Gabriel de Oliveira Feitor, 21 anos, lançou recentemente uma obra de investigação sobre a identidade de Alcanena enquanto freguesia de Torres Novas. “São Pedro d’Alcanena – Estudos e Documentos da Antiga Freguesia” -, é uma obra apaixonada de um filho da terra, na qual o historiador se focou num trabalho documental sobre a história económica, política e social da extinta autarquia, desde 1640 até 1910.

Apesar da juventude, este finalista em História Moderna e Contemporânea do Instituto Universitário de Lisboa já possui um currículo extenso a nível associativo, onde figura outra investigação sobre a sua terra: “Alcanena – Ensaios de História de um Concelho Centenário (1298-1926)”. Dinâmico e empreendedor, o escritor esteve à conversa com o mediotejo.net (MT) e não hesita em apontar o dedo ao município quanto à necessidade de se apostar na organização do Arquivo Municipal.

MT – Como nasceu a ideia para este projeto?

GF – A publicação nasce de uma questão essencial: como é que Alcanena, enquanto freguesia do concelho de Torres Novas, conseguiu impor-se em relação às restantes freguesias e, consequentemente, viu a sua autonomia administrativa? O trabalho vem no seguimento do meu trabalho de investigação que levo, ininterruptamente, desde 2010. Em 2014 lancei o primeiro livro que é uma síntese do que já havia estudado sobre Alcanena entre 1298 e 1926. Por seu turno, essa publicação trouxe a lume questões pertinentes e novidades sobre a fundação do concelho. Muito do que lá está nunca se tinha feito… Sobre “São Pedro d’Alcanena”, a questão principal foca-se muito na freguesia, entre 1640 e 1910. A fundação da freguesia, a história geral, uma análise social e antropológica das famílias, a indústria, entre outros, são temas estudados aí.

MT – Porquê São Pedro d’Alcanena?

GF – “São Pedro d’Alcanena” porque é o nome pelo qual a freguesia era conhecida. As paróquias, que vieram dar origem às freguesias civis, representavam no Antigo Regime e na Idade Média a área administrativa que hoje chamamos de freguesia, com o acréscimo de que cada uma tinha o seu orago. A escolha foi por aí…

MT – Como organizou a sua investigação?

GF – A investigação tem passado, primeiro, pela leitura da bibliografia existente. Muitas coisas de Torres Novas principalmente e a bibliografia complementar que aborda os assuntos a nível nacional. Depois, a fase das fontes primárias, passou primeiramente pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Arquivo do Ministério das Obras Públicas – onde está a documentação relacionada com a indústria do século XVIII e inícios de XIX -, Arquivo do Tribunal de Contas – onde estão os livros das décimas… Depois, a nível local, obrigatoriamente no Arquivo Municipal de Torres Novas, onde se encontra a documentação fundamental para a História da freguesia até 1914 e, posteriormente, no Arquivo Distrital de Santarém, onde os livros de notas do tabelião (livros de notários), vieram a revelar algumas coisas interessantes…

MT – Na reunião de câmara de Alcanena referiu-se a inexistência de um Arquivo organizado. O que pensa que se poderia fazer nesse sentido?

GF – O Arquivo em Alcanena é uma das coisas que mais defendi nos últimos anos. Na minha intervenção enquanto cidadão, tenho alertado e sensibilizado a autarquia para isso, seja nos meus trabalhos, seja nas minhas crónicas no Jornal Torrejano, seja na minha página pessoal do Facebook… Se eu tivesse alguma responsabilidade política, essa seria a minha prioridade na estratégia cultural do concelho de Alcanena. Alcanena comemorou há pouco mais de um ano o seu 100º aniversário enquanto sede de uma unidade administrativa – concelho. Fizeram-se estudos fundamentais sobre a criação do concelho – os meus, o do Jorge Gabriel… – e isso é muito positivo num meio em que quase nada havia feito. Mas sobre os 100 anos do concelho? O que se sabe? É fundamental ter em conta que neste centenário Alcanena não teve memória. Coisas superficiais não contam. Esperava que, depois dos meus apelos, as Grandes Opções do Plano tivessem alguma coisa em relação a este assunto, mas enganei-me. Começar a inventariar e a catalogar, numa primeira fase, e a pôr à consulta na Biblioteca Municipal seria excelente. Existem recursos humanos para fazerem esse trabalho e voluntariado. Eu próprio já me disponibilizei, a custo zero, para o fazer. Foi assim que em Torres Novas começou. Porquê que em Alcanena não pode ser assim?

