Foto: Carlos Alves

A Rua do Lucas peja de gente que enche a calçada de sapatos, de várias cores. O homem da loja dos sapatos olha, passivo, passando a mão pelo queixo. Parece que sente vontade de soltar uma gargalhada ou um grito mais profundo. Não foi isso que aconteceu. Deixou-se ficar no seu canto prostrado com a animosidade que poderia surgir. Fez bem! Em vez de trejeitos, aguçou o seu apetite, a curiosidade floresceu o imaginário. Enfim, um espaço sedento de sapatos bucólicos que passeiam entoando marchas estridentes que estuam os mais pernósticos.

O homem dos sapatos calcorreou todos os cantos naquele labirinto de emoções. Olhou demoradamente com a lentidão de quem saboreia um pedaço de tempo e construiu em todos os cantos do labirinto uma passagem onde pudessem ser guardados todos os dejetos que impulsionam o obscuro da nossa corporalidade.

Não é só o homem dos sapatos que se amedronta e que penetra nas camadas mais profundas da sua emoção para criar o seu mundo mais expressivo. Existe interconexão. O novelo criativo pertence a todos os intervenientes.

Duas crianças olham apaixonadamente para o homem dos sapatos. Vestiam fatos de marinheiro, calções e umas sandálias todas brancas. Agora já não sabemos se a vida desflorescia ou desflorava, conforme houvesse espaço tão agrilhoado pelas circunstâncias. Se, em vez daquele amontoado de ferro, aparecesse um cavaleiro vestido a rigor, elegante, com um grande bigode filiforme retorcido nas pontas e um chapéu ribatejano de abas largas, com o seu cavalo pomposo de crina deslizada como seda de donzela sobre o pescoço nu, que iria acontecer? O mundo era olhado de outra maneira porque o olhar esboçado indicaria uma forma de tratar a varapau, o monte de ferro e outras coisas.

A Rua do Lucas tem forma de expressão artística, capaz de penetrar nas profundezas da experiência humana e inspirar-se nela para transformar o cavalo em cavalinho de madeira que baloiça e o homem do bigode em criancinha, para que ambos fiquem felizes e os senhores, que estão em cima da escadaria de madeira, não se sintam em cima de um pedestal com o seu olhar sobranceiro.

O mundo é grande. Há coisas nele que só existem porque nós as deixamos existir. Neste mundo as crianças brincam, os pássaros famélicos voam todos os dias da semana. A beleza e o silêncio existem. O ar até parece ter graça e as pedras saltitam de tanta alegria. É que as coisas com aspetos sensíveis que as constituem, assinalam aquelas marcas penumbrosas, sórdidas, desagradáveis, violentas do ser, cuja perceção provoca náusea ou apenas a atitude contemplativa extática.

O olhar vago, negro como um firmamento que olha desonradamente a mancha de carvão que aparece entre as estrelas, faz com que estejamos diferentes, mais céticos, sem esperança.

As crianças precisam da Rua do Lucas.

É albicastrense de gema, mas foi em Malpique (Constância) e em Tramagal (Abrantes) onde cresceu e aprendeu que a amizade e o coração são coisas imprescindíveis na valorização do ser humano. Vive no Entroncamento. Estudou conservação e restauro e ciências sociais. É membro da Associação Portuguesa de Escritores (APE). Trabalha na área de informática. Participou em várias Antologias Poéticas e escreveu o livro “Diálogos da consciência” que serviu para se encontrar consigo próprio numa fase difícil da sua vida. Acha que o mundo poderia ser melhor, se o raciocínio do Homem fosse estimulado. A humanidade só tem um caminho que é amar, amar por tudo e amar por nada, mas amar.

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