garrafão não olha a despesas na noite de cinco de janeiro, faça chuva, trovoada ou neve, a tradição é para manter, recusando que a prática caia em desuso. “Importa manter a tradição. É uma festa para quem aparece, sejam amigos ou desconhecidos a minha porta está aberta para toda a gente nesse dia”.

O também nosso anfitrião arranca com a explicação do legado: “Era receber as pessoas após a receção do Ano Novo e desejar-lhes um bom ano. Neste momento o que fazemos é exatamente a mesma coisa com uma condição: receber de portas abertas e dar de comer e de beber a toda a gente, desejando que todos passem um ano fantástico e para o ano cá estaremos novamente”.

No presente “é o voto de repetir a tradição”, reforça José Eduardo Martins, lembrando que alguém, um dia, disse à sua mulher, a artista plástica Alexandra Lisboa, natural precisamente da capital: “Em Rio de Moinhos não temos nada, mas rimos muito”. Riso esse que o nosso jornal comprovou entre iguarias e cantigas.

Tradição de cantar Os Reis em Rio de Moinhos. Em casa de José Eduardo Martins. Créditos: David Pereira

Ambos esforçam-se para imprimir bem fundo na memória, agradáveis momentos que sendo passageiros têm o poder de preservar a tradição. “Antigamente havia receção em todas as casas, hoje em dia as pessoas ignoram um pouco essa tradição e acho que é importante mantê-la. Hoje só duas casas o fazem. Quando era miúdo eram vários grupos a cantar, às vezes em simultâneo, acontecia reunirmo-nos todos na mesma casa. Era giríssimo!”, recorda João Garrafão.

Atualmente, os únicos dois grupos que teimam em não calar a sua voz são da Casa do Povo de Rio de Moinhos e da Sociedade Filarmónica de Educação e Beneficência Riomoinhense. “Também existia o grupo da Igreja mas… se isto se perde é uma pena!” afirma.

Sem confundir com As Janeiras, que cantar Os Reis é outra coisa. Esta última apresenta-se como a alegria manifestada pela canção em grupo que no passado acabava na igreja ou na capela, o centro de cultura das comunidades. Portanto é um cantar religioso.

As Janeiras não têm relação com os cânticos ao Deus-Menino. Simbolizam a alegria do povo de cantar pela vida que se inicia, na esperança renovada de mais um Ano Novo. Os Reis até ao dia 6 de janeiro, As Janeiras durante todo o mês de janeiro.

Este domingo, na escuridão de uma noite fria, ouviram-se então as vozes em coro, cantando aqui e acolá, ou seja, ora na rua de baixo, ora na rua de cima, desses dois grupos. As mesmas cantigas passadas de geração em geração numa comunhão de festa e de animação.

Tradição de cantar Os Reis em Rio de Moinhos. Grupo da Filarmónica Riomoinhense. Joaquim Carvalho. Créditos: David Pereira

Joaquim Carvalho é o presidente da direção da Sociedade Filarmónica de Educação e Beneficência Riomoinhense e também fala numa “tradição antiga” da qual sempre se lembra, tendo chegado à idade de 68 anos. “Era uma tradição forte e continua a ser. A juventude está novamente a aderir em força porque não podemos deixar que a tradição herdada dos nossos pais e avós desapareça”, considera.

O grupo da Filarmónica Riomoinhense, uma das bandas mais jovens do concelho de Abrantes, contava com cerca de 25 pessoas, a tocar de porta em porta. Receberam então as pedidas “esmolas” que podem ser em géneros ou dinheiro. Noutros tempos, em Rio de Moinhos as esmolas em dinheiro destinavam-se à ceia ou festa do grupo, ou revertiam a favor das famílias mais carenciadas da freguesia.

A esmola “pode ser um chouriço, qualquer enchido, vinho e dinheiro recebido com todo o gosto. Todo o dinheiro que adquirimos nessa noite, cerca de um mês depois, realizamos um jantar ou almoço para os elementos da Filarmónica”, explicou Joaquim, confirmando que também nesta ação a tradição se mantém.

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Liliana Carvalho, presidente da Casa do Povo de Rio de Moinhos, apesar da sua juventude conhece como poucos a tradição de cantar Os Reis; desde os 8 anos (tem 37) que frequenta as atividades daquela coletividade riomoinhense.

Descreve-a como “uma tradição que permite uma interação social entre jovens e seniores. Acaba por ser uma forma de convívio e, hoje em dia, uma forma de ajudar a própria instituição, de fazermos cultura, associativismo”, dá conta.

Neste momento, decorrem obras na Casa do Povo de Rio de Moinhos funcionando a noite de Os Reis também como uma forma de angariar fundos. “A esmola ajuda a instituição. No passado, nomeadamente a Banda Filarmónica, as esmolas ajudavam as pessoas mais carenciadas. Foi o caso dos avós do meu marido que sofreram de tuberculose e o dinheiro revertia a favor das pessoas com problemas de saúde ou outro género de carências”, conta.

Tal como os restantes testemunhos, Liliana Carvalho confirma que cantar Os Reis em Rio de Moinhos, acontece apenas naquela noite. Os versos do cancioneiro “foram feitos pelos marítimos, pelas pessoas do antigamente que trabalhavam na agricultura, pelos moleiros, os calafates, os seja as profissões que o Rancho Folclórico ‘Os Moleiros’ retrata. Eles é que compuseram estes poemas após o trabalho de sol a sol ou enquanto tiravam o milho da espiga”.

Tradição de cantar Os Reis em Rio de Moinhos. Grupo da Casa do Povo. Liliana Carvalho (à direita). Créditos: David Pereira

Liliana não esconde o orgulho da pertença àquela terra e justifica o cantar de 9 versos sendo eles atualmente 17. “Porque todos temos profissões e todos nós temos de trabalhar amanhã. Isto seria a noite toda!”, afirma.

Explica que tal prática “nem sempre permite chegar a uma porta, cantar e ir embora. Acolhem-nos dão de comer e beber. Para fazer todas as casas de Rio de Moinhos começamos às 18h30 e acabamos às 02h00”.

Por isso, as primeiras portas onde vão bater são selecionadas entre os residentes mais idosos, e posteriormente as outras, onde a festa se prolonga noite dentro. “Sabemos que estão à nossa espera. Estas pessoas que nos acolhem, as famílias, os amigos juntam-se com o pretexto de cantar Os Reis”, indica.

Na Casa do Povo, o Rancho Folclórico ‘Os Moleiros’ conta atualmente com 35 elementos. “Com a vida profissional as pessoas afastam-se um pouco deste tipo de tradição e de cultura. Tenho sido um bocadinho o ‘motor’, tornei-me presidente da Casa do Povo precisamente para não deixar morrer as tradições e o Rancho” que ainda está no ativo atuando de Norte a Sul do País, onde tenta divulgar Rio de Moinhos. A missão “é para continuar, enquanto houver força e determinação para não deixar morrer a cultura”.

Longe vão os tempos em que as raparigas, usando um lenço na cabeça, arredadas da animação, escutavam as canções sem grandes alaridos. Os homens, pouco dados a acanhamento, entre um verso e outro, bebiam o vinho que lhes era oferecido de boa vontade.

Agora já nada acanha a camaradagem, muito pelo contrário, a alegria impera sem olhar a géneros. No que toca a aceitar o vinho, a aguardente ou até um belo copo de ginja, a tradição continua igual. Para o ano lá voltaremos!

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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