Os bairros ferroviários do Entroncamento têm sido tema de inúmeros estudos nos últimos anos e integram as prioridades de investimento da Câmara Municipal ao quadro comunitário Portugal 2020. Entre o passado e o futuro estão os atuais moradores, gente que faz parte do legado dos caminhos de ferro na Cidade Ferroviária. Maria Luísa Viegas, Elvira Barata e Rui Oliveira são exemplos dessa memória e dão vida às três ruas do Bairro Camões, criado para os quadros superiores da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses no início do século passado.

Rua Direita, Rua Detrás da Escola e Rua da Luz são topónimos que encontramos por todo o país, mas nenhum faz parte de um condomínio fechado projetado pelos arquitetos Luís da Cunha e Cottinelli Telmo a mando da Divisão de Construções da C.P.. O Bairro Camões surgiu na correnteza do Bairro do Boneco, datado do século XIX, e do Bairro da Vila Verde, inaugurado em 1919. Ganhou forma no ano de 1926, precisamente sete décadas depois de D. Pedro V iniciar a viagem dos caminhos de ferro em Portugal, no troço de Lisboa ao Carregado.

Maria Luísa Viegas, Elvira Barata e Rui Oliveira têm casa em cada uma das três ruas na planta que integra 32 habitações sociais, um lampião e um fontanário. María Luísa e Rui chegaram há trinta e nove anos, altura em que o bairro fervilhava de vida. Elvira mudou-se em 1990, no início da época de declínio com a morte dos moradores e a saída de muitos ferroviários para casas próprias. Há anos que transpõem os pilares da entrada encimados por carris onde, em tempos, a corrente e o guarda garantiam o acesso reservado.

A moradora mais velha do Bairro Camões, Maria Luísa, tem setenta e três anos. O nascimento dos filhos foi ditando as mudanças de casa até ali chegar. Não sabe ler, mas “sabe contar”, e vive no número três da Rua Detrás da Escola com três gatos e cinco cães.

A rua fica nas traseiras da Escola Camões, a segunda com este nome criada para os ferroviários. Os primeiros alunos chegaram em 1928 e às aulas diurnas dos filhos sucediam-se as noturnas dos pais. O edifício com o cunho inconfundível de Cottinelli Telmo albergou a Escola de Aprendizes da C.P. (1959 a 1970) e o CERE – Centro de Ensino e Recuperação do Entroncamento (1980 a 1997). Hoje está abandonada.

O sotaque denuncia as origens nortenhas de Maria Luísa, nascida em Águeda, distrito de Aveiro, de onde saiu para trabalhar em Lisboa como governanta. Fala desse tempo com saudade e foi lá que conheceu o marido, um carregador da C.P. em Braço de Prata. Casou “na terra da sogra”, na zona do Alentejo, e passados alguns anos pediu “uma casinha baratinha lá para o Entroncamento”. O marido fez-lhe a vontade. Saíram do “deserto”, começou a trabalhar nas vindimas em Almeirim e, com o aumento da família, foram mudando de casa, uma delas na Meia Via, até este lhe fazer a surpresa de mudarem para o Bairro Camões. Seis meses depois, ficava viúva com quatro filhos para criar.

Seguimos até ao próximo cruzamento da Rua Direita e chegamos a outro número três, na Rua da Luz, casa de Elvira e José Carlos Barata. Esta é segunda casa da C.P. onde habitam, a primeira era na terra natal e foi demolida para construírem a estação das Mouriscas (Abrantes) na Linha da Beira Baixa, hoje desativada.

Elvira sempre foi doméstica, os dias são passados em casa devido a problemas de saúde e o marido está na pré-reforma de uma carreira de trinta anos como ferroviário. Recorda-se dos “quintais muito arranjadinhos, tudo cheio de flores” e dos pais chamarem “os miúdos que jogavam à bola”. Miúdos como os quatro filhos que entretanto cresceram e, tal como os de Maria Luísa e Rui, quebraram a tradição ferroviária na família. Não tem orgulho de viver num dos chamados “pontos de interesse turístico da região” devido ao “desmazelo”. A subida anunciada do valor pago mensalmente acentua a vontade de sair.

Aproximamo-nos do fim do bairro, cujo silêncio é interrompido de tempos a tempos pelos latidos dos cães, que tentam proteger o que resta, e o som abafado dos carros que passam junto à entrada, na Rua Eng.º Ferreira de Mesquita. Silêncio “a mais” de um “bairro fantasma” que gera medo nas duas moradoras, sobretudo de noite quando vem “gente estranha”. Por vezes conseguem identificar os estudantes que escolhem o Bairro Camões para os seus projetos cinematográficos. Um cenário silencioso projetado por Cottinelli Telmo, o arquiteto que também foi cineasta e realizou o primeiro filme sonoro português, “A Canção de Lisboa”, em 1933.

