A madeira da Tábula Rasa na oficina de Fernando Bourgard. Créditos: mediotejo.net

Conta-se que o escultor italiano Michelangelo dizia que, para uma escultura, bastava retirar do mármore tudo que não era necessário. E esculpia com um objetivo: para que os outros também pudessem ver o que estava dentro da pedra.

A madeira permite igualmente que a arte seja revelada. Que o diga Fernando Bourgard. Funcionário público, na área das impressões de grande formato na Câmara Municipal de Abrantes, com 47 anos, há meia dúzia deles percebeu que juntando, como num puzzle, diferentes tipos de madeira, combinadas com paciência e elegância, obtinha objetos utilitários com bonitos desenhos geométricos. Afinal, um bom trabalho de carpintaria requer atenção aos detalhes; bom gosto, cortes cuidadosos e toque liso e suave.

Demorou algum tempo até se dedicar àquilo que chama de “hobby” mas o projeto mental acabou por obter forma física. E, para Fernando, “a base deste projeto é criar e transmitir as aprendizagens de criação e de execução de peças de pequena dimensão, mas de grande utilidade para o dia a dia, como tábuas de corte, candeeiros, mesas… procurando valorizar o melhor de cada material”.

A madeira da Tábula Rasa na oficina de Fernando Bourgard. Créditos: mediotejo.net

Para as suas peças utiliza, essencialmente, madeiras exóticas como a cambala escura, pau roxo, pau amarelo, sucupira, cumaru, cambala amarela, vindas de outros países, designadamente da América do Sul, e também faia, freixo, carvalho e castanho. As primeira, madeiras impensáveis de comprar no Médio Tejo. Alcançou o primeiro degrau, ao encontrar online um fornecedor que vende madeiras exóticas em bruto. Depois é cortar, emparelhar, conseguir um ângulo de 90 graus para ser possível obter o resultado pretendido.

Sem alguma vez ter tentado ser carpinteiro ou sequer artesão, criou uma arte em madeira e depois uma marca pensando que “o homem nasce neutro, como uma tabula rasa. Depois aprende e experimenta. Aceita ou adapta-se. Começa e recomeça, criando e refazendo. Tudo na vida se faz disso: aprender, criar, melhorar e refazer”. Ou seja, “nada será estável ou fechado, porque, como na vida, a moldar se muda, se renova e, principalmente, se melhora”, defende.

A madeira da Tábula Rasa na oficina de Fernando Bourgard. Créditos: mediotejo.net

A Tábula Rasa nasceu, assim, particularmente por gosto, com várias tentativas, alguns erros, muita persistência, corte de serra, golpe de maço, montes de serradura no chão e concentração. Cada peça, sem contar com o tempo de colagem – 24 horas -, leva cerca de cinco horas a ficar pronta.

“É um passatempo, para espairecer, no tempo livre, particularmente aos fins-de-semana. Ajuda muito a limpar a mente, principalmente com as máquinas, não dá para pensar em mais nada, requer atenção, e é muito bom”, afirma. Embora o gosto pelos trabalhos em madeira tenha surgido há muitos anos.

“Sempre gostei de mexer na madeira e fazer pequenas coisas. O meu avô, que era militar, tinha uma oficina aqui ao lado e eu ir para lá, vê-lo fazer os seus trabalhos de carpintaria. Há uns anos vi na Internet umas tábuas de corte e resolvi fazer para minha casa, depois fiz mais algumas que ofereci. Os amigos acharam piada”, conta.

Até que decidiu avançar mais a sério, experimentando, sem qualquer formação na área e testando, na prática, através das instruções disponíveis no YouTube. Diz que um dos truques que aprendeu na Internet melhora significativamente a qualidade das peças. “Quando estão quase prontas são molhadas, os veios que estão soltos levantam e passa-se novamente com a lixa. Desta forma a primeira vez que a tábua for lavada já não vai acontecer”, explica.

A madeira da Tábula Rasa na oficina de Fernando Bourgard. Créditos: mediotejo.net

Pequenas ideias que se tornaram maiores, ao ritmo da criatividade e da serra. Quando corre mal, nessas horas, é preciso não desistir e insistir na ação, alterando um bocadinho a equação para resultar diferente. Com calma, até as madeiras mais difíceis acabam por ceder.

O projeto tem um ano de existência. Iniciou-se com outro tipo de madeira, essencialmente pinho, e com todo o trabalho manual, incluindo serrar e lixar. Entretanto, Fernando Bourgard avançou com algumas parcerias, colocou as suas peças à venda em algumas lojas e pela primeira vez, este verão, esteve presente numa feira de rua, especificamente na Mostra de Artes e Ofícios do Município de Abrantes, que ocorre no primeiro sábado de cada mês.

