Maria Sarmento nasceu em Torres Novas mas vive desde 1975 em Évora. Licenciada em Português/Francês pela Universidade de Évora, fez mestrado em Literaturas Românicas Modernas e Contemporâneas na Universidade Nova de Lisboa, com uma tese sobre a temática da Natureza em Fernando Pessoa. Foi professora do Ensino Básico e Secundário até 2021. Tem colaboração dispersa em revistas e jornais nacionais e internacionais. Publicou oito livros de poesia em nome próprio e participou em várias edições conjuntas, a última das quais numa antologia de autores torrejanos.
“Poesia é mistério, é respiração e é trânsito. É ponte e é silêncio que busca e reinventa o indizível. Mistério que existe em cada coisa que Há. É como que a escuta de uma melodia antiquíssima que se lembra vagamente da fonte, sendo ela mesma eco do seu som. É errância e via: errância dentro e fora de si mesma, via e trânsito entre mundos. O poeta é, neste sentido, o Processo, o Vaso e a Obra de uma Alquimia Saudosa. Por isso mesmo, um texto nasce e morre no mais alto e fundo grito, e sussurra, em silêncio sagrado, o som de tudo quanto houve, há e haverá.“
Creio que Maria Sarmento sintetiza neste texto poético com que encerra o seu livro “Alma d’Hybris” todo um caminho, uma demanda, numa pesquisa de si mesma na vivência da sua vida, como da contínua interpretação do mundo que a envolve numa aura mística e mítica, em que o real se transfigura e a irrealidade anuncia os múltiplos rostos da transcendência que a memória vai metamorfoseando na busca do indizível onde se pressente um acontecimento único, inominável, um eco de algo que se toca e se perde, que é grito e silêncio, sombra e luz.
O poema arde no fogo da sua própria linguagem.
A Poesia é, para Maria Sarmento, o seu vaso alquímico, o jardim onde os diversos jardins nascem da experiência, da observação, da matéria única que é a palavra, esse centro de tudo, casca e semente, fruto e raiz, voz e eco. A vida é, desde o nascimento, um elo com o outro, uma melodia indistinta que percorre o labirinto do desconhecido com a ferramenta intuitiva dos sons que, ramo a ramo, se transfiguram em árvore onde a palavra se desvenda e o conhecimento se abre em folhas e frutos e pássaros e ventos e sol.
E a linguagem descobre-se como memória anterior à própria descoberta de si. E os tempos, do ver, do sentir, do pensar, do descobrir, do amar, do sofrer, da descoberta da finitude no seu tecer o manto da revolta na escrita da infinitude, a casa onde se descobre em cada vocábulo a essência do universo e dos mitos e símbolos que a memória cultiva na sua peregrinação interior, no seu regresso a uma saudade de algo tão vago e denso como a teia da aranha onde a geometria é profética e o sagrado assume a transgressão do sacrifício e da perda.
A Poeta sabe como as rosas do seu jardim dependem do cuidado do ajardinamento.
“Alma d’Hybris-1”, assim titulou o primeiro volume do seu tríptico em que o transcendente e o imanente reflectem na sua dualidade a unidade da matéria prima – a palavra poética. A poeta, que se auto-define como a Rosa, na sua cor vermelha, pedra filosofal criadora da esperança dum olhar com que o espírito criativo busca na matéria comum a unidade do universo.
O que sou? O que é o mundo? O que é a vida? O que é a morte? O que é o caminho? Onde começa? Onde acaba? Que é Deus? Criador ou criação? O que é o tempo?
Através dum domínio profundo da linguagem, Maria Sarmento, através da ligação entre tudo o que Há, cultiva a palavra, esse rosto e rasto de algo cristalino e sombrio, essa dualidade do visível e do invisível, da pele e da semente que nela germina, transfigurando o sentido num apelo ao inusitado, como uma tela onde as cores se misturam e separam até ao puro ouro da grande obra.
Jardim de saudades, jardim de criação de futuros, Jardim da alma, da transfiguração do tempo na areia do corpo, jardim de jardins, onde a transparência e o mistério do que se esconde no que é visível cresce em imagens, símbolos, signos e metáforas, como fonte que cria a sede quanto a dessedenta.
Aprendizagem, sim, da poeta, mas também do leitor, na necessidade da exigência de se integrar, na peregrinação interior em que o passado se reinventa, não como solução, mas como hybris, a desmesura de se sentir a criar um novo paraíso, enfrentando o ciúme divino, sofrendo as suas ameaças e perseguições, transformando a sua dor em doação para o aperfeiçoamento moral da humanidade.
De facto, assuma-se:
Toda a literatura é um desafio às regras estabelecidas do viver comum. Toda a experiência é aquisição dum conhecimento escondido sob a casca do diferente.
