Bateria, bombo, pratos, timbales, tambor, tuba, sinos de Meinl e outros instrumentos aguardam pacientemente no ‘ensaio da banda’ – designação que identifica, por qualquer residente em Sardoal, a sede da Filarmónica União Sardoalense – que os músicos lhes peguem em dias de sair à rua ou às sextas e sábados na rotina da prática, precisamente no Largo da Escola, naquela que foi primária de 1892 a 1935.
A data festiva foi assinalada no fim de semana, a 6 e 7 de agosto, sendo que há 160 anos que se comemora o aniversário da banda filarmónica de Sardoal, fundada a 3 de agosto de 1862. E se os tempos nem sempre foram pacíficos, uma curiosa história, com nomes ainda mais curiosos, explicam a razão da filarmónica ser hoje de União.

Entrámos acompanhados pelo presidente da direção da Filarmónica União Sardoalense (FUS). César Grácio explica, logo à entrada, a razão da mudança, perspetivada até final deste ano, para a nova sede, adquirida recentemente pela associação: “o pequeno espaço” da sala, diminuta para acolher os ensaios da banda e a Escola de Música, obrigando a improvisações contínuas.
“Uns músicos a tocar cá dentro, outros lá fora” no bonito pátio empedrado mas pouco agradável quando o frio aperta, nota o responsável. Uma coisa é certa: “em setembro a Escola de Música abre na nova sede”. Uma nova fase de uma associação centenária “ao serviço da cultura”, sublinha o também músico da FUS há 36 anos. César toca trompete.

“Há muitos anos que a FUS está inserida na comunidade sardoalense. É a associação mais antiga do concelho. As pessoas viviam de uma forma intensa a banda. Pertencer à filarmónica representava estatuto social. Era mais que um grupo musical era uma forma de convívio. Não havia família na vila que não tivesse um membro que tocasse na Filarmónica”, afirma.
Mas voltando à razão da palavra ‘União’ conta que, em certo momento, coexistiram duas bandas filarmónicas, rivais, em Sardoal. A história começa a 3 de agosto de 1862 pela iniciativa do padre Gregório Pereira Tavares que criou a Sociedade Philarmónica Sardoalense. O seu primeiro maestro foi Pedro Gregório Correia Branco.
Mais tarde, julga-se que uns cinco anos após a sua criação, houve alguns desentendimentos que causaram divisões na Sociedade Philarmónica Sardoalense, dando origem a uma segunda banda denominada Sociedade Fraternidade Sardoalense. Assim, coexistiram durante uns anos duas bandas filarmónicas no Sardoal: A pioneira Sociedade Philarmónica, conhecida também como “música velha” ou “Música do Pau Teso” ou ainda “dos ciganos”, e uma nova banda, a Sociedade Fraternidade Sardoalense, também chamada de “música nova”, “Música do Cu Aberto” e também “dos carapaus”.

Os batismos, no mínimo sui generis, provavelmente resultaram “da grande rivalidade”, justifica César. Conta-se que a rivalidade entre as bandas e a população que apoiava uma e outra banda era tal, que chegava-se muitas vezes a vias de facto, em plena praça pública. “Em datas festivas, quando ambas saíam à rua, sempre que se cruzaram, acabava a música” e iniciava o conflito, que não raras vezes envolvia agressões, inclusive usando os instrumentos, acrescenta.
Só em 1911 a “paz” regressou à filarmonia no Sardoal, passando novamente a existir uma só banda, a que hoje conhecemos: a Filarmónica União Sardoalense. “Houve a visita de um governador civil à vila, e as duas bandas acompanharam a visita, incluindo até à saída de Sardoal. Para lá foi cada uma a tocar por si, mas no regresso surgiu o entendimento. Ao que se sabe as duas bandas já entraram no Sardoal a tocar juntas”. E assim surgiu a Filarmónica União Sardoalense.

E desde então passaram mais de cem anos, “uma associação com momentos altos e baixos” mas para César Grácio, o mais difícil passa pela gestão das pessoas. A pandemia de covid-19 foi sem dúvida um momento baixo, “a máquina parou”.
“Para nós, como para todas as bandas filarmónicas deste país, foi mau. Tentámos manter algumas atividades mas os ensaios e a nossa Escola de Música tiveram de parar. Embora tivéssemos aulas a partir das plataformas digitais… mas a inatividade, deixarmos de estar presentes e competir para as tecnologias – no ecrã pode fazer música -, claro que perdemos alguns músicos”, admite, afirmando ser a atual fase de retoma de rotinas.


