António Botto regressou a 17 de agosto ao concelho onde nasceu para soprar uma vela de aniversário que valeu por 120, numa homenagem da autarquia. O poeta, escritor, dramaturgo e tradutor, como que renascido, andou pelo centro histórico da cidade de Abrantes durante o dia com uma agenda cheia que incluiu uma arruada e momentos literários no Jardim da República, estabelecimentos de restauração e na biblioteca de que é patrono. Com o aproximar da noite rumou à terra natal, Concavada, onde foi evocado na Junta de Freguesia.
O menino que correu “descalço e alegre” pelas ruas da “terra de província, com arvoredos, piquenas casas, e uma fonte” – como se refere aos tempos de infância na localidade abrantina em “Cartas que me foram devolvidas” (1932) – cedo passou a pisar o chão do bairro de Alfama e foi pela capital que cresceu com os dois irmãos, a mãe doméstica e o pai marítimo, conhecedor profundo do Tejo que garantia o sustento da família.

Muitas vezes terá a mãe dito “António Tomás, porque não vais para padre?”. A desistência dos pedidos contínuos, aos quais nunca cedeu, é dada na primeira pessoa “alguém lhe disse uma noite: seu filho é bonito de mais para ser padre”.
Não ficou conhecido por ser bonito, mas pela figura esguia, o encontro com figuras de relevo enquanto trabalhava como livreiro em Lisboa e a coletânea de poemas “Canções”, revista e aumentada entre 1921 e 1932, que Fernando Pessoa (ortónimo) aclamou e Álvaro de Campos censurou.
Quando o heterónimo andava por longe, os dois caminhavam juntos para o famoso “Martinho da Arcada”, ponto de encontro de intelectuais na Praça do Comércio (Lisboa). Os cafés e as bebidas acompanhavam a discussão certa sobre a ousadia das palavras do poeta da Concavada cujas “Canções” representaram uma mudança na mentalidade portuguesa ao abordar explicitamente a homossexualidade que o poeta da “Tabacaria” viria a traduzir para o inglês.

As noites boémias trouxeram-lhe a sífilis que debilitaram o corpo, mas não a avidez das palavras do homem para quem: “Deram-se as bocas num beijo, / – Um beijo nervoso e lento… / O homem cede ao desejo / Como a nuvem cede ao vento. / Vinha longe a madrugada. / Por fim, / Largando esse corpo / Que adormecera cansado /E que eu beijara loucamente / Sem sentir, / Bebia vinho, perdidamente, / Bebia vinho… até cair”.
José Régio escreveria em 1959, ano da morte do poeta, que António Botto conquistara a imortalidade através do seu legado literário. Entre ele encontrou as palavras arrojadas que lhe geraram “o choque profundo, a surpresa ao mesmo tempo grata e como receosa, da mais autêntica originalidade: a que se não arremeda, nem conquista, a que mesmo involuntariamente se denuncia, pois é fatal, vital, e porventura nem bem consciente de si”.

António Botto respondeu-lhe, sem saber, 37 anos antes: “No amor, / – Apenas, é mentira no futuro / Aquilo / Que nos parece uma verdade presente. / O amor não mente, nunca! / Exagera simplesmente”. Não mentiu e uma vez assumida a orientação sexual, nem a união de facto com Carminda Rodrigues, nove anos mais velha, não foi suficiente para diminuir a homofobia de que foi alvo toda a vida.
Ser igual a si próprio valeu-lhe a apreensão da obra pelo Governo Civil em 1923 e o despedimento do cargo de escriturário de primeira-classe do Arquivo Geral de Identificação em 1942 por dirigir “galanteios e frases de sentido equívoco a um seu colega, denunciando tendências condenadas pela moral social”.
Entre ambas as datas, correu o estrangeiro e foi funcionário público na antiga colónia de Angola em 1924 e 1925.

A agrura provocada pelos adultos não lhe levou a doçura das palavras e nesse ano publicava a obra infantil “Os Contos de António Botto”.
Um mundo imaginário que transportou consigo para o Brasil no ano de 1947 em busca de refúgio, despedindo-se do país com recitais de poesia em Lisboa e no Porto que lhe granjearam os elogios de Amália Rodrigues, João Villaret e Aquilino Ribeiro. Não voltaria a pisar as ruas por onde correu descalço em menino.
Amado por uns, odiado por outros, António Botto afirmou-se como uma figura controversa e proeminente da literatura portuguesa. Os restos mortais foram transladado para o cemitério do Alto de São João (Lisboa) em 1966 e regressou simbolicamente pelas placas toponímicas existentes na capital e na terra natal, o busto com dedicatória da população em Concavada, a atribuição do nome à biblioteca municipal de Abrantes, e a inclusão na exposição “100 anos de autores abrantinos”, em que surgia na tela pintada por Abel Manta.

Ao longo dos últimos 120 anos tentou “criar beleza”, 62 dos quais com recurso às próprias mãos e 58 através das palavras que deixou escritas. Pelos 27 anos já tinha consciência da ambiguidade do conceito de “estética”.
Quem estabelece o que é belo ou feio? Nas suas “Curiosidades Estéticas” (1924) limitou-se a constatar o óbvio:
O mais
importante na vida
É ser-se criador – criar beleza.
Para isso,
É necessário pressenti-la
Aonde os nossos olhos não a virem.
Eu creio que sonhar o impossível
É como que ouvir uma voz de alguma coisa
Que pede existência e que nos chama de longe.
Sim, o mais importante na vida
É ser-se criador.
E para o impossível
Só devemos caminhar de olhos fechados
Como a fé e como o amor.