O restaurante Casa Chef Victor Felisberto, em Alferrarede, Abrantes, é um dos 30 restaurantes mais bem classificados e o único do distrito de Santarém no concurso nacional ‘A Revolta do Bacalhau’. A cerimónia de entrega dos prémios acontece em dezembro e o mediotejo.net foi conversar com o chef que começou a lavar pratos em Andorra, conquistou duas estrelas Michelin, voltou a Portugal, patenteou fondant de chocolate e alcançou um lugar entre os cozinheiros de referência.
Distinções nunca são demais para um chef. Elas representam, como sabemos nos dias que correm, fortes motivos para a escolha de um restaurante. E quem gosta de comer bem está sempre atento às novidades e aos detalhes que algumas vezes emolduram reputações superlativas. Os bons garfos prendem-se naqueles que trazem na bagagem experiências internacionais, elaboram com paciência produtos de qualidade, ainda que em casas mais discretas, numa rua pacata de uma cidade do interior do País, salvaguardando o bom nome daquilo que é a cozinha tradicional com um toque de modernidade. É o caso da Casa Chef Victor Felisberto, em Alferrarede.
Há cerca de 30 anos – o chef Victor Felisberto tem hoje 47 – era um estudante de medicina, em Coimbra, filho de família endinheirada da Golegã e, na realidade, nunca lhe passara pela cabeça ter de trabalhar para viver. Quis o risco do empreendedorismo que os negócios do pai resultassem em insolvência, transfigurando o cenário financeiro e Victor teve de tomar uma decisão difícil para um rapaz de 18 anos: ir lavar pratos e carregar sacos de batatas nas cozinhas de Andorra.
O primeiro passo para se perder um médico estava dado, mas ganhou-se um chef com duas estrelas Michelin e muitas outras distinções. Quais? Não as revelamos agora porque a expectativa vai bem com uma boa história. Contudo, desvendamos já que não seria necessário esperar muitos anos para que o estatuto de referência fosse reconhecido.

“Entrei na cozinha um bocado por azar. Era o que havia disponível naquela altura; lavar pratos, por 90 mil pesetas, cerca de 100 contos (500 euros) e em Portugal pagavam 20 contos. E depois fui aprendendo. Passei a ajudante e cheguei a chef de cozinha em Andorra”, conta ao mediotejo.net.
Para crescer enquanto cozinheiro percebeu a importância de obter “uma carta profissional”, o que motivou uma viagem até França para estudar na famosa escola de culinária Le Cordon Bleu, no curso de maître cuisinier patisserie ouvrier “chocolates, açúcares… uma espécie de mestrado de cozinha”, explica, falando do seu percurso académico onde foi colega de Olivier Bajard, um dos mais famosos pasteleiros do mundo.
De volta a Andorra, onde passou pelo restaurante Aquarius Caldea e onde conseguiu uma estrela Michelin e vários prémios relacionados com confeção de bacalhau, nomeadamente atribuídos pela confraria do bacalhau de Barcelona, cidade catalã onde permaneceu como chef executivo de uma grande empresa até voltar a Portugal diretamente para Abrantes, na expectativa de realizar uma sociedade que “correu mal”, acabando por trabalhar na Quinta das Oliveiras.
Naquela época, o chef Victor Felisberto “estava especializado em cozinha de autor, muito criativa, criava as minhas próprias receitas e elaborava coisas novas”, conta. Após aprendizagens por Andorra, França e Espanha, encontrou, por terras do Médio Tejo, o caminho para a cozinha tradicional portuguesa.
“Tive a sorte de trabalhar com a excelente chef de cozinha Helena Marçal, uma das pessoas que me abriu esse o caminho”. De Abrantes saiu para o Casino Estoril, de lá regressou novamente à cidade florida para o restaurante Cascata e, há cerca de 10 anos, através de um convite, voou até Londres.
Uma proposta “engraçada” uma vez que não queria sair de Portugal “mas o dono do restaurante veio cá falar comigo pessoalmente” e lá o convenceu. Victor começou a trabalhar para O Portal (Inglaterra), onde conseguiu a segunda estrela Michelin, restaurante que deixou ao tomar a decisão de retornar ao Cascata.
Nesse espaço abrantino conheceu a sua atual esposa, “a grande responsável” por ter arriscado avançar com o seu próprio projeto. Em julho do ano passado, abriu o Casa Chef Victor Felisberto numa rua pacata de Alferrarede, onde quase passa despercebido…. exceto aos seus clientes que chegam de vários pontos do País para saborear as especialidades da casa como as carnes cozinhadas a baixa temperatura em forno de lenha. “90% da minha clientela é de fora do concelho de Abrantes. Vem de Lisboa, Castelo Branco, Santarém, Torres Novas”, exemplifica.
No interior encontramos um espaço sóbrio com um toque de modernidade. As salas de refeições são duas, ambas manifestamente pequenas para receber os muitos clientes particularmente aos fins-de-semana. Uma funciona “à lista” e outra de “diárias” com pinturas nas paredes que tentam contar um pouco do percurso profissional do chef. Ao sábado e domingo a sala das ‘diárias’ semanais “monta-se como a outra”, explica.
Nessa “outra”, para que não restem dúvidas que comer à mesa é um ato de intimidade, numa das paredes lê-se a frase: “as melhores coisas da vida conversam-se à mesa com boa comida”.