A FUS conta atualmente com 38 músicos – eram 46 elementos no inicio da pandemia -, sendo que já teve 50 elementos. Aliás, o objetivo da direção é voltar a alcançar esses números. E a Escola de Música contabilizava 30 alunos, que estudam gratuitamente através de um protocolo com o município do Sardoal – a FUS recebe mil euros por mês -, tendo perdido metade dos alunos nestes dois anos. É também apoiada financeiramente pela Junta de Freguesia de Sardoal, num valor anual de cerca de 800 euros.
“Para nós, perder 8 músicos é muito. Formamos a 4, perder 8 são duas filas a menos. E a banda sente-se”, lamenta César explicando as “outras baixas” quando saem para espetáculos, em grande parte durante o verão, devido às férias, e também porque alguns elementos da banda são jovens universitários a estudar fora do concelho e que nem sempre “vêm à terra” ao fim-de-semana.

A FUS garante o ensino, o instrumento e a farda gratuitamente, sejam crianças ou adultos na Escola. “Já tivemos uma turma de adultos. Neste momento não temos, mas basta trazer empenho e boa vontade para aprender. A Escola é onde a banda vai beber”.
Ou seja, sem aprendizes não há futuros músicos. A única contrapartida exigida “é que os pais sejam sócios da Filarmónica”, diz o presidente dando conta que os alunos têm idades compreendidas entre os 8 e os 15 anos, esta última, por norma, “a idade que entram para a banda”.
César Grácio sublinha “os benefícios” da música na concentração, no aumento da velocidade de raciocínio e no comportamento, o que já levou algumas crianças até à Escola. “Não é difícil aprender! A música são tempos. É somar os tempos e conhecer a nota”, refere.
Contudo, na “acelerada” sociedade atual, “muitas crianças não estão recetivas a estar cinco anos a aprender para posteriormente entrar numa banda. Escolhem atividades com resultado imediato” como o futebol, exemplifica. Por isso, assegura que “a música está a perder para essas atividades”.

No local onde os músicos e o maestro, Américo Lobato, fazem a preparação para as saídas, o presidente fala sobre um caminho que pode não ter saída se a captação de novos músicos permanecer uma realidade cada vez mais complicada. Tão complicada que obriga, atualmente, a uma estratégia.
“A experimentação do instrumento era uma prática que se deixou de fazer com a pandemia. Mesmo com a higienização, com os instrumentos de sopro era impossível. Também nas escolas através do teatro, que terminava com a experimentação de instrumentos no final”, recorda.
Ainda assim, “os resultados têm sido positivos, mesmo que venha só uma criança já é positivo. Há uns anos, quanto tivemos pessoas da banda integradas nas Atividades Extra Curriculares nas escolas, em termos de inserção de novos músicos, na apresentação, chegámos a ter 19. Agora temos 2 ou 3”, refere.
Com a esperança de alterar o paradigma, no próximo ano letivo “o método de ensino vai ser alterado”, avança César, presidente da direção da FUS há 7 anos.

Com a nova sede, o ensino da música na Escola deixa de estar condicionado ao espaço, que condicionava a percussão e os horários das aulas. Segundo o presidente os conteúdos também vão ser alterados.
Entre a mudança define-se diferentes métodos pedagógicos e diferentes conteúdos programáticos que a direção acredita trazer uma nova dinâmica e maior assiduidade.
“O que se pretende é dar um manual, uma sebenta, aos alunos, criado pela nossa Escola, que não existia. A equipa de professores está a trabalhar nesse sentido. Em setembro entra em vigor. E também para envolver mais os pais no processo, para terem mais noção do que está a ser ensinado aos miúdos, para poderem acompanhar e de, alguma forma, auxiliar caso haja necessidade – porque na iniciação só há uma aula por semana. A ideia é também implementar uma avaliação, não no sentido de reprovar mas para passar de nível”, explica por seu lado Susana Paixão responsável pela Comunicação e Marketing, acrescentando que nesta mudança também se pretende dividir os alunos em grupos, de iniciação, intermédios e avançados”.
Pela primeira vez nos 160 anos da sua existência a Filarmónica União Sardoalense tem, então, uma sede própria. A nova sede da FUS, vamos encontrá-la na rua Gil Vicente, perto da atual, num edifício pertença da Junta de Freguesia de Sardoal, mereceu um apoio de 20 mil euros do Município, sem o qual seria difícil para a coletividade dar este passo. Um edifício comprado por cerca de 85 mil euros e que era propriedade da Santa Casa da Misericórdia de Sardoal.