No número nove da Rua Direita encontramos Rui Oliveira, de 69 anos, e Manuel Margarido, que já passou os 80. Os dois foram protagonistas de um desses filmes académicos e juntam-se ao final da tarde no Bairro Camões para tratar da horta e da criação, os únicos habitantes da casa a tempo inteiro.

Rui é natural da aldeia de Venda Nova, em Envendos (Mação) e trabalhou nos caminhos de ferro entre os 16 e os 59 anos. Pelo meio teve a tropa e quando se reformou, há dez anos, era fator da estação do Entroncamento. Dos 12 anos em que morou no bairro lembra-se que era “movimentado, mas calminho” e refere o antigo fontanário, cuja réplica se encontra no Jardim da Locomotiva. Manuel nasceu em Marvão, distrito de Portalegre, e foi chefe de estação no Setil e no Almourol. Morou em casas da C.P. durante 25 anos, nunca no Bairro Camões, mas vem tratar das hortas “desde sempre”. Recorda o espaço quando “estava em pleno”, na altura em que era habitado por “pessoal “graduado” e lamenta a decadência “da parte que dava alma ao Entroncamento”.

Recuperar a alma ferroviária é um dos objetivos do executivo camarário, que no passado mês de setembro aprovou a Área de Reabilitação Urbana “Bairros Ferroviários”, no âmbito dos Planos Estratégicos de Desenvolvimento Urbano (PEDU). O instrumento de gestão urbana prevê a intervenção numa zona que começa no antigo campo de jogos, percorre os bairros ferroviários até ao Museu Nacional Ferroviário, passa a estação e termina no Bairro da Rua Latino Coelho (a Ala Norte).

Jorge Faria, presidente da Câmara Municipal, salienta a importância de “manter e preservar um património muito importante para a cidade e para a ferrovia” e refere que existe “disponibilidade” da empresa Infraestruturas de Portugal, proprietária dos bairros ferroviários, para “desenvolver iniciativas conjuntas nesse sentido”. No futuro estão previstos “projetos de natureza social ou pública” na Escola Camões, classificada pelo município como imóvel de interesse concelhio em 1995, mas a sua concretização dependerá “dos parceiros”. O mais importante, diz, é “recuperar os bairros ferroviários e manter a sua traça”.

E que traça é esta? Henrique Leal, antigo professor de História na Escola Secundária tem uma ligação especial com o Bairro Camões devido à tese de mestrado que fez em 2001 sobre a Escola de Aprendizes da C.P. no Entroncamento, que funcionou na Escola Camões. Não estivemos presentes nas muitas aulas que lecionou durante trinta anos, até 2012, mas numa conversa informal ficámos a conhecer as influências do conceito de “cidade jardim”, lançado pelo inglês Ebenezer Howard na obra To-Morrow: A Peaceful Path to Real Reform, em 1898, e da corrente arquitectónica liderada por Raul Lino, a “Casa Portuguesa”, com base na obra que escreveu com o mesmo nome, no ano de 1929.

No primeiro caso defendia-se a expansão das urbes não em altura, mas na horizontal, em que os espaços verdes assumiam uma importância vital. O segundo assentava num modelo de urbanismo inspirado nos valores portugueses que “o fado da Amália Uma Casa Portuguesa descreve bem”. A casa de rés-do-chão, máximo primeiro andar, com a vedação exterior em madeira, o beirado à portuguesa, os vasos nas janelas e os alpendres. A estes princípios juntou-se um conceito europeu que vigorava na altura, assente no dever das empresas ferroviárias garantirem “todas as condições sociais para os seus empregados, nomeadamente a habitação”.

Se a tudo isto juntarmos a “aversão do Estado Novo à desordem pública” e à proliferação de novas ideias num meio operário constituído por camponeses afastados das suas terras natais, surgem as habitações sociais da C.P. com as hortas que ocupavam os ferroviários “fora das horas de serviço e ao fim de semana”. Quase todas as casas tinham um espaço para cultivo na parte de trás, mas no Bairro Camões o quintal é à frente porque “no bairro dos quadros superiores da empresa não ia haver couves, nem alfaces, ia haver flores”.

As flores ainda podem ser encontradas pelas ruas mas são as couves que proliferam nos “canteiros” das casas emparedadas, tratados pelos poucos habitantes do bairro. A terra é fértil e a memória dos tempos áureos da ferrovia no Entroncamento não morreu ali. Está apenas adormecida, à espera que alguém a cultive.

*Reportagem originalmente publicada em novembro de 2015. 

Nasceu em Vila Nova da Barquinha, fez os primeiros trabalhos jornalísticos antes de poder votar e nunca perdeu o gosto de escrever sobre a atualidade. Regressou ao Médio Tejo após uma década de vida em Lisboa. Gosta de ler, de conversas estimulantes (daquelas que duram noite dentro), de saborear paisagens e silêncios e do sorriso da filha quando acorda. Não gosta de palavras ocas, saltos altos e atestados de burrice.

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