Embora a ideia não seja percorrer feiras de Norte a Sul do país mas vender online, decidiu criar uma pagina na rede social Facebook, no Instagram e tem um site em desenvolvimento. As peças são vendidas desde os 20 até 75 euros.

“Têm tido boa aceitação. Não é a nossa vida profissional mas é bom termos a recompensa das pessoas gostarem”, diz.

A madeira da Tábula Rasa na oficina de Fernando Bourgard. Créditos: mediotejo.net

O ser humano, desde sempre, usou a madeira como matéria-prima para suprir as suas necessidades diárias. Ainda hoje as madeiras mais inflamáveis são utilizadas para aquecimento, as mais resistentes têm aplicação na construção civil e as de maior beleza continuam a ser escolhidas para fabricar mobiliário ou criar obras de arte.

Apesar de autodidata, Fernando aprendeu a manusear esse material. Por exemplo, na composição de uma tábua encontrou a forma de colocação das finas ripas, umas coladas às outras, originando um padrão estético, com diversos tons de castanho, amarelo ou avermelhado, no qual nem se nota a separação do corte da madeira.

Sabe que tem de utilizar “uma cola específica, segura para estar em contacto com alimentos. E o acabamento também tem de ser seguro. Para tal a madeira é afagada com óleo mineral e cera virgem de abelha”, explica.

Por isso, na oficina, ao lado das peças já acabadas, encontramos pequenas latas com cera que o cliente leva para casa para “manutenção” da peça. “Podem ser lavadas à mão e depois passa-se a cera com o óleo para impermeabilizar”.

As peças são todas marcadas a fogo com a marca Tábula Rasa e a laser, a pedido do cliente com uma marca ou qualquer frase ou palavra que o cliente quiser, dependendo da finalidade ou da imaginação.

A madeira da Tábula Rasa na oficina de Fernando Bourgard. Créditos: mediotejo.net

A pequena oficina, bem iluminada, de portas abertas para um jardim para aproveitar a luz do dia, tem uma mesa de trabalho também executada por Fernando, as ferramentas – grampos, formões -, algumas construídas pelo artesão, aguardam nas bancadas pelas as mãos que as farão trabalhar, embora as máquinas ajudem no trabalho mais difícil; serrar e lixar. Na sala ao lado da oficina, encontramos as peças de madeira em bruto, igualmente sólidas mas ainda desiguais na forma.

“A madeira de cumaru, como é muito rija e tem o veio muito fino, tem tendência em levantar um bocadinho quando vai à garlopa [desengrossadeira] para alisar. A cambula escura faz-nos espirrar imenso, é pior que pimenta”, refere falando das dificuldades do trabalho. Contudo, confere uma bela tonalidade dourada à peça. As tonalidades da madeira também diferem consoante “a madeira for retirada do centro do tronco da árvore ou mais para a ponta”, explica Fernando.

A madeira da Tábula Rasa na oficina de Fernando Bourgard. Créditos: mediotejo.net

Há ainda, na sua oficina, um trabalho de reciclagem de madeiras. Reaproveita algumas às quais dá vida nova, utilizadas para outras peças que não são destinadas a alimentos, tendo em conta os produtos químicos que possam ter sido aplicados anteriormente.

“A madeira é um material nobre, resiste muito ao tempo. Nas tábuas de madeira velha, algumas com 70 anos que vinham de África como caixotes feitos de pau rosa, lá dentro está uma excelente tábua. Há tempos encontrei um senhor em Fátima que me vendeu as pontas de uns barrotes da obra de um palácio em Marrocos”, conta Fernando indicando que as madeiras são, na realidade, “muito caras”.

Lembra que nesta aventura do artesanato começou por fazer outras coisas: uns pequenos brinquedos para os filhos, umas caixinhas em madeira, “mas nada de tão elaborado”, reconhece. Agora até já faz pequenos móveis.

A madeira da Tábula Rasa na oficina de Fernando Bourgard. Créditos: mediotejo.net

No futuro Fernando quer continuar e evoluir para móveis mais complicados, do que aqueles que construiu até ao momento. “Temos algumas ideias, umas bases para guardanapos, também já fiz uma base para a bimby, para andar em cima da placa de vitrocerâmica, temos feito copos e vamos estando atentos ao que as pessoas gostam“.

Fernando fala no plural porque também a sua mulher, Catarina, já foi conquistada pelas madeiras, tornando-se agora um trabalho a dois. “Mas para já não dá para trabalhos muito elaborados, porque ainda estou a aprender. Sinto que é uma continua aprendizagem”.

*Entrevista publicada em agosto de 2022, republicada em junho de 2023

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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