MT – Que dificuldades mais o marcaram durante esta investigação?

GF – O que marca sempre quem quer trabalhar sobre a história de Alcanena: a escassez de fontes. É um grande problema que Alcanena tem em relação a outras localidades. Na introdução deste livro falo disso. Eu chamo-lhe de “problemática das fontes”. Como refiro na introdução, existe “uma problemática de consequência acidental; uma outra de consequência político- conjuntural; conjugando-se ambas no espaço municipal e paroquial. Ora vejamos. Em 1868, um incêndio deflagra na repartição da Fazenda da Câmara de Torres Novas, destruindo parte do edifício. Segundo Artur Gonçalves, antes do incêndio, existia documentação medievalista, como o Foral de D. Sancho I dado em 1190. Em 1915, a Igreja de Santa Maria de Alcanena sofre também um violento incêndio, salvando-se apenas alguns objetos sacros. A documentação que poderia existir da Junta de Paróquia, das confrarias, da construção da Igreja e, até, da fundação da paróquia, desaparecera. O estudo da paróquia ficara assim, em parte, comprometido. Com a subida de D. José ao trono, os livros de atas do Senado da Câmara Municipal de Torres Novas entre 1751 a 1765 desapareceram, ficando-nos o vazio desse período sobre as elites e as medidas tomadas pelo poder autárquico nos momentos sucessores a 1755. Depois, outra ocasião, a das invasões francesas, sobretudo na primeira e na terceira invasão. Dá-se a destruição dos livros paroquiais mais antigos, ficando apenas os livros de baptismo a partir de 1761. Dá-se o desaparecimento dos livros de actas camarárias e dos registos gerais, entre 1803 e 1811, ricos para o conhecimento político-social do termo torrejano durante o período invasor.”

MT – E que surpresas encontrou?

GF – Algumas surpresas interessantes. A mais relevante é sobre Vila Moreira, a antiga povoação de “Casais dos Galegos”. Ao encontrar uma petição dos moradores da paróquia de Alcanena de 1638 contra a nomeação de um torrejano para capitão da esquadra de Alcanena e de Monsanto das Ordenanças, aparecem dois indivíduos, moradores em Casais dos Galegos, a subscrever a referida petição. Isto veio a corroborar duas coisas: (i), que a memória colectiva não é assim tão credível no trabalho historiográfico como alguns querem fazer querer. Há uma construção da estória da fundação dessa localidade à volta de uma personagem feminina no início do século XVIII. Só comprova que Casais Galegos já existia antes disso e que Maria Moleira não fora a sua povoadora. É curioso ter a noção de que o conflito entre centro e periferia, neste caso entre Alcanena e Torres Novas, não é assim tão novo quanto isso…

MT – Quais as conclusões desta obra?

GF – Podem-se tirar algumas conclusões sobre ela. A primeira, de que Alcanena, era uma localidade democraticamente pequena durante os séculos XVI e XVII e é a manufatura dos curtumes que origina, digamos, um “boom” na freguesia: seja ele social, económico e político. De certo modo, a freguesia e os seus naturais começam, no século XVIII, a ganhar uma identidade, identidade essa ligada aos curtumes, ao linho, ao negócio, em suma, ao trabalho. O século XIX vai revelar apetência do alcanenense para o jogo político, muito centrado nos acontecimentos nacionais e, por fim, a formação do republicanismo, que passa pelo trabalhador até ao patrão, apesar de ser contraditório em alguns aspetos.

MT – Pondera fazer novo trabalho sobre outra freguesia?

GF – Estou a trabalhar num outro projeto sobre a História da Indústria em Alcanena e, gostava a curto prazo, de começar a escrever os primeiros anos do concelho na I República, desde 1914 até 1926, data da Ditadura Militar. Mas para isso, terei de ter acesso à documentação municipal dessa época – livros atas, correspondências, etc. – e eu sei que ela existe… Sobre outras freguesias, é importante não esquecer que teremos, dentro em breve, freguesias a comemorarem também os seus cem anos. Aquela em que eu me debruçarei no futuro, pela sua especificidade, é a do Espinheiro. Mas estou sempre disponível, como sempre estive…

Cláudia Gameiro, 32 anos, há nove a tentar entender o mundo com o olhar de jornalista. Navegando entre dois distritos, sempre com Fátima no horizonte, à descoberta de novos lugares. Não lhe peçam que fale, desenrasca-se melhor na escrita

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