Outra novidade é o projeto de parceria com o Agrupamento de Escolas de Sardoal a iniciar no próximo ano letivo. “Não havendo a possibilidade da banda estar nas AEC, a Escola tem vários clubes, incluindo da Música que vai ser dinamizado pela Filarmónica. À quarta-feira à tarde, os nossos músicos vão colaborar com o Agrupamento no sentido de criarmos espaço para um curso livre, com a ideia de fazer essa ligação; poder mostrar aos miúdos a música, num ensino não formal, e tentar interessá-los para que venham ter connosco” para aprender na Escola de Música, acrescenta Susana Paixão.
Note-se que a FUS conta com diferentes gerações a tocar, normalmente pais e filhos. Ou seja, “quem tem filhos têm a preocupação de tentar trazê-los para a banda”.
Apesar do esforço, é público que o movimento associativo atravessa dificuldades. Para César Grácio, a gestão dos recursos humanos apresenta-se como a maior de todas, sendo a sua grande preocupação “a continuidade” da FUS, nomeadamente no que diz respeito à captação de músicos. Por outro lado, são cada vez menos as pessoas que se manifestam dispostas a entregar o seu tempo e o seu trabalho, voluntário em prol de uma comunidade.
Quando a anterior presidente Júlia Martins saiu da direção, por motivos pessoais, não existia uma lista a apresentar-se a eleições. César Grácio era então vice-presidente e garante ter andado a bater às portas dos pais dos alunos da Escola de Música a pedir-lhes para integrarem a lista a levar a eleições para “a banda não fechar”. Conseguiu uma lista com 18 elementos. “O núcleo duro dessa direção, mantém-se até hoje”.
No momento em que a atual direção entrou, a associação tinha uma dívida de 3 mil euros, e um fundo de maneio de mil. Por isso, o primeiro objetivo passou por meter mãos à obra e organizar eventos para pagar a dívida.

“Os orçamentos da filarmónica não são tão pequenos quanto isso! Cerca de 40 mil euros por ano”, indica. A começar pelos caros instrumentos, como por exemplo uma tuba que custa 6 mil euros ou um instrumento mais barato como uma flauta, que custa 600 euros.
“E todos os anos compramos instrumentos. Formar um músico tem um custo altíssimo. Cada farda custa 400 euros”, enumera, explicando que a associação também consegue dinheiro através das festas que realiza ou às quais a banda vai tocar.
No entanto, César Grácio considera “uma grande lacuna” a falta de apoio financeiro da administração central que apelida de “negligente” no que toca ao trabalho e o relevante papel que as bandas filarmónicas desempenham na dinâmica cultural do país, apesar dos apoios financeiros pontuais a que as associações culturais podem candidatar-se. “Não há um apoio continuado. É uma forma de matar as coletividades“ da área cultural.

No que toca à execução, as pessoas continuam a preocupar-se em apoiar a FUS e a sair à rua para ver a banda passar, com momentos de filmagem e de emoção por parte de quem assiste, refere o presidente.
Quanto ao futuro, já cumprido o principal objetivo da aquisição de sede própria, planeia sair da direção quando estiver paga, estimando um ano e meio para cumprir o empréstimo realizado para a compra. Confessa ambicionar ter na FUS “não uma Escola de Música mas uma Academia de Música. Para isso é preciso criar condições”.
Mas para a relevância do papel da banda na comunidade conta “o espírito de grupo, os amigos, os momentos bons, as histórias que vivemos juntos. A FUS é uma família muito grande. Apoiamos e ajudamo-nos mutuamente”.
Contudo, César nota “uma pequena diferença” desde a pandemia, incluindo músicos com novas rotinas implementadas. “Está a voltar aos poucos” o espírito de união existente antes da covid-19.

A Filarmónica União Sardoalense (FUS) completa este mês 160 anos de vida e as celebrações arrancaram na manhã de sábado, 6 de agosto, com uma arruada do Pelourinho ao cemitério e uma homenagem aos músicos e dirigentes falecidos. Depois do almoço convívio para sócios, amigos e simpatizantes da FUS, o Mercado Municipal foi palco de um concerto da FUS.
No domingo, dia 7, celebrou-se uma missa pela alma dos músicos e dirigentes falecidos.