Um lema que espelha igualmente a opção pela criatividade gastronómica, até porque como diz o povo, os olhos também comem, e o empratamento merece tempo e dedicação da parte do chef.
“Às vezes ainda penso no curso de medicina que ficou para trás. Esta é uma vida de muito sacrifício, especialmente a nível pessoal. Natal, Ano Novo a trabalhar, horas intermináveis, stress … é muito complicado, com muita exigência”, afirma, recordando o trabalho no estrangeiro aquando da atribuição das duas estrelas Michelin. “Eram noites sem dormir a pensar em ementas. Passamos dias sem ver a luz do sol, num ambiente fechado cheio de vapor”.
E o que é preciso fazer para ter distinção no prestigiado guia gastronómico? Essencialmente “fazer as coisas bem feitas. Aqui em Portugal, os chefs para ganharem as estrelas esquecem-se um bocado da cozinha portuguesa. As estrelas que ganhei não premiaram menus de degustação mas pratos com sabor e identidade. Depois é preciso ter um bom serviço e uma casa decente. Ganhar uma estrela Michelin não é só a cozinha mas um conjunto de coisas. A equipa e o espaço são fundamentais, o chef não ganha sozinho”, assegura.
E se os clientes andam quilómetros para saborear os petiscos do chef Victor Felisberto, o caminho é mais complicado no que toca a conseguir equipas vencedoras fora dos grandes centros urbanos. Neste momento conta com três jovens formados na Escola Profissional de Desenvolvimento Rural de Abrantes na área da restauração.
Como empresário queixa-se da elevada carga fiscal existente em Portugal que impede “salários mais elevados”, em sua opinião a razão “aliciante” e garante de boas equipas. Ainda assim, a sua aposta continua a ser claramente por terras do Médio Tejo.
O forno a lenha é um dos segredos da cozinha da sua Casa, aliás, o fator principal que levou Victor a escolher aquele local para montar o seu restaurante, que trabalha produtos portugueses de qualidade com o saber adquirido nas cozinhas internacionais de outros sabores culinários.
Cachaço de porco assado no forno a lenha, “a baixa temperatura servido em caçarola de barro” com batata doce e migas de couve e broa é uma das especialidades; o naco de vitela é outra. “Um prato confecionado com as partes menos nobres do animal. Utilizo muito as partes menos nobres, são carnes mais difíceis de trabalhar, mas que cozinhadas a baixa temperatura ficam muito saborosas”; e ainda o “pernil de porco. Fica tenrinho tal qual o leitão”, garante.

A originalidade da Casa apresenta-se também nas sobremesas, “todas feitas no momento” garante Victor Felisberto, designadamente o fondant de abóbora com gelado de baunilha. Aliás, os fondants são marcantes na sua carreira, quer o de chocolate, quer o de chocolate com caramelo e flor de sal, ambos criados pelo chef, patenteados e as receitas vendidas; a primeira à empresa espanhola Estarra e a segunda à Nestlé.
Para o chef que gosta de criar sobremesas, onde pode exprimir a sua criatividade, e esmerar-se na apresentação dos pratos “a cozinha portuguesa é das melhores do mundo. Não só pela qualidade dos produtos mas pela sua variedade” nomeadamente o bacalhau, que não sendo pescado em águas nacionais, é cozinhado com sabedoria e tradição pelos portugueses.
Este ano, o restaurante Casa Chef Victor Felisberto foi apurado na categoria restaurantes do concurso nacional ‘A Revolta do Bacalhau’, criado pelo Recheio Cash & Carry, pelo NSC – Conselho Norueguês dos Produtos do Mar, e pela revista INTER Magazine. Nessa prova, dividida por três áreas – cozinheiros, estudantes de cozinha e restaurantes – os candidatos são avaliados na confeção de pratos onde o bacalhau é, naturalmente, presença.
A casa de Victor Felisberto é um dos 30 restaurantes mais bem classificados e o único do distrito de Santarém que poderá receber o prémio em dezembro.
O prato apresentado pelo chef é um bacalhau confitado com ervas aromáticas, com pés de porco recheados com foie gras de bacalhau e, a acompanhar, um puré de grão de bico.

Uma proposta criada para o concurso. “Na altura em que me pediram para concorrer tive o prato à venda no restaurante mas como é caro, apesar da curiosidade as pessoas preferem as carnes ou o bacalhau no forno”, observa.
Por falar em prémios, chegou o momento, na nossa história, de revelar as restantes distinções. Com pouco mais de um ano, o restaurante de Victor Felisberto já mereceu estar entre os cinco no distrito de Santarém referidos pelo Trip Advisor, venceu o galardão Revelação 2019 pelo Tejo Gourmet – Concurso de Iguarias e Vinhos do Tejo; galardão Ouro também pelo Tejo Gourmet; prémio de Melhor Tradicional; e galardão Prata no 10 concurso Gastronomia com Vinho do Porto 2018, sendo restaurante recomendado pelo guia Boa Cama, Boa Mesa do jornal Expresso.
Quanto a objetivos, não lhe falta conquistar “nada”, diz. Com o restaurante na rua Cana Verde, “vamos andando, a fazer a coisas bem feitas. Consegui chegar a um nível de restauração bastante bom, nunca pensei que chegasse tão depressa. Quando fazemos aquilo que gostamos é mais fácil para funcionar bem. Os prémios que ganhei são o reconhecimento do trabalho”.

Para saborear a comida de Victor Felisberto, uma refeição em média, por pessoa, ronda os 20 euros. Um valor que o chef considera uma boa relação qualidade/preço.