Mas a poeta é também leitora. O livro é a música dum piano que a persegue desde a adolescência, o mapa dos locais em que se guarda e que aguarda o sopro misterioso da floresta dos símbolos que as letras guardam na sua sacralidade geométrica. Ler implica, para Maria Sarmento, ser-se o outro, o leitor do seu texto que se transforma numa música de afectos e partilhas, que se sente, se vê, se constitui em obra de muitas vozes, que ao se darem a ler, se lêem sempre como uma memória que a sensibilidade e a intuição redescobrem como suas.
Leitura que não é imitação, mas recriação. No idêntico sentido que a escritora Gabriela Llansol, em carta a Eduardo Prado Coelho ,desvenda: «Tenho-(me) norteado pelo princípio de que o texto precisa de encontrar, não o leitor abstracto, mas o leitor real, aquele a que, mais tarde, acabei por chamar legente – que não o tome nem por ficção, nem por verdade, mas por caminho transitável.»
Não há escrita sem o outro, não há jardim sem jardineiro, as flores não são apenas as que o jardineiro colhe pelas veredas do mundo, mas também as doutros jardins que a poeta foi visitando. Templos, chamar-lhes-á a poeta, e no diálogo a palavra ultrapassa o silêncio, transforma-se em ave libertadora, entregue à aprendizagem das suas asas entre os quatros ventos, terra, ar, fogo, água, que o seu voo descobre, no encontro com essas outras aves, a linguagem órfica que lhe vem, como a autora escreve , «do futuro do passado», esse lugar que a sua Hybris tentou roubar à fonte sagrada da criação, pelo desejo de conhecer os mistérios da origem do Tudo que no Nada se inserem.
Não se estranha, assim, que Maria Sarmento, na busca das flores para os canteiros do seu jardim, recue ao primeiro conhecido escrito da demanda da flor da eternidade, ao Gilgamesh sumério, se reveja na Grécia, esse lugar do sagrado e do profano que passou, entre outros, por Platão, Hesíodo, Heraclito, pelos mitos da criação e do sofrimento como o de Prometeu, em revolta contra a tirania divina. E persiga, na Renascença, com Dante, a descida aos infernos em busca da Amada, para a ascensão das diversas fases do conhecimento até ao cume da montanha e ao reencontro do todo da divindade. Sem esquecer o papel primordial da mulher, da dualidade, da tragédia feminina da sujeição, na sua aprendizagem do ser-se o outro rosto da unidade do ser.
E, nesse ajardinamento, na língua pátria há todo um caminho, desde o surrealismo, substituído pelo simbolismo, o onírico, o visionário, o esotérico, o saudosismo, o realismo mágico. Alta poesia, com gavinhas nos ramos duma literatura e arte portuguesas, onde sobressaem, Pessoa, Pascoais, Pessanha, Vergílio Ferreira, Sophia, Gabriela Llansol, Herberto Helder, o seu «mestre» Lima de Freitas. E, entre outros, estrangeiros, Holderlin, Rilke, Paul Celan, os pintores Munch, Magritte.
Um último pormenor que atraiu a minha tentativa de legente: o conceito de Deus, a queda dos anjos rebeldes, a inveja divina do conhecimento que os primeiros seres, o homem e a mulher, adquiriram pela astúcia da serpente.
Publicou recentemente a poeta um texto, de que cito dois versos :
Sou pagã para os deuses e para os homens.
Tenho um ventre de terra.Posso parir mundos.
Maria Sarmento debate e provoca constantemente esse sentido da origem, onde perpassa a saudade de algo que se perdeu, mas é possível ressuscitar. A sua ideia do Espírito Santo como anunciador do «Passado do Futuro», a elevação pelo sonho, pelo coração, pela unidade com tudo o que vive, condu-la à intuição, expressa nas páginas do seu livro, «não sei se a minha alma é mais antiga que a de deus»; « quantas vezes morrerei ainda/ antes que a dor sossegue/ e o coração se una aos quatro pontos cardeais/do círculo que é o mundo»; ou, mais cônscia da mudança do ser-se na onda do tempo «E a Menina nascida, de si mesmo morta, acorda enfim de ser, para ser o que não pode ser, nem deixar de ser».
Como não recordar Pessoa: «Nasce um Deus. Outros morrem,/ a Verdade nem veio nem se foi…um novo deus é uma só palavra./ Não procures, nem creias; tudo é oculto».
Concluamos. Ler “Alma d’Hybris” é como entrar num templo cósmico. O desconhecido avisa-nos que o lugar é duplamente profano e sagrado, revela-se no que se esconde ou esconde-se no que se revela. A leitura dos seus textos poéticos, dos seus poemas, leva-nos a uma viagem pela música da linguagem, pelos segredos da grande arte.
Maria Sarmento é, afirmo-o, uma voz rara e obrigatória na poesia portuguesa, que nos leva a aguardar com o maior entusiasmo, os dois outros livros, que promete, do triângulo mágico da sua concepção de vida e de mundo.
Eis a proposta do legente, a partir do que a poeta nos diz.
Eu estou em vós. A Voz liga-nos. A palavra é a ponte. Eis o caminho.
Parabéns, Maria.
Parabéns mana Poeta…és o orgulho